quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Só no Crato...


NO CRATO...
Ivens Roberto de Araújo Mourão

Faço minhas as palavras de François Rabelais (1494 – 1553), no prólogo de seu livro – Gargantua.

Aos leitores


Caros leitores, que este livro vedes,
Libertai-vos de toda a prevenção;
E não vos melindreis, ó vos que o ledes,
Que nenhum mal contém, nem perversão.
É verdade que pouca perfeição,
Salvo no riso, aqui podeis obter:
Outra coisa não posso oferecer,
Ao ver as aflições que vos consomem;
Antes risos que prantos descrever,
Sendo certo, que rir é próprio do homem.

Vivei alegres

AGRADECIMENTO

À minha esposa, Edméia Teixeira Mourão, pelo incentivo, apoio e enorme paciência na revisão e correção das diversas versões do Só no Crato...

I – INTRODUÇÃO

O meu tio, Luís Gonzaga Bezerra Martins, irmão da minha mãe (Giseuda de Araújo Mourão), é uma pessoa fora do comum. Encontrar o Luís, “bater um papo” com ele, é a certeza de ganhar o dia. Homem de aguçada inteligência, memória privilegiada e grande senso de humor, tem sempre um prato feito para animar qualquer reunião. A estas qualidades já citadas, acrescente-se o grande dom de contar estórias, dando-lhes um sabor todo especial.
Luís em duas épocas: 1950 e 2003
Ele tem inúmeras estórias engraçadas e pitorescas, de pessoas que viveram no Crato/CE, nas décadas de quarenta a sessenta. São personagens e fatos que não mais encontram ambiente de reprodução nos dias atuais. A vida relativamente calma daquela época propiciava às pessoas o preenchimento do seu tempo com conversas, ações e atitudes, nas quais pontilhavam o senso de humor, a presença de espírito, a ironia. As “rodas de calçada” ou os “bancos de praça” eram o cenário ideal de inúmeras estórias contadas e, muitas vezes, vividas. A televisão e a informática definitivamente baniram do nosso dia-a-dia essas conversas e o ambiente para o surgimento de novos personagens.
São figuras que agregam uma série de detalhes de personalidade que poderiam constar como personagens de muitos livros. Todos eles eram de uma riqueza que as gerações atuais não fazem a menor idéia. Numa mesma época, o Crato foi repleto de pessoas ilustres, inteligentes, literatas, historiadoras, repentistas, críticas, poliglotas, questionadoras políticas etc. E o mais grave e triste: estão volatilizando os últimos vestígios desta verdadeira seleção, com o natural desaparecimento desses personagens e daqueles que conviveram com eles. Eram tempos felizes, nos quais as pessoas viviam com mais espontaneidade, encontrando satisfação nas coisas simples do cotidiano.
Aliás, esta tradição de ser um povo espirituoso, ter sempre uma resposta pronta, é antiga. No século XIX, existiu o Padre Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa (1803 – 1872), cratense que, além de padre, foi jornalista e Deputado Provincial. Morou um tempo em Fortaleza e tinha uma empregada novinha, cuidando dos serviços da casa. Mas, nos falatórios, diziam ser a mesma, amante dele. O Bispo, sabendo desta estória, chamou-o ao Palácio:
- “Padre, você sabe que este povo é maledicente. Faça o seguinte: troque esta sua empregada por uma senhora de sessenta anos. Assim vão parar estes comentários indesejados”.
Como era uma determinação, o Padre submeteu-se. Ao sair, ia pensativo... De súbito, virou-se para o Bispo e, apontando dois dedos, disse:
- “Mas, Senhor Bispo, não serviriam melhor duas de trinta anos?”.
Estórias como esta, do Pe. Verdeixa, o Luís tem inúmeras. Portanto, resolvi entrevistá-lo, em seguidas conversas gravadas, visando perpetuar alguma coisa dessas figuras quase lendárias, para o conhecimento das gerações atuais e futuras. Memórias destes tempos que já não existem mais, numa sociedade de medo em que nos transformamos.
O Luís foi personagem, espectador e testemunha de todas as estórias aqui contadas. Algumas delas fazem parte das minhas lembranças ou me foram contadas pelos meus pais e irmãos.
Durante um largo período de tempo, o Luís foi proprietário da principal sorveteria do Crato: Sorveteria Glória, no térreo do Grande Hotel, localizado em frente à Praça Siqueira Campos, hoje demolido. Esta Praça era o “coração da cidade”, ponto de encontro diário da sociedade cratense, em “passeios” em torno dela, das seis às nove horas da noite. Depois, muitas dessas pessoas ficavam em conversas até altas horas da noite (doze horas...). Reuniam-se em grupos heterogêneos. O Crato já estava sentindo a deficiência da energia elétrica, gerada na própria cidade, na turbina da Nascente. A energia de Paulo Afonso não era sequer sonhada. O Luís resolveu instalar um gerador a diesel, na sua sorveteria. Com isso pôde implantar quatro postes, que iluminavam o trecho da praça Siqueira Campos, onde se reuniam esses “boêmios”.
Sorveteria Glória no térreo do Grande Hotel. À esquerda a Casa dos Leões, também demolida.
E hoje, uma vaga lembrança. No local da Casa dos Leões foi construído o BEC,
hoje Bradesco.

O prédio da Sorveteria Glória, poucos meses antes da sua demolição.

O que restou da Sorveteria Glória. O Crato perdendo suas tradições e memórias.

Posteriormente, o Luís passou um período trabalhando no Rio de Janeiro, quando a sua casa transformou-se na embaixada do Crato, na cidade maravilhosa. Retornando à cidade, a sala de espera da sua Imobiliária, no mesmo prédio do Grande Hotel, passou a ser o novo ponto de encontro dos “boêmios”.
O que vou relatar a seguir são estórias verdadeiras, dos anos dourados do Crato. Este, portanto, é um livro de culto à memória de um tempo feliz... Propositadamente alguns nomes dos personagens foram omitidos, visando preservar a intimidade.
Interior da Sorveteria Glória. Fotos colhidas na ocasião em que oficiais da Aeronáutica foram ao Crato para inspecionar o local do aeroporto, sendo recepcionados por autoridades cratenses e integrantes do Rotary Clube. O meu pai, na época presidente do Rotary, é o que aparece na primeira foto olhando para a câmera.

II – SÓ NO CRATO

Alexandre Arraes, tio do Governador Miguel Arraes, foi Prefeito do Crato do final de 1937 a 1943, quando faleceu, ainda no cargo. Impulsionou muito o progresso da cidade. Guardadas as devidas proporções, representou para o Crato o que JK significou para o País. Poderia perfeitamente ter sido um prefeito acomodado. A cidade era um pacato aglomerado urbano, de menos de trinta mil habitantes, perdida no centro do Nordeste. Caso tivesse dado continuidade àquela calma, teria sido um prefeito como todos os demais: não ter feito nada de extraordinário. Mas não foi assim. Homem empreendedor, teve a brilhante idéia de gerar energia elétrica de origem hidráulica, aproveitando uma fonte d’água na encosta da serra e o grande desnível existente, para instalar uma turbina.

Casa de Força da Nascente, construída por Alexandre Arraes. Uma turbina inglesa transformava energia hidráulica em elétrica. Um banho na saída da água da turbina era uma atração. Prefeito Alexandre Arraes.
O Prefeito foi ao Rio de Janeiro, conseguiu os recursos, importou a turbina da Inglaterra e, no final de 1938, o Crato já tinha “luz de dia”. O Luís, por exemplo, ainda menino, não sabia para que é que servia “luz de dia”. No Ceará, apenas Fortaleza dispunha deste benefício. As turbinas da capital eram movidas a vapor, com combustível a lenha e bastante precárias.
Alexandre Arraes, em uma outra iniciativa, comprou terras no Lameiro, contratou um agrônomo e iniciou a produção comercial de hortigranjeiro (hortaliças e frutas), tanto para ensinar a novos produtores como para o abastecimento da cidade. Iniciou a implantação de um horto florestal, para a produção de mudas. Foi o primeiro a introduzir a algaroba, melhorando a arborização da cidade.
Acima, a Coluna da Hora em duas épocas: 1938 e 2005. Abaixo Vicente Marques da Silva que moldou as 18 peças do Cristo Redentor. Ao lado a estátua da Samaritana, em foto recente.
Embelezou a urbe, com a construção de praças. A Praça Francisco Sá foi toda construída na sua administração. Contratou um artista italiano, Agostinho Balmes Odísio, que passou a morar na cidade, atraído pela fama do Padre Cícero. Foi ele o responsável pelo projeto da Coluna da Hora e pela belíssima escultura da Estátua do Cristo Redentor. Trata-se de uma escultura de seis metros de altura e nas mesmas proporções da estátua do Corcovado. Contou com a colaboração do imaginário cratense, Vicente Marques da Silva (1908 – 1994), responsável pela moldagem das 18 peças que constituem a estátua. Aliás, um outro membro da família, seu irmão, o Raimundo Marques da Silva é o autor da belíssima escultura da Samaritana, que também embeleza a praça. Faleceu de acidente automobilístico, no dia em que era inaugurada a sua escultura: 21 de junho de 1952.
Quando da colocação da estátua no topo da coluna da hora, meu pai contou-me a seguinte estória:
No momento em que os operários estavam se preparando para elevar a estátua do Cristo Redentor, o Prefeito Alexandre Arraes chegou ao local e se deparou com uma das suas peças mais pesadas presa às cordas que a elevariam até o topo. Questionou os responsáveis pela operação, se as cordas suportariam o peso, no que foi prontamente respondido:
- ‘Não se preocupe, Prefeito. As cordas agüentam, sim senhor’.
O Prefeito, não satisfeito com toda aquela certeza, determinou que fosse feita uma experiência com pedras, do mesmo peso daquela parte da estátua. Contrariados, os operários fizeram a mudança e iniciaram o içamento. Até os 5 metros, tudo bem. Os operários, com que aquele ar de: “eu não disse!” Seguiram içando. Lá pelos 10 metros... TUUMMM!!! As cordas se romperam e... sai de baixo! As pedras vieram ao chão! Alexandre Arraes olhou para todos, como a perguntar ‘E se fosse a estátua do Cristo Redentor?’. Reforçaram-se as cordas, fizeram outro teste e o Cristo está até hoje, de braços abertos, dando as boas vindas a todos que chegam à cidade do Crato. Na própria coluna existe uma placa com os seguintes dizeres: “Sede bem-vindo, nesta terra há lugar para todas as pessoas de boa vontade.”
Alexandre Arraes colocou em funcionamento uma fonte luminosa. Na coluna da hora instalou um relógio com quatro faces que ainda funciona normalmente, passados mais de setenta anos. Supervisionava pessoalmente a implantação dos jardins nas praças. O Luís recorda-se de tê-lo visto tirando os sapatos e meias para entrar nos canteiros e ensinar os jardineiros a adubarem e plantarem corretamente. Propiciou o abastecimento de água na cidade, com a construção das caixas d’água que recebiam água pura diretamente de fontes naturais da Serra. A infra-estrutura de energia e água possibilitou avanços que “só no Crato” existiam. Assim, a cidade dispunha de: “luz de dia”, água encanada, colégio para homens, colégio para mulheres, seminário, bispo, curso noturno profissionalizante, escola agrícola, horto florestal, cinemas, amplificadoras, rádio, jornal, shows dos principais artistas de rádio do país, coluna da hora, trem diário, hotéis, maior feira livre, aeroporto, hospital, maternidade, posto de puericultura, médicos com diversas especialidades, laboratório de análises clínicas, radiografia, praças arborizadas e com canteiros floridos, fonte luminosa, clube de divertimento igual aos da capital, banhos públicos na Nascente, cabaré da Glorinha, orquestra, escola de música, Banco do Brasil (o único num raio de muitos quilômetros), sorveterias com sorvete, picolé e bebida gelada. Com todas essas novidades, que não existiam em outras cidades do interior do Nordeste, nasceu a expressão “Só no Crato...” Ou seja, “só no Crato” tinha isso ou aquilo!. O Luís lembra-se de pessoas que vinham do Iguatu, distante 150 km, para conhecer e experimentar o sorvete ou o picolé. Brincava, dizendo que o gelo queimava! O comércio atacadista de grãos era o mais importante de toda a região, bem como o de rapadura. O próprio comércio do Crato era forte. A Sorveteria do Luís, por exemplo, vendia mais cigarros do que o Juazeiro do Norte todo. Os estabelecimentos de ensino atendiam jovens de diversos estados nordestinos, iniciando-se uma tradição que ainda hoje perdura. Esta fonte substituiu a que tinha sido implantada pelo Prefeito Alexandre Arraes.
Por causa desta fama, embora nos anos seguintes perdesse essa hegemonia, a frase ficou no subconsciente do povo. O Luís estava administrando uma construção em Aracaju, Sergipe, na década de oitenta, quando ouviu um peão, no meio da obra, falar bem alto:
- “Só no Crato!...”

A famosa feira do Crato, em seus dias de glória.
Praça Francisco Sá, também conhecida como “da Estação” ou “da Coluna”. Foto colhida em setembro de 1938 por ocasião do II Congresso Eucarístico. Vemos o belo prédio da estação.
Bela foto da Praça Francisco Sá colhida de dentro da Estação. As casas são todas as que compõem a minha memória de infância. Ao fundo, o Alto do Seminário, com destaque do grande prédio do educandário religioso e as pequenas casas que ficavam à borda do Alto.

O Seminário do Crato, ainda no século XIX, iniciou uma tradição que passou para a cidade: de ser um centro irradiador de cultura. Durante muitos anos, o Crato foi a única opção de estudo para todo o interior do Nordeste. Assim, as famílias enviavam seus filhos para o Seminário, pelas mais variadas razões: adquirir instrução; corrigir filhos rebeldes; ter um filho padre na família (com ou sem vocação); e atender a uma verdadeira vocação do filho.



III – PRAÇA SIQUEIRA CAMPOS

O nome da Praça, “Siqueira Campos”, é uma homenagem a um rico comerciante pernambucano que se estabeleceu no Crato e não um reconhecimento a um dos líderes da Revolução de 30, que faleceu em desastre de avião no Uruguai. Este comerciante, nas primeiras décadas do século XX foi o primeiro a possuir automóvel na cidade. Com recursos próprios executou o calçamento da Rua Dr. João Pessoa, ainda hoje a principal rua do comércio cratense. Até a chegada da Televisão, a praça era o ponto diário de encontro da sociedade. A freqüência maior era nos fins de semana e feriados. Além de ter sido palco das estórias mais pitorescas da cidade. Marcou o início de muitos namoros, noivados e casamentos.

Siqueira Campos está, em primeiro plano, ao lado do seu carro.

O seu formato é quadrado, circundado por um calçadão de uns três a quatro metros de largura. O restante, a parte central, é ornada por alguns canteiros floridos e diversos passeios, com bancos.
Naqueles anos dourados, a praça era o coração da cidade, tendo normas bem estabelecidas, embora tal fato tivesse se originado de uma maneira provavelmente natural. Mas, o certo é que seus freqüentadores não se desviavam deste ritual. A calçada externa era reservada para os jovens: os solteiros. As moças sempre ficavam girando, num sentido ou noutro. Os rapazes também giravam, mas a maioria ficava em pé, na borda da praça, flertando as moças. Caso um rapaz estivesse circulando com uma moça, era sinal de que estavam namorando. Na hipótese daquele namoro evoluir para um noivado, o casal passava para a parte interna, podendo circular pelos passeios ou sentar-se em determinados bancos. Os casados sempre ficavam no centro, conversando entre eles e acompanhando os filhos, principalmente as moças.
Esta foto caracteriza bem como era o ritual. Deve ter sido colhida num domingo pela manhã, na década de cinquenta. As moças circulavam de braços dados. Nem todos os rapazes estão de terno, talvez devido ao horário. Esta foto foi enviada pela minha prima Ruth. Ela e outras senhoras tentam resgatar as tradições, beleza e charme da praça, tão bem registrada nessa imagem.

Homenagem ao comerciante que empresta o nome à Praça Siqueira Campos e que fez muito pelo Crato na primeira metade do século XX.

A partir das nove horas, a praça passava a ser dos boêmios. Formavam-se dois agrupamentos. O Júlio Saraiva, o fotógrafo da cidade, comandava a chamada “Câmara dos Comuns”. Lá eram resolvidos todos os problemas do Crato, do Brasil e do Mundo! Ao lado, reunia-se uma outra casta, constituída de pessoas mais intelectualizadas, denominada de “Câmara dos Lordes”. Esta, comandada pelo Dr. Antônio Gesteira, médico renomado, grande cirurgião e pessoa extremamente caridosa. Tanto que sua fama perdura, mesmo após sua morte. O seu túmulo é visitado e existe a crença de continuar operando, agora, milagres. No entorno desses dois grupos, reuniam-se algumas pessoas que não tinham coragem de participar das conversas desses figurões, mas gostavam de ouvir os papos.
Fotos da Praça Siqueira Campos no final da década de 30 e começo da de 40, vista por dois ângulos diferentes.

Como “satélites” da praça, destaco:
O Cine Cassino, um dos primeiros cinemas da cidade. Para mim foi o primeiro. Lá se realizavam, antes da Rádio Araripe, shows artísticos, principalmente do sanfoneiro, quase cratense, o Rei do Baião, Luiz Gonzaga.


Cine Cassino e o Café Crato, em foto atual, ambos pioneiros em suas atividades. Nos altos do Cine Cassino funcionou, inicialmente, o Crato Tênis Clube.
Vizinho ao Cassino passou a funcionar, em 1955, o Café Crato, primeiro café expresso da cidade e, provavelmente, do interior do Nordeste. O Sr. Orestes Costa, proprietário, homem dinâmico, deixou a marca da sua eficiência, organização e pioneirismo, possibilitando encontros e conversas, onde muitos fatos curiosos aconteceram.
No lado oposto ao do Cassino, funcionou o estúdio da Amplificadora Cratense, que foi o embrião da Rádio Araripe. Esta, a pioneira no interior do Estado e uma das primeiras de todo o interior nordestino. Na Amplificadora, quando ainda funcionava em prédio em frente à Praça Francisco Sá, começaram os programas de calouros, que tanto animaram a vida artística da pacata cidade de então.
Amplificadora Cratense e seus componentes. Ao centro, sem paletó, o Sr. Ernani Silva, um dos proprietários.

A Sorveteria Glória, no térreo do Grande Hotel, constituía-se um prolongamento da própria Praça. O Luís, seu proprietário, não só participava das duas Câmaras como usava a sua Sorveteria como apoio e, como já me referi anteriormente, dava-lhe suporte na iluminação. Era um ponto vital, na Siqueira Campos

Um outro “satélite” importante, embora não estivesse na vizinhança imediata da Praça, mas que fazia parte constante nas conversas dos freqüentadores, era o Cabaré da Glorinha, o mais famoso da cidade. O “expediente” desses boêmios, não todos, terminava lá. Chamavam-no de “Reino da Glória”. Era uma verdadeira atração turística! Quando chegava uma menina nova, a notícia se espalhava pela cidade. Passava a ser comentário obrigatório nas duas “Câmaras”.
Estava terminando a década de trinta e o Luís Gonzaga, ainda menino, começava a observar os aspectos originais daquela cidade, que adotou como sua.

Luís aos 12 anos, estudante do Ginásio do Crato e atento às peculiaridades da cidade.

Convido-os, pois, a uma viagem no tempo... A romper nossas barreiras e participarmos do cotidiano de uma cidade simples, tranqüila. A conhecer pessoas interessantes, por vezes até grotescas, bizarras, mas que conseguiram manter vivas as crianças dentro de si mesmas. O “menino moleque” que brinca, que faz trapalhadas, porém, quando necessário, capaz de gestos de generosidade sem par. Vejamos algumas dessas estórias:

É BARATO OU NÃO É?

No final da década de trinta e começo da de quarenta, um dos passatempos da população cratense era ouvir a amplificadora. O Júlio Saraiva, famoso fotógrafo da cidade, que sempre foi uma pessoa adiantada para a sua época, facilitou a sua instalação, cedendo gratuitamente uma sala da sua casa para o funcionamento do estúdio. Tocavam músicas variadas e liam crônicas sobre temas palpitantes. Recordo-me das crônicas do Wilson Machado, às seis horas da tarde, tendo como fundo musical Moonlight Serenade (Serenata ao Luar). Minha mãe conta que costumava colocar cadeiras no quintal e, ao lado do meu pai, ouvir as músicas da época: Francisco Alves, Orlando Silva, Glenn Miller e outros. Posteriormente, a amplificadora instalou-se de frente para a Praça Siqueira Campos. Lembro-me, inclusive, que promoviam programas de calouros e minha irmã Yara ganhava em todos que participava. A amplificadora revelou talentos que depois foram para a Rádio Araripe, no Crato e, a seguir, para a rádio e televisão de Fortaleza, como o Wilson Machado, João Ramos, Edilmar Norões... Para financiar seu funcionamento, o comércio local anunciava seus produtos, nos chamados “reclames”. Inicialmente tinha apenas uma “boca”. Era instalada no alto do prédio do Cine Moderno (outro cinema da cidade), virada para a Praça Siqueira Campos. Quando começavam “os trabalhos” juntava gente, todos voltados e olhando para aquela “boca”. Era como se hoje estivessem olhando para um aparelho de TV. Iniciava tocando o prefixo:

Casa do Júlio Saraiva, na antiga “Rua da Vala”, início da amplificadora Cratense.
“Verdes Mares, florestas, lindos campos...”
Em seguida ouvia-se o locutor:
“Boa Noite, povo do Crato!
Aqui é a Amplificadora Cratense!
Quem está falando para vocês é Washington Daíro da Silva.”
Após esta apresentação, iniciavam-se as músicas. Nos intervalos o Washington, irmão do Sr. Ernani Silva, lia os “reclames”:
“Se você quiser comprar tecido barato e bom,
Vá às Casas Pernambucanas.
Tecido que não larga as cores.
Lá você encontra chita infestada.
De dois mil réis, por mil réis o metro!
É barato ou não é?”
E o povão, olhando para a “boca” da amplificadora, no alto do Cine Moderno:
- “Ééééééééé´!”


Loja A Pernambucana

FOI À LUA E VOLTOU

Os componentes das duas Câmaras eram implacáveis com aquelas moças que circulavam na Praça e nunca arranjavam namorados. Então, comentavam: “A Fulana já rodou tanto, já acumulou uma quantidade de quilômetros que dava para ter ido à Lua e voltado!”

A BANDA

O Crato tinha também a sua Banda de Música, financiada pela Prefeitura. No centro da Praça Siqueira Campos a banda fazia exibições, tocando maxixes, dobrados, valsas etc., para o entretenimento das pessoas. Fazia, também, apresentações na Praça Francisco Sá, a da Estação.
O Luís, ainda menino, costumava atrapalhar as apresentações. Simplesmente ia para frente da banda chupar tamarindo ou uma banda de limão. Os músicos dos instrumentos de sopro ficavam com a boca cheia d’água, impossibilitados de tocar...

Banda de Música Municipal do Crato no ano de 1922. Provavelmente alguns destes foram vítimas do Luís...
Sentados, da esquerda para a direita: Vida, Laurentino Brandão, Nezinho, Mestre Emídio, Gerson Zabulon, Pedro Maia, Cidrone e João Zumba.
Em pé, no segundo plano e na mesma ordem: Antônio de Lima, Joaquim David (Padim), José Júlio, Otávio, Liodório, João Lucena, João Listrano, Vicente Terto e Adriano.
No terceiro plano, também da esquerda para a direita: Carimbé, Antônio Borges, Neguinho Feliciano e Raimundo Nonato.


IV – OS MACEDO

Melito Sampaio Alencar e seus irmãos, Brigadeiro José Sampaio Macedo e Dr.Otacílio Macedo são responsáveis pelas melhores estórias do Crato. Todos muito inteligentes, dotados de um humor irônico, sarcástico.

Brigadeiro e Melito, protagonistas de muitas estórias.

O Melito contava suas piadas ou fazia suas presepadas extremamente sério. Não ria de forma nenhuma. Só interiormente! Costumava fazer ponto na Praça Siqueira Campos pela manhã. Era produtor, dono de engenho.
O Brigadeiro era reformado da Aeronáutica, tendo sido o primeiro comandante da Base Aérea de Fortaleza. Participou da Revolução de 32, como legalista, combatendo as forças paulistas com ataques aéreos. Em 1934 comandou uma tropa de 54 homens que tentou prender o famoso Lampião. Chegou a travar tiroteio, sendo atingido no tornozelo, deixando-o com uma seqüela. Lembro-me, bem menino, tê-lo visto fazendo rasantes no Crato, dando “loops” e “parafusos”. Voava quase na vertical, parava o motor e o avião vinha caindo em parafuso. Era a chamada “folha seca”. Tudo isso em teco-teco! Aliás, o primeiro pouso de avião no Crato foi na década de trinta, pilotado pelo Brigadeiro.O avião ainda estava taxiando, quando populares correram para junto do avião. Um deles, parente do Brigadeiro, foi degolado pelo avião. Outra façanha do Brigadeiro foi estabelecer as bases para a implantação do Correio Aéreo Nacional, juntamente com o Marechal Casimiro Montenegro Filho. Enquanto o, então, tenente Montenegro vinha estabelecendo as bases do sul para o Ceará, o Brigadeiro fazia o percurso contrário. Também era produtor, no Crato, dono de engenho.
O Dr. Otacílio era médico, excelente orador e jogador profissional de baralho. Mas a sua grande vocação mesmo era o jornalismo. Patrono da cadeira nº 13 do Instituto Cultural do Cariri. Ficou famosa a entrevista que ele conseguiu com o Lampião, quando esteve em Juazeiro do Norte. Foi a melhor entrevista concedida pelo famoso cangaceiro. Os irmãos Macedo tinham mesmo uma tendência a envolver-se com o Lampião...
O interessante é que não se falavam entre si, mas não deixavam de participar das conversas, na praça. Com um detalhe: para se dirigirem um ao outro, precisavam de um “intérprete”. Caso o Brigadeiro quisesse dizer alguma coisa para o Melito, falava para o “intérprete”. Este repetia tudo, mesmo estando a uma distância de menos de meio metro um do outro. Em seguida o Melito respondia, e o “intérprete” repassava para o Brigadeiro...
O Luís conviveu muito de perto com todos eles. Recorda-se com muito carinho das estórias dos Macedo.
Lampião e Maria Bonita e parte do seu bando com o fotógrafo da Aba Film, Abrahão, que colheu as melhores fotos do famoso cangaceiro. As sandálias deles eram especialmente confeccionadas conforme desenho do Lampião. O solado era no formato retangular e sem salto. Com isto os rastreadores da polícia não sabiam precisar para qual direção se dirigia o bando...

HOMEM TÃO BOM...

O Brigadeiro Macedo, depois que se reformou da Aeronáutica voltou a morar no Crato, readquirindo os hábitos dos donos de engenho da região. Passou a usar as roupas típicas destes senhores: calça e camisa da mesma cor e tecido, geralmente azul. A camisa de manga comprida, com os punhos abotoados e colarinho também. Comprava as terras dos irmãos em dificuldade, principalmente do Dr. Otacílio. Comer na feira ou no mercado do Crato era um dos seus passatempos. Um dado curioso: ficou com pavor a avião. Todos o chamavam de Brigadeiro. Tornou-se tão popular que muitos pensavam que ele nem era da Aeronáutica. É tanto que um dia uma empregada sua disse:
- “Não sei por que é que chamam esse homem de brigadeiro. É um homem tão calmo, tão bom...”

ZÉ DOIDO

Logo após o golpe de 64, Castelo Branco foi fazer uma visita ao Cariri. Desceu no aeroporto do Crato, que ficava na Serra. Quando a comitiva se dirigia para a cidade, fez questão de parar numa curva, no alto da Serra, da qual se descortina todo o Vale.
A vista, do alto da Serra, que impressiona a todos.

É realmente uma visão deslumbrante! Acredito que deva ter se lembrado de uma crônica da sua prima, Rachel de Queirós, na revista “O Cruzeiro”, relatando seu encantamento neste mesmo local. Aliás, a minha mãe também gravou sua admiração para sempre, neste mesmo fantástico panorama, quando os caminhões que traziam as famílias dos meus pais, meu avô (Luis Martins) e Sr. Joaquim Bezerra entraram nesta curva, no recuado ano de 1937. Foi paixão à primeira vista, pelo Crato!
O Presidente se hospedou na casa de um grande amigo do Luís, o promotor José Ribeiro Dantas. Era uma casa muito confortável, recém construída e que tinha plenas condições de recebê-lo, principalmente por ser o Crato, na época, bastante carente de hotéis. Na casa e em torno dela instalou-se todo um aparato militar de segurança.
O Brigadeiro Macedo resolveu visitá-lo. Foi chegando e entrando de casa adentro, não dando a mínima para as barreiras de proteção. Quando o Castelo Branco deparou-se com o Brigadeiro, exclamou:
- “Zé Doido!!! O que é que você tá fazendo por essas bandas?!?!.
- “Eu? Fabricando cachaça e vendendo sem selo!”

O ENTERRO

O Brigadeiro Macedo tinha uma fama de birrento, ruim. Ele não ligava a mínima. Até gostava. Tornou-se grande amigo do Chico Soares, conhecido como, ele próprio se dizia, o maior caloteiro do Crato. Na verdade, o Chico era um grande brincalhão e não se sabia o que de verdade tinha nessa fama de caloteiro. O Brigadeiro, justificava esta grande amizade dizendo que, já que falavam que ele não prestava, tinha que fazer amizade com quem não prestava também! Um dia estavam os dois na Praça Siqueira Campos, quando ia passando o enterro da primeira esposa do Professor José do Vale que, aliás, foi meu professor. Lembro-me que, ao atravessar a porta da sala de aula, já ia fazendo o sinal da cruz e rezando o “padre” nosso. A classe inteira, instantaneamente, ficava de pé e rezava com ele.
A esposa do professor, também professora, era muito estimada. Uma multidão acompanhava o féretro. Os alunos dos diversos colégios, todos uniformizados, faziam parte do cortejo. O Brigadeiro perguntou para o Chico Soares:
- “Chico, será que no meu enterro vai ter tanta gente assim?”
- “Depende, Brigadeiro, se você for enterrado vivo!...”

AS APOSTAS

O Brigadeiro Macedo justificava muito bem a sua fama! Era muito político e um eleitor de carteirinha do Brigadeiro Eduardo Gomes, como não poderia deixar de ser! Na eleição para Presidente de 1950 apostou, com uma figura importante do Crato, que o Brigadeiro ganharia as eleições. A aposta foi de dez engradados de cerveja. Naquela época o engradado tinha 48 garrafas. Como foi o Getúlio quem ganhou, teve que pagar a aposta. Mandou, efetivamente entregar os dez engradados. Mas com um detalhe: esvaziou todo o conteúdo das garrafas em um tonel, estragando a cerveja. Botou numa carroça e mandou entregar, com um bilhete: “pode medir que tem o conteúdo de 480 cervejas...” Pagou, mas o desafeto não teve o prazer de beber!
Em outra ocasião ele apostou com o Dr. Macário de Brito. Era uma quantia em dinheiro. Ele perdeu. Mas, fez questão de pagar em dinheiro vivo. Saiu coletando moeda e dinheiro velho com tudo que era mendigo e feirante do Crato. Mandou entregar aquele saco de dinheiro velho e moeda. O Dr. Macário, lógico se recusou a receber dizendo que não tinha tempo para estar contando dinheiro velho e moeda. O Brigadeiro, então, depositou o dinheiro em cartório...

AVIÃO DE GRAÇA

O Brigadeiro José Macedo fez muita história no Crato. Era uma figura polêmica e não fazia questão de contemporizar. Não gostava nem um pouco do Padre Cícero. Por isso diziam que ele havia bombardeado o acampamento do Caldeirão, do Beato José Lourenço, apadrinhado do Padre Cícero. Nas conversas, na Praça Siqueira Campos, quando questionado, dizia irritado:
- “Que nada! Eu lá joguei bomba naqueles fanáticos! O que eu fiz foi dar uns vôos rasantes, dizer muitos desaforos e jogar uns panfletos. Naquele tempo os aviões nem carregavam bombas. Além do mais a topografia do local não permitia vôos para bombardeamentos”

Camponeses do Caldeirão. Só queriam viver em paz, produzindo e vivendo em comunidade. A elite dominante não admitia e foram dizimados. Receavam de um novo Canudos...

Quem mais falava mal do Brigadeiro era o seu irmão, Melito Macedo. Contava mil fatos das maldades dele.
Nas conversas, na Praça Siqueira Campos, o Brigadeiro dizia:
- “Falam que eu sou ruim, que sou isso, aquilo outro, que mando amarrar empregado no tronco para dar surra, mas eu quero é ver quem, aqui no Crato, faz o que eu fiz agora mesmo! Um cachorro ficou doido, lá no sítio, e mordeu vários empregados meus. Mandei buscar um avião em Fortaleza, para que eles fossem tratados na capital. Tudo por minha conta!”

A Igreja do Caldeirão. O que sobrou do povoado

O Júlio Saraiva, outro freqüentador assíduo das conversas, estava presente e disse:
- “Também, com avião da Aeronáutica, que não lhe custa nada! É fácil fazer gentileza com o chapéu alheio”.
- “Eu sabia, seu velho ‘fela’ da puta
(a amizade permitia este tipo de tratamento), que você ia dizer isso! Se você quiser, eu mostro o recibo. Eu fiz foi contratar um táxi aéreo! Não foi avião da Aeronáutica porra nenhuma!”

O JOELHO

As sorveterias e bares do Crato empregavam garçonetes, em lugar de garçons. Quando terminavam as últimas sessões dos cinemas Cassino e Moderno (às 21h30m), elas eram liberadas, pois o movimento caia abruptamente. Às vezes ficava apenas uma de plantão até mais tarde. Nessa hora começava o papo na Praça Siqueira Campos e a “caça” às garçonetes, por parte dos “boêmios”. Algumas delas faziam questão de passar, de propósito, pela Praça, para “insultar” os “velhinhos”. O Brigadeiro tinha uma estratégia diferente e, quando começava a caça, dizia para todos ouvirem:

- “Não vão brigar não! Podem escolher à vontade! Podem ir na frente! A mais feia podem deixar pra mim. Mulher é tudo a mesma coisa! É tudo igual. Em mulher eu só acho feio o joelho!...”

Uma das garçonetes da Sorveteria Glória.

OS CAVALOS

Quando o Brigadeiro ainda era comandante da Base Aérea, em Fortaleza, recebeu a visita da Diretora de uma escola próxima ao quartel. Ela foi fazer uma reclamação e uma solicitação de providências enérgicas por parte do Comandante para com seus soldados. Foi reclamar que eles estavam “desonrando” as moças do seu colégio.
O Brigadeiro fazendo jus à sua fama de grosso, desaforado, ignorante, sem papas na língua, foi taxativo:
- Olha, minha senhora, quem tem suas éguas que cuide delas. Eu, de minha parte, todos os dias, depois das quatro horas da tarde, solto todos os meus cavalos.

TOMAR NO BREU???

O Melito costumava fazer ponto na Praça Siqueira Campos, pela manhã. Num determinado dia ia passando uma senhora viúva, de idade avançada, de família tradicional, muito querida e que já estava ficando um pouco esclerosada. Tinha uma voz fina e muito gasguita e gostava de chamar por um funcionário do Luís, o Ari, aliás, nosso primo. O Melito sabia que ela só chamava o Ari aos gritos, e do lado de fora da Sorveteria. Pediu-lhe, então, para chamar o Ari. E ela:
- “Ariiiiiiiii!!!”.
O Luís, sabendo que só podia ser presepada do Melito, agüentou firme. Nesse dia tinha uns meninos jogando futebol, fazendo de bola uma macaúba. E a macaúba foi bater nas pernas dela. Com seu ar austero, foi reclamar dos meninos. Pra quê. recebeu um xingamento daqueles... Comentou com o Melito, com aquela vozinha fina:
- “Mas seu Melito, ninguém respeita mais ninguém. Fui reclamar desses meninos que jogaram uma macaúba nas minhas pernas e fizeram foi me xingar! Disseram uma coisa que eu nem sei o que é: Tomar no Breu! O que é isso, seu Melito?”.
E o Melito bem sério, com uma voz empostada:
- “Tomar nu cu” .
- “Tomar no cu, seu Melito?!?!?!
E o Melito, ainda mais sério:
- “Sim senhora, no cu”.
E ficaram os dois ainda um bom tempo, nesse ping pong.

A IDADE

O meu avô, Luís Martins de Araújo, era um homem sério, de pouca conversa e, muito menos, riso. Todos os dias visitava minha mãe e depois os seus pais, enquanto foram vivos. Lembro-me que ele chegava lá em casa e, depois dos cumprimentos de praxe, praticamente não falava nada. Quando ia embora era de uma vez só. Levantava-se e saia. Uma vez, fui responsável por fazê-lo rir e falar mais do que o costume. A minha mãe tinha umas colchas de cama de linho branco, bordadas, que eram passadas a ferro a brasa, após a imersão em goma. As colchas ficavam impecáveis! Ai de um de nós se resolvêssemos sentar ou deitar em cima de uma colcha daquelas! Era bronca na certa! Numa dessas visitas do meu avô à nossa casa, estando a minha mãe no meu quarto, ele foi para lá, falar com ela. Como não tinha cadeira, resolveu sentar na ponta de uma daquelas camas. Assim que vi, gritei assustado:
- “Vovô, não sente aí não que a mamãe briga!”.
Ele, de imediato, levantou-se, riu bastante e tratou de levantar a colcha com todo cuidado, para sentar direto no lençol. Minha mãe, toda constrangida, tentou consertar e ele retrucou:
- “Não, deixa. O Roberto tem razão!”
No entanto, com o Melito o vovô gostava muito de conversar e tinham muita amizade. Pessoas de personalidades opostas, que se atraiam. Somente o Melito conseguia fazer o vovô rir e falar. Um dia, o meu avô estava na Sorveteria Glória. Uma vez ou outra ele aparecia por lá, para encontrar com os amigos. Raríssimas vezes bebia uma garrafa de cerveja. O Melito estava conversando com o Luis e disse:
- “Vou já conversar com o Sr. Luís. Ele está tão tristinho!”
Sentou-se à mesa e começaram a conversar. No meio do papo, meu avô, fugindo ao seu mutismo habitual, perguntou:
- “Melito, eu sei que não é da minha conta, mas qual é mesmo a sua idade?”
- “Ih!!!! ‘seu’ Luís! Agora o senhor me meteu numa enrascada dos diabos”.
Meu avô ficou todo atrapalhado:
- “Melito, se não quiser dizer a sua idade não tem problema”
- “Não, ‘seu’ Luís. Não é isso não. Eu tenho lá problema de dizer a minha idade! É porque, no momento eu não sei dizer. É o seguinte: o senhor conhece a minha irmã Carmélia?

- “Claro que conheço”.
- “O senhor sabe que ela mora em Recife?

Meu avô, Luís Martins de Araújo, em foto de 1948.

- “Sei sim”
- “Pois é, ‘seu’ Luís, todos os anos ela diminui a idade. Como sou mais novo do que ela e faz tempo que não vem ao Crato, vou ter que esperar a próxima vinda dela pra me dizer com que idade ela me deixou!...”

O MILAGRE

Numa determinada época, chegou no Cabaré da Glorinha uma menina muita “famosa”. Era uma morena do tipo que hoje seria chamada de “avião”. E o Melito foi um dos seus primeiros “passageiros”. Foi contar as peripécias do “vôo” para o meu avô, Luís Martins. Estavam sentados numa mesa da Sorveteria Glória, e o Melito com um ar de mistério e assombro, começou:
- “Seu Luís, o Senhor sabe que chegou uma menina nova na Glorinha? A negra Lourdes? Mas ela não é negra não! É uma morena bonita demais, seu Luís!!!”
- “Já, eu já ouvi falar”.
- “Pois bem, seu Luís, quando me falaram nessa morena fui logo à Glorinha. Quando cheguei lá, eram cinco para seis horas da tarde, hora em que as putas estão tomando banho. Contratei logo a Lourdes para aquela noite. E ela combinou que eu seria o primeiro!”.
E meu avô já começou a rir. E o Melito continuou.
- “Mas seu Luís, quando foi de sete para oito horas eu cheguei lá na Glorinha e fui logo para o quarto com a Lourdes. Mas seu Luís, a negra era alta e do cabelo grande. E nós começamos a fazer o “serviço” e esta negra começou a “judiar” de mim. Me jogava “prum” lado da cama, me jogava pra cima dela, ficava em cima de mim com aquele peso enorme... E eu suando... Ela passava a perna em mim e eu já estava que não me agüentava mais. Que negra para gostar de homem! Taí, uma profissional que gosta de agradar! E ela “judiando”, “judiando”, até que ficou numa posição que quase me imobilizou! E eu procurava ar, seu Luís, e não tinha. E o cabelo da negra suado, caindo no meu rosto... E eu, Seu Luís, nada de ar! Aí, seu Luís, quando eu vi que ia morrer mesmo, me lembrei da nossa Padroeira, a Nossa Senhora da Penha! Fiz uma promessa: se ela me tirasse daquela situação, eu nunca mais na vida voltaria a fazer essas coisas. E, eu tou vivo. Fui valido, seu Luís..., fui valido!”

A CARONA

O Engenho do Melito ficava no Sítio São José, na antiga estrada Crato-Juazeiro. Quando ele não estava acompanhando as moagens, ficava na Praça Siqueira Campos ou na Sorveteria Glória, batendo papo. Nas idas para o engenho sempre dava carona a um rapaz que morava numa pequena casa, antes do seu engenho. Um dia de chuva forte, foram para o engenho, ele e o caroneiro. O rapaz ia “orientando” o Melito, naquele caminho que ele já passara centenas e centenas de vezes:

- “Sr. Melito, vá beirando a cerca, que pelo meio atola”.
Mais adiante:
- “Sr. Melito, vá por esse desvio que ali é um massapê terrível”.
E o Melito seguindo todas as orientações. Logo em seguida:
- “Pode passar pelo meio, que a água aí é rasa”.
E o Melito sem dizer nada! Seguindo as orientações! Até que chegou na casa do rapaz e entrou no terreiro, parando em frente à porta da casa. O rapaz desceu e o Melito também. E o carona:
- “Sr. Melito, o senhor vai dar o prazer de tomar um café na casa de um pobre?”
- “Não! Eu vou é me arranchar na sua casa! Sem você ensinando o caminho, como é que eu chego ao meu Engenho?”

BAIÃO X CLÁSSICO

O professor Arnaldo Salpeter era um polonês fugido da guerra, que veio para o Brasil. Acabou indo morar no Crato, levado por um entusiasta de música clássica, o Eurico Rocha. Este, com ajuda de outros, inclusive meu pai, fundou a Sociedade de Cultura Artística do Crato e organizou uma Escola de Música onde o Professor Arnaldo ensinava à juventude cratense a tocar os mais variados instrumentos musicais. A Escola chamava-se Branca Bilhar, homenagem a uma cratense compositora e professora de piano no Rio de Janeiro, falecida em 1936. A Yara, minha irmã, tocava piano. Ele conseguiu o feito de fazer meu amigo de infância, o Laerte Lucetti, que não gostava de estudar, aprender a tocar violino. Lembro-me dos recitais organizados no auditório da Rádio Araripe, nos quais podia se verificar o excelente trabalho daquele polonês. Também organizou uma orquestra que animava todas as festas do Crato Tênis Clube. Nunca esqueço quando tocava Glenn Miller que, ainda hoje, ouço no computador. Marcaram-me tanto que não consigo esquecê-las. Eu achava que ele tinha dois olhos azuis bem pequenos. A sua miopia era tão intensa que os óculos de “fundo de garrafa” davam-me esta falsa impressão! O Professor Arnaldo costumava ir à Sorveteria Glória, aliás, a única que ele freqüentava. Chegava e pedia:
- Um “cafegion”
Colocava o açúcar, dava uma mexida com a colher, derramava a metade e só conseguia tomar um gole. O motivo era o seguinte: o Melito Macedo, quando via o Professor se dirigir para a Sorveteria Glória, se apressava em ir para aquelas máquinas de música, programadas, que chamavam de “radiola”. Colocava-se uma moeda e apertava-se um botão daquele disco previamente colocado. O Luís selecionava músicas dos mais variados gostos. Dentre eles, não podia deixar de ter os baiões do Luiz Gonzaga. O Melito sabia da ojeriza que o Professor tinha pelos baiões, e tascava, à toda altura:
“Ai xanduzinha,
Xanduzinha minha flor...”
O Professor Salpeter largava o cafezinho e saía apressado, batendo em cadeiras e mesas, com os dedos nos ouvidos e dizendo:
- “Isso é lá música!”.

Professor Arnaldo Salpeter (extrema direita) com todos os seus alunos em recital realizado no auditório da Radio Araripe. Minha irmã Yara é a sexta da esquerda para a direita, em segundo plano. À sua esquerda meu amigo Laerte Lucetti.
Salão de Festas do Crato Tênis Clube com o palco onde se apresentava, no início dos anos 50, a orquestra do Maestro Arnaldo Salpeter, animando as matinês, tertúlias e festas dançantes.

Visão do salão de festas, visto do palco. O vazio caracteriza a ausência daqueles que não mais estão entre nós e que, alegremente, giravam pelo salão ao som das músicas da época, como meus pais.

Eurico Rocha um entusiasta pela música e que descobriu o Professor Arnaldo Salpeter.

Atual sede, em belo prédio, da Sociedade de Cultura Artística do Crato, em frente à Praça Alexandre Arraes.A Sociedade de Cultura Artística do Crato tinha como objetivo realizar um trabalho no campo da cultura artística. Foram seus fundadores, além do meu pai, Alexandre Sauly Mourão: Eurico Rocha, George Lucetti, Antonio Levi Epitácio Pereira, Décio Teles Cartaxo, Ernesto Rocha, Antônio José Gesteira, Maria Aldenora de Alencar Arraes, Wilson Machado, Tomé Cabral Santos, Danilo Brito Coelho, Jurandir de Oliveira Nunes, Aldenor Jaime d’Alencar Benevides, Mozar Gomes Rolim, Orestes Costa, José Mauricio Fiúza Pequeno, Edílson Cordeiro Rocha e Antônio Machado.

O DEFEITO

O Sr. Orestes Costa era um autêntico ‘Gentleman’. De estatura baixa, usava sempre terno de linho branco e óculos. Falava com todos com muita delicadeza e voz baixa. Não se alterava com nada. Estava sempre de bom humor. Era muito amigo do meu pai, companheiro do Rotary. Na década de cinqüenta, largara um bom emprego de representante das máquinas Singer a fim de montar o seu próprio negócio de torrefação de café, tendo grande sucesso financeiro. Para divulgar a marca Itaytera abriu o primeiro café expresso da cidade: Café Crato. Aquilo era a maior novidade! Tomar café feito na hora, em máquinas próprias! Até a xícara era quente!...
Muitos anos depois, quando eu, já engenheiro, construindo residências no Crato, o Sr. Orestes pediu-me para fazer uma “consulta” numa trinca existente em sua casa. Diagnostiquei um abatimento de um bloco de fundação. Providenciei o reparo, supervisionando pessoalmente os serviços. Encontramos-nos outra vez, em Fortaleza, pouco antes do seu falecimento. O Sr. Orestes reiterava o seu agradecimento, demonstrando a beleza do seu caráter!
Mas, voltemos aos idos de cinqüenta. Estava o Sr. Orestes recebendo uma nova máquina registradora. Começou a ler o manual de instruções. Tinha uma chave de fenda à mão e uma lata de óleo, para lubrificar. Ele não notou que o Melito Sampaio estava observando de longe. Estava armada a cena. Este programou e orientou uns amigos para tecerem comentários sobre a máquina, para o Sr. Orestes. O primeiro chegou e disse:
- “Bom dia Orestes! Máquina nova?”
- “Bom dia! É, estou recebendo agora.”
- “E já deu defeito?”
- “Não. Eu é que estou limpando, lendo o catálogo e lubrificando. Embora também seja National, sempre tem alguma diferença”.

Logo em seguida entra o segundo:
- “Bom dia Orestes! Tomar um cafezinho feito em máquina nova, hein! Ah, não, me enganei! Esta máquina é registradora. Bonita, não é? Toda elétrica!”
- “A outra também era elétrica. O veio desta é embutido. Só precisa usar quando falta energia”.
- “Espere! É nova e já está com defeito?!?!” Por que não usa a velha?

E o Sr. Orestes, já ficando impaciente com tanta pergunta idiota:
- “Não! Não está com defeito não! Estou só colocando a fita! A velha está aí porque a própria National vem recolher!”
- “Ah bom! Pensei que estava com defeito?”
Logo em seguida entra o terceiro e, de primeira, vai logo perguntando:
- “Orestes, máquina nova e já com defeito!”
Sr. Orestes não agüentou mais. Jogou para cima tudo que tinha na mão (papel, chave, óleo), perdendo totalmente a fleuma, acredito que pela primeira e única vez na vida:
- “Vá à puta que pariu! Defeito porra nenhuma”
Nisso, num relance, viu o Melito parado na Praça, voltado para o café, pernas juntas, mãos para frente segurando uma na outra. Nos dias de hoje dizemos: “Caiu a ficha!” Disse, então:

Sr. Orestes Costa com um grupo de rotarianos, no início da década de 50, no Crato Tênis Clube. Ele é o segundo da esquerda para a direita, em primeiro plano. À sua direita está Sr. Cândido Monteiro e à esquerda o Dr. Tadeu Brito e o Dr. Raimundo Borges. Em segundo plano, da esquerda para a direita: Sr. Danilo Coelho, Alexandre Mourão (meu pai) e Dr. Jefferson Albuquerque.

- “Isto é arrumação do ‘fela da puta’ desse Melito!”
- “Eu, Orestes?!?!”
- “Sim, isso é coisa sua, Melito. Como é que eu caí nessa!”
E, sorrindo, voltou ao seu normal.

O ALTO FALANTE

A Rádio Araripe do Crato foi a primeira estação de rádio do interior cearense. Pertencia à rede dos Diários Associados e, como tal, tinha o maior apoio da Direção Geral.
Esse apoio era traduzido não só em equipamentos de última geração como em técnicos especializados. Assim, foi transferido de Fortaleza para o Crato o técnico Agenor Duarte, natural do Crato. Era primo da famosa Regina Duarte, cujo pai era também cratense, das Guaribas. O Agenor tinha uma peculiaridade: a voz era fina, como a de uma mulher. Mas era só a voz. Não tinha nada de afeminado. O Gervásio, irmão do Luís, costumava, pelo rádio, corujar os papos dos radioamadores. O Agenor era sempre tratado como “uma colega”.

Foto da Rádio Araripe colhida por meu pai, à época da inauguração (1951), com sua máquina “caixão”. A nossa casa é a que fica à direita do prédio da rádio. Percebe-se um garoto ao portão. É meu irmão Marcelo, com 3 anos. Minha irmã Yara está atrás dele e minha mãe está à janela. A porta larga dava acesso ao auditório para filmes ou shows. Na parte superior ficava a casa de máquinas do cinema.
Certo dia, estava o Agenor num papo bastante animado com os freqüentadores habituais da Praça Siqueira Campos. Entre eles, o Melito Sampaio Macedo. Entusiasmado, explicava detalhadamente a instalação de um novo equipamento, um gerador Wytt, tendo em vista que a energia da cidade estava muito precária. Dava uma verdadeira aula para todos sobre o equipamento e os cuidados para a sua instalação. E o Melito ouvindo... No meio de uma explicação, interrompeu bruscamente:
- “Agenor, eu sei que você é um excelente técnico. Aí eu pergunto: por que você não muda esse seu alto falante?”

O SUSTO

Melito Sampaio era um apaixonado por filmes. Geralmente freqüentava as sessões das 19h30, do Cassino.
Foi no Cassino onde assisti ao meu primeiro filme. Era um filme do Durang Kid. Era o famoso Cavaleiro Negro, montado num cavalo branco. Filme de cowboy, como chamávamos. Papai me levou e eu fui para a primeira fila. Como a tela era alta e eu muito pequeno, fiquei com o rosto voltado para cima. O filme me hipnotizou de tal maneira, que fiquei toda a sessão naquela mesma posição. Ao término, estava com o pescoço duro, sem poder mover de jeito nenhum! Tive que ser conduzido pelos meus irmãos (Yara e Raimundo), pois estava com o olhar voltado para o teto!
O Cassino tinha um hall, antes da bilheteria, onde eram expostos os cartazes dos filmes. Certa vez, quando o Melito estava apreciando os cartazes, aproximou-se uma senhora simples e perguntou:
- “Esta peça será boa?”.
E ele, bem circunspeto:
- “É sim senhora. Ele é trabalhador que é danado. Pode assistir”.
Certamente o Melito sabia que a senhora estava confundindo cinema com peça teatral. O outro cinema da cidade, o Moderno, costumava apresentar peças teatrais. Por isso que ela chamara peça.
Numa das apresentações da Paixão de Cristo, no Cine Moderno, aconteceu um fato muito engraçado, impossível nos dias atuais. O Cristo era representado por um jovem muito conhecido na cidade e a Nossa Senhora por uma garotinha muito bonitinha. Ela tinha um rosto afilado que lembrava bem a imagem que fazemos de Nossa Senhora. No momento mais dramático da peça, Cristo Crucificado e Nossa Senhora ajoelhava-se ao pé da cruz, abria os braços e gritava:
- “Oh, meu Filho!!”
Disse a fala e olhou para cima. Nisto, percebeu que o “Cristo” estava sem cueca. Emitiu um grito de susto e caiu de costas, desmaiada de verdade!

A TELEVISÃO

Na década de sessenta, logo que chegou o sinal da televisão no Crato, a Prefeitura mandou instalar um aparelho de TV na Praça Siqueira Campos, em frente ao Cine Cassino. Este fato gerou muitos protestos indignados de seus velhos freqüentadores. Afinal de contas, isto acabaria com o charme da praça e a sua finalidade de reunir as pessoas em longos e divertidos bate-papos. O Melito Macedo, melancólico, estava testemunhando este absurdo, quando se achegou a ele uma pessoa, provavelmente analfabeta ou descendente daquelas que “assistiam a amplificadora cratense”. Comentou, então:
- “Parece que eles são estrangeiros!”.
- “Ou eles, ou nós!”.

ABROLHOS

O Melito Macedo vivia pregando peças nos outros. Estava sempre maquinando alguma coisa. Certo dia, resolveu escolher para vítima o Sr. Germano, o português proprietário da padaria Triunfo. Aliás, pessoa de grande coração e que tinha um enorme amor ao Crato. E foi via telefone:
- Pois, pois. Padaria Triunfo, às suas ordens. Germano a “falaire”.
- Vocês têm abrolhos?
- Abrolhos?
- Sim, abrolhos.
- Um momentinho, vou “verificaire”.
Dirigiu-se ao seu auxiliar e perguntou:
- Ô menino, tu tens abrolhos?
- Abrolhos? Não, “seu” Germano, não sei nem o que é. Nunca nem ouvi falar!
Voltando ao telefone, o Sr Germano:
- Meu prezado, infelizmente, abrolhos estão a “faltare”.
- Mas, como não, todo mundo tem abrolhos.
- Ai Jesus, o que vem a ser abrolhos?
Antes que o Sr. Germano desligasse o telefone com toda a fúria, quase quebrando o aparelho, e dizendo : "desavergonhado!"
O Melito esclareceu:
- Abrolhos, são aqueles bolãozinhos de bosta que ficam grudados nos cabelos do cu.

A VELHICE

Um dia, o Melito foi conversar com o Luís, sobre um problema que o contrariava.
- “Luís, velhice é o diabo! Você nem queira saber. Estou sofrendo com a velhice!”
- “Mas por que, Melito? Você nem é tão velho assim!”
- “Luisinho, na nossa idade nós só podemos trepar com mulheres grávidas e que tenham, pelo menos, cinco meses de gravidez”
- “Que é isso, Melito. O que é que tem a ver uma coisa com a outra?”
E o Melito, com aquele ar de contrariado:
- “Porque com cinco meses o menininho já está sabendo do que se trata e dá uma ajudinha, puxando com a mãozinha, o pinto da gente pra dentro...”

O CACHORRO E O BOLO

Certo dia, de movimento fraco, o Luís resolveu fechar a Sorveteria Glória mais cedo. Preferiu participar de uma roda de conversa em um bar em frente, na própria Praça Siqueira Campos. O proprietário era o Edson Donizetti, sobralense que casara com uma cratense, a Sarita, irmã do Dr. Quixadá Felício, bastante conhecido na cidade. Este, por sua vez, quando ficou viúvo casou com uma irmã do Edson.
Na calçada do bar, que era de esquina, estavam várias freqüentadores sentados em torno de uma mesa. O Luís sentou-se numa cadeira de costas para a rua e de frente para o bar. Ao lado dele, na mesma situação, estava o Melito. Todos os demais, inclusive o proprietário, estavam acomodados de frente para a rua e de costas para o bar.
O Edson estava explicando o motivo da grande quantidade de pessoas da família Frota em Sobral, bem como a origem do nome.
No bar existia um “fiteiro” que é uma espécie de balcão onde eram guardados os bolos e outras guloseimas. Na parte da frente tinha vidro, para que todos pudessem ver os produtos expostos. Fechando o fiteiro, na parte de trás, existiam portas de correr. Naquele dia todas estavam abertas.
O bar, local da “farra” do cachorro ficava na esquina, à direita.
Nesse momento entra no bar, pelo outro lado da esquina, um “freguês” nada desejável: um cachorro vira-lata, hoje chamado “street dog”. Dirige-se para a parte de trás do fiteiro e vai direto num bolo “Bem Casado”. Trata-se de um bolo amanteigado e mole. Imaginando o que poderia acontecer, o Luís faz menção de avisar ao Edson e é interrompido bruscamente pelo Melito que o segura pelo braço e o encara firmemente, dizendo:
- Luís, deixa o Edson contar a história dele! Por favor, não atrapalha!
O Luís “captou a mensagem” e, percebendo a verdadeira intenção do Melito, ficou quieto. E os dois ficaram observando o cachorro e ouvindo “de longe” a história de uma Maria da Frota, de Camocim.
O cachorro, a cada mordida que dava no bolo, espirrava “Bem Casado” pelas laterais da boca. Ele dava nova mordida e mais bolo era espirrado. Por fim, enjoou desse bolo e foi para o vizinho, conhecido como “Sousa Leão”. Estava partido em diversas fatias. Por ser um bolo de boa consistência o cachorro pode abocanhar várias fatias e sair com elas para comer tranqüilamente na rua.
Quando terminou, lambeu o paralelepípedo em busca das últimas migalhas do bolo. Sentou-se nas patas traseiras e ficou lambendo os dentes e a boca.
Percebendo que o cachorro estava satisfeito, o Melito resolveu comunicar o fato ao proprietário e disse:
- Oh Edson, vai dar um copo d’água a este cachorro!
- Por quê?
- Ele comeu todos os bolos do teu fiteiro e o bichinho agora está com sede!...
O que se viu, em seguida, foi o proprietário aos chutes e aos maiores impropérios enxotar o vira-lata. Mas, na sua desabalada carreira, ele ia, graças ao Melito, saciado, embora com sede...

A PROFISSÃO

No tempo em que o Luís morou no Rio, sempre ia passar as férias no Crato. Enfrentava, galhardamente, um DC-3. Só o trecho Rio a Vitória da Conquista eram três horas de vôo. Em uma dessas viagens notou uma passageira, de meia idade, que lhe lembrava alguém. Logo ela veio falar com ele e perguntou:
- “Sr. Luís, não está se lembrando de mim, não?”
- “Ou você é a Maria das Neves ou a Maria Lívia”
- “Sou a Maria das Neves!”
- “O que você tem feito, lá no Rio?”
- “Sou prostituta e ganho muito dinheiro com ‘contrabanda’!”
- “Contrabando?!?!”
- “Sim, Sr. Luís, ‘contrabanda’ dá muito dinheiro”
A Maria das Neves fora garçonete na Sorveteria Glória. Era a mais eficiente e também muito simpática. Tinha um dente de ouro na frente e que, agora, não tinha mais. Ela fazia parte do grupo de garçonetes que passava pela Praça Siqueira Campos, insultando os velhinhos, após o trabalho.
Estava o Luís na Praça, atualizando as novidades, quando chegou o Melito:
- “Luís, sabe quem eu encontrei? A Maria das Neves!”
- “Sei. Ela veio comigo, do Rio, no mesmo vôo”
Na época em que os velhinhos “caçavam” garçonetes, a Maria das Neves fora uma das suas caças. Muitos já tinham “deslizado naquelas neves!” Contou que ela tinha trazido um monte de rádio portátil da marca Speaker, para distribuir com todos os parentes. Distribuiu rádio “Spica”, como pronunciava, com toda a parentela. O pai, contou o Melito, desconfiou da “riqueza” da filha, com tão boa aparência e com tantos presentes. E perguntou:
- “Filha, o que é que você faz mesmo, lá no Rio?”
- “Meu pai, eu sou prostituta”
- “Pois então pode pegar de volta estes seus presentes. Não quero nada que venha de dinheiro sujo”
- “Mas meu pai, eu estava até querendo comprar uma casinha pra vocês saírem desta casa de taipa...”
- “Como é?”
- “É, sim. Estou querendo dar um pouco mais de conforto pra vocês...”
- “Filha, qual é mesmo o seu trabalho?”
- “Prostituta!”
- “Ah, bom! Ainda bem! Eu pensei que fosse PROTESTANTE!”

NÃO EMPLACA

Dr. Otacílio Macedo, irmão do Brigadeiro e do Melito, era médico. Muito competente, inteligente, falava muito bem, mas tinha uma grande fraqueza: era viciado em jogo de cartas, no Crato Tênis Clube. E a dinheiro!. E o pior é que era um contumaz perdedor. Vez ou outra estava encrencado com dívidas de jogo. Socorria-se do irmão Brigadeiro, para que ele comprasse uma parte das suas terras. E o Brigadeiro dizia:
- “Compro. Toda vez que você precisar vender terra para pagar dívida de jogo, venha aqui que eu compro! Eu quero lhe ver é sem nada, para deixar de ser besta!”.
E de fato, no final da vida, já sem poder clinicar, perdeu tudo no jogo. Tinha um emprego na Prefeitura, como Tesoureiro.
Não ligava muito para certas convenções. Quando jogava, ficava com o cigarro aceso na boca, sem tirar. A cinza ia caindo pela camisa e ele nem se importava. O certo é que, de longe se sentia o cheiro forte de cigarro.
Um dia, no meio do ano, ia passando pela Praça Siqueira Campos, devagarzinho, arrastando os pés, em direção ao mercado, chupar manga. Saía de lá com a camisa toda melada! Sentado num banco, a certa distância, estava o Júlio Saraiva que gritou:
- “Ei, Otacílio, arrastando os pés desse jeito você não emplaca o ano novo!!!
O Dr. Otacílio parou. Virou-se, com uma certa dificuldade, para a direção em que estava o Júlio e respondeu, agitando o braço:
- “Quem não emplaca o ano novo é você, seu velho ‘fela’ da puta (era comum essa ‘gentileza’ entre eles). Esta coceira que você tem aí não é curuba não! É um verme que vai lhe matar primeiro do que eu! Você vai ver, seu velho safado, como eu emplaco o ano novo!”
Aproximando-se o fim do ano, a situação de saúde do Dr. Otacílio piorou bastante. Ele tinha um câncer no estômago. Decidiram levá-lo para Recife, mas preferiu Fortaleza, onde tinha parentes. Mas, e o dinheiro? Então o Brigadeiro foi taxativo:
- “Não, ele pode morrer sem nada, mas não à míngua. Eu pago todas as despesas com o tratamento. Podem preparar tudo e me apresentem as despesas. Afinal de contas, comprei todas as terras dele por um preço muito abaixo do verdadeiro valor!”.
Em Fortaleza, depois de seguidos exames, os médicos decidiram operá-lo no dia 27 de dezembro (o Luís lembra bem da data, por ser o dia do seu aniversário). Os médicos foram comunicar-lhe a decisão. Ele ponderou que sabia o que tinha e, como médico, tinha consciência da grande possibilidade de morrer durante a operação. Os médicos confirmaram. Então, ele disse o seguinte:
- “Vamos deixar para fazer esta operação só depois da virada do ano! Mais dias menos dias, pouco importa. A operação é uma última tentativa de eu ter mais um tempo de vida. Dia primeiro é feriado, dia dois vocês estão de ressaca. Assim, deixem para me operar a partir do dia três. Sabem por que? Existe lá no Crato um velho ‘fela’ da puta, um tal de Júlio Saraiva, que disse que eu não emplacava o ano novo! Eu quero provar para aquele safado que eu cumpri o que eu disse: que ia emplacar o ano novo!”.
Assim foi feito. O Dr. Otacílio morreu no dia 5 de janeiro de 1966, na mesa de operação, antes da intervenção No rosto feliz, um riso de satisfação... Afinal, ganhara a última partida!...

SONO

O Crato Tênis Clube era o local onde havia, às noites, o jogo de baralho a dinheiro. O Dr. Otacílio era um freqüentador assíduo. O delegado da cidade, Major Bento, também participava. O jogo era proibido, mas a presença da autoridade o oficializava.
Existia o organizador dos jogos. Era aquele que providenciava os parceiros, os baralhos, as bebidas, os lanches etc. A este conjunto de serviços tinha o direito de cobrar “o barato”, ou seja, a comissão a que tinha direito, pelos serviços prestados. Esta despesa era rateada entre os jogadores. Acontece que o delegado Bento já estava devendo uma boa quantia ao organizador. E ele, com muita diplomacia fez a cobrança:
- “Major amigo, já dormem mais de uns trezentinhos na sua mão!”
E o delegado, olhando para as cartas e não dando a mínima importância para aquela cobrança:
- “Dormem... e é um sono grande!!!

Crato Tênis Clube em foto da década de 50. Foi fundado em 1932 e funcionou nos altos do Cine Cassino. A sede do Pimenta foi inaugurada em 27 de maio de 1950 (um sábado).

Foto atual, mostrando em primeiro plano, na parte superior, o local onde havia o carteado freqüentado pelo Dr. Otacílio.
Interior do Crato Tênis Clube, mostrando o salão de festa e o local onde eram colocadas as mesas. Está preservado, como nos anos 50, inclusive o piso, mosaico e madeira corrida, no salão.

V – PERSONAGENS DA PRAÇA

Os gregos celebravam suas assembléias e aplicavam a justiça numa praça, denominada Ágora. A Praça Siqueira Campos era a verdadeira Ágora cratense. Tudo o que acontecia no Crato ocorria lá ou era comentado nos seus bancos. Eram seus freqüentadores, além dos boêmios, componentes das duas Câmaras, a nata da Sociedade, nos “passeios” diários e vários personagens, conhecidos ou anônimos, que protagonizaram estórias as mais engraçadas. Um que se destacou sobre todos os demais foi o Senador Epifânio. Foi, sem dúvida, a pessoa mais querida e folclórica do Crato, nas décadas de quarenta e cinqüenta. A sua morte deixou uma grande saudade e, principalmente, um grande vazio na cidade. Ninguém mais o substituiu. Já o conheci em idade avançada, após ter tido um derrame. O título de Senador, deve ter sido dado pelos seus amigos, aos quais ele se referia como “a canalha”. O derrame provocou diversas seqüelas: todo um lado do corpo “morto”; caminhava, mas arrastando uma perna; um braço com tremores, como doença de Parkinson; a língua meio embolada, dificultando a fala, que era arrastada. E, o mais grave, afetou o seu discernimento. Passou a ter manias de grandeza. Era dono do Crato inteiro. Andava sempre de terno. Aliás, todo o seu enxoval era presente da “canalha”. No dia do seu aniversário, eles se cotizavam e cada um dava as roupas necessárias para um ano inteiro. Nesse dia faziam a festa na Sorveteria Glória, juntavam várias mesas para os presentes, bolos, refrigerantes, bebidas e, do lado de fora, os fogos de artifício estourando. Vivas, discursos! Era um verdadeiro acontecimento!

Senador Epifânio em foto colhida em 1949 em passeio promovido pelo Rotary à fazenda Serra Verde, dos Boris.

O Dr. Antônio José Gesteira foi outro que deixou saudades. Personalidade ímpar no Crato. Pernambucano do Recife, médico da mais alta qualidade, cirurgião de primeira linha. Certa ocasião houve um acidente num caminhão que transportava implementos agrícolas. Uma enxada abriu o tórax de um passageiro. Via-se-lhe o coração batendo! E o Dr. Gesteira o operou, fez enxerto, salvando-lhe a vida! Operação, em cidade do interior, era sempre “da barriga pra baixo”. Esta façanha foi publicada em jornais da capital. Muitos cirurgiões de Fortaleza tinham receio que o Dr. Gesteira fosse para lá, com medo da concorrência. Além de bom médico, era culto. Falava inglês fluentemente, sendo conhecedor de música clássica, como poucos. Era amigo do grande pianista nacional, Arnaldo Estrela. Excelente orador, além de ser um homem dotado de grande beleza física. Estava sempre bem vestido, em terno de linho branco. Alto, corado, de olhos azuis. Viera de Teresina onde tivera uma desavença amorosa, separando-se da esposa. Esta, com suas duas filhas também moravam no Crato. Dr. Gesteira residia em um apartamento, no térreo do Grande Hotel, quase vizinho à Sorveteria Glória. Tinha um defeito que só prejudicava a ele próprio: alcoolismo. Passava dias bebendo trancado no seu apartamento. Outra característica da sua personalidade era ser extremamente caridoso. Seguidamente deixava de cobrar seus honorários, ou não cobrava a quem lhe devia. Como conseqüência, também não cumpria com suas obrigações financeiras. Não tinha a menor preocupação com dinheiro. Na Praça, comandava a Câmara dos Lordes, embora também gostasse de freqüentar a Câmara dos Comuns.
Dr. Antônio José Gesteira. Nasceu em 1900 e faleceu em 1958.

Foto do Grande Hotel, onde no térreo e na lateral o Dr. Gesteira tinha um apartamento.

Júlio Saraiva, outra figura notável, tinha como profissão a fotografia. Quem, no Crato dos anos 40 e 50 não têm a sua fotografia tirada no estúdio do “Seu” Júlio, na “Rua da Vala?”. Algumas, artisticamente pintadas, antecipando a fotografia colorida! Discutia qualquer assunto. Era um questionador político e um socialista exaltado. Dizia-se ateu. Não era agnóstico, fazia questão de ressaltar: “Agnóstico é o ateu que não tem coragem de assumir”. Era um crítico feroz daqueles que esposavam idéias ridículas. Gostava de comer lingüiça e beber cerveja altas horas da noite e gabava-se desse feito, na idade em que estava. Foi pioneiro em muitas iniciativas: fábrica de mosaicos, fábrica de colorau, beneficiamento de arroz. Foi responsável, e trabalhando de graça, por muitos melhoramentos na cidade: monumentos, praças, traçados dos canteiros, projetos de ruas, calçamentos, fontes luminosas, arborização, reservatórios de água. Era ele quem liderava a “Câmara dos Comuns”.

Júlio Saraiva, figura impar do Crato pela sua inteligência e de múltiplas atividades. O seu “studio” fotográfico registrou quase toda a geração cratense dos anos 40 e 50.
Na foto abaixo a logomarca do Foto Saraiva, continuada por sua filha, Telma Saraiva, hoje famosa por fazer arte na fotografia: pintar as fotos, antecipando o Phot Shop.

Outro personagem que deixou estória foi o Chico Soares da Silva. Era funcionário da Receita Federal. Foi transferido, com a influência do Dr. Wilson Gonçalves (político cratense de muito prestígio), para Belo Horizonte. Viveu uns tempos por lá, voltando para o Crato. Chico Tinha prazer em dizer que era o maior caloteiro do Crato. Ninguém sabia se era verdade ou mais uma de suas brincadeiras. Por fim, aposentou-se, o que lhe possibilitava viver batendo papo com os amigos, na Praça Siqueira Campos.
Josino nunca poderá ser esquecido. Era um freqüentador assíduo das conversas da Praça Siqueira Campos. Pessoa simples, humilde, gostava muito de criar passarinhos e de tomar umas biritas. Tinha uma frase que sempre utilizava o que nos dias atuais, no linguajar da televisão, seria um “bordão”. Para tudo, ele dizia: “Hoje vai correr uma mão de... (alguma coisa)”. Por exemplo, se passava um grupo de seminaristas ele dizia: “Hoje vai correr uma mão de padre!” Caso o tempo estivesse fechado ele dizia: “Hoje vai correr uma mão de chuva!” Para tudo usava esse seu bordão. Era muitíssimo estimado por todos aqueles figurões, que primavam por não ter nenhum preconceito e serem extremamente democratas.
A Glorinha, a dona do cabaré mais famoso da cidade, era uma figura folclórica, quase uma atração turística. Seu aniversário era um acontecimento na cidade! Só faltava ir o Bispo! Ao sair de casa, era facilmente reconhecida. Com o cabelo bem louro, oxigenado. Usava muitas jóias, anéis, pulseiras e cordão de ouro, com um crucifixo enorme pendurado no pescoço! As pernas, bem cabeludas! Estava sempre presente na Siqueira Campos, através das conversas dos “boêmios”.
Vou começar a relatar as estórias desses personagens, contadas pelo Luís e acrescidas de algumas outras participações.

O BANCO

O aniversário do Senador Epifânio era uma verdadeira festa! Pessoas, as mais ilustres, “mandavam” presentes para ele:
- “Senador, esta camisa quem mandou foi o Governador Agamenon Magalhães, de Pernambuco”.
- “Muiiiiitoooo meeeeeeuuuu aaaaamiiiiigo. Aaaaaaagraaaaadeeeeçaaaa por mim aaaaa eeeele.
Num desses aniversários, um dos participantes da “canalha” chegou para ele e disse:
- “Senador, telefone para o senhor. É o Santo Padre!”.
O telefone da Sorveteria Glória era aquele de parede. Ao atender, o Senador foi logo se ajoelhando, pedindo a bênção e agradecendo pela lembrança! Logo outro da “canalha” tirava-o do telefone, dizendo que o Santo Padre era muito ocupado, não podendo demorar-se muito tempo...
Com a chegada de um novo Gerente no Banco do Brasil, alguém da “canalha” chegou para ele e disse:
- “Senador, tem uma pessoa de fora que tomou conta do seu Banco. Está dizendo que é o dono!”
O Senador não teve dúvidas. Dirigiu-se ao Banco, subiu pelo elevador, entrou na sala do Gerente que, perplexo, foi colocado para fora aos gritos:
- “Quem mannnndooooou voooooocêê toooooomaaaaaar cooooontaaaa do meeeeeu baaaaaanco?”

O CATETE

O Luís morou um tempo no Rio de Janeiro e vinha sempre passar as férias no Crato. Numa dessas ocasiões, quando estava na Praça Siqueira Campos, percebeu que o Senador Epifânio vinha em sua direção. O Luís não gostava de fazer brincadeiras mais fortes com o Senador, temendo que, num dos seus acessos de raiva, ele tivesse um derrame fulminante e viesse a falecer. O Senador atravessava a rua calmamente, o que era possível no trânsito sossegado da época. Vinha da Casa dos Leões (não existe mais a casa) encaminhando-se para a Praça. Chegando perto do Luís, foi logo dizendo:
- “Eu queeeeeero faaaaaalar é com vooooooce meeeeesmo”.
O Luís logo imaginou: “Ih!!!Alguém da canalha deve ter feito algum fuxico!”. Dito e feito! O Senador já estava irritado e foi logo perguntando:
- “Me diiiiiga uuuuuma cooooooisa, por que é que voooooocê não tá maaaaaandaaaando meus aaaaluuuuugueis? “Tá moooorando lá e tá deeeeveeeendo meus aaaaaluguéis?
O Luís saiu-se muito bem, podendo, inclusive, conhecer uma excelente faceta daquela mente perturbada: a generosidade. Explicou-lhe o atraso da seguinte maneira:
- “Senador, o senhor se lembra quando eu fui morar no Rio?
- “Eu me leeeeembro. Eu dei até um diiiiinheeeeiro pra aaaaajuuuudar na paaaassagem. E voooocê nem maaaanda meus aluuuuguéis!”
E foi ficando, mais exaltado! E o Luís:
- “Senador, quando eu cheguei ao Rio só tive foi fracassos. Abri um negócio e deu tudo errado! Perdi tudo e fiquei liso... Nisso, a família foi aumentando e fiquei sem condições até de sustentá-la! Eu sei que lhe devo. Não pude mandar ainda o seu dinheiro”.
O Luís percebeu que a fisionomia dele foi abrandando, ficando com pena da sua situação de penúria. E continuou:
- “Senador, assim que a minha situação melhorar eu mando seu dinheiro, com certeza! Veja o senhor, meus filhos estão no colégio e muitas vezes eu não tenho nem dinheiro para pagar as mensalidades. Vez ou outra os meninos estão sendo ameaçados de não freqüentar as aulas, por falta de pagamento.”
O Senador foi se enternecendo e os seus olhos já estavam lacrimejando, de tanta pena que estava, demonstrando uma beleza de caráter por trás de toda aquela demência. Então o Senador fez a seguinte proposta:
- “Vaaaaaamos faaaaazer um neeeeegóóócio. Mas tem que fiiiiiicar só ennnnntre nós dois.”
Então, olhava para um lado e para o outro. Chamando o Luís para mais perto, disse:
- “Ennnnquaaaanto vooooocê não se deeeeesapeeeertar, não tire seus fiiiiilhos do cooooolégio não. Não paaaaaassse neeeeceeeedidade. Vooooocê póóóóde fiiicar mooooorando de graaaaça!”

Foto do final da década de 30 e começo da de 40 da Rua Dr. João Pessoa, no trecho atravessado pelo Senador. A casa mais à esquerda é a “dos Leões” Em frente tinha uma bomba de gasolina. O prédio à esquerda foi demolido e construído o Grande Hotel (também demolido) onde funcionou, no térreo, a Sorveteria Glória. O automóvel à direita, em primeiro plano, é o “carro de praça” do Sr. Pedro Maia (também era fotógrafo) que está de pé, ao lado. Foi nesse carro que fiz a minha primeira viagem com os meus pais. Fomos a Fortaleza, em 1947, para a formatura da minha tia Gerson, no curso de professora.

Mesmo trecho da Dr. João Pessoa, de outro ângulo.

Continuava olhando para um lado e para o outro e dizia:
- “Mas isso é só ennnnntre nós doooois!!. Não diiiiiiga pra canaaaaalha não!!!!”
Quando já ia saindo, parou, virou-se e perguntou:
- “Qual é a rua que vooooocê mooooora?
- “É a Silveira Martins”
Como o Luís sabia que ele não tinha nem idéia de onde podia ser, disse um ponto de referência conhecido:
- “É próxima ao Palácio do Catete”.
- “Esse paaaaaalácio é meeeeu!!!”.

Fachada do Palácio do Catete voltada para a Rua Silveira Martins,
de “propriedade” do Senador.

ESQUELETO

Certa vez, estando o Senador Epifânio num dos bancos da Praça Siqueira Campos, o Luís sentou-se ao seu lado e perguntou:
- “Senador, eu soube, lá no Rio, que o senhor tem um esqueleto todo de marfim. É verdade? Foram os médicos que descobriram?”
- “Foooi. O meeeeeeu esqueeeeeleeeto é tooooodo de maaarfim”.
- “Mas vale uma fortuna?!?!”
- “Vaaaale uuuuma fooortuna!!!”
E o Luís botando mais fogo na fogueira:
- “Mas como existe muito marfim de elefante, não deve valer tanto, não é?”
- “Nãããão o meeeu é essssspeeeeciaaaaal. Não tem ouuuuro 18, 14. O meeeu éééé da meeeelhoooor quaaalidaaaade que tem”
- “É todo o corpo?”
- “É. A miiiinha espiiiiiinha, os meeeuuuus braaaaçooos, tuuuudo é maaaarfimmmmm. Vaaaale uuuuuma fooortuuuunaaaa!”
- “E quando morrer?”
- “Nãããõ. Euuu nãããooo vooou mooorrrrerrr nãããão. Queeem tem osssso deee maaaarfiiiim nãããão moooorrrre nãããoooo”.

A CANALHA

O grupo que era amigo do Senador e organizava as festas em sua homenagem tinha um líder. Era o Adelmir, da Sapataria Azteca. Somente aqueles componentes tinham intimidade suficiente para brincar com o Senador. Ninguém mais na cidade se aventurava a tirar qualquer brincadeira com ele. A esse grupo o Senador se referia como a “canalha”. Todas as vezes que o Adelmir via o Senador pedia a benção:
- “A sua benção, papai”.
- “Fiiiilho oooo quêêê? A rapaaariiiigaaaa daaa tuuuua mãããe diiiz quuuue vooooce é meeeeu fiiiilho praaaa poooooder fiiiicar coooom miiiinha heraaaança!!!”.
Alguém da canalha chegou junto do Senador e disse:
- “Tem um médico novo na cidade que se apossou de uma sala sua”.
Pra quê!. De imediato ele foi até o prédio, invadiu a sala, no meio de uma consulta e protestou, colérico:
- “Quem autooooorizou vooooce invaaaaadir miiiinha saaaaala seeeem cooooombinaaaar cooooomigo o aluuuuguel”
O médico, coitado, ficou sem compreender o que estava acontecendo...

AUTORIDADE

O Senador tinha uma filha, a Maria Epifânia. Ela não gostava nem um pouco desse nome e resolveu mudar. Passou a se chamar Tália Márcia. Quando alguém a chamava pelo seu nome de batismo ela dizia: “Meu nome é Tália Márcia”. E pegou. Era ela quem trazia o pai para a Praça Siqueira Campos e o levava para casa, quando percebia que ele estava ficando muito exaltado com a “canalha”.
O Senador, a cada dia que passava ficava mais rico. Dono de quase todo o Crato, também se considerava a principal e única autoridade na cidade. Um dia o General Lott foi ao Crato, durante a campanha presidencial. Alguém da canalha chegou para o Senador e disse que o Lott ia para um comício sem a sua autorização. Ele não teve dúvidas. Foi tirar satisfações. Quando o General Lott ia subindo no palanque, tentou agarrá-lo, dizendo impropérios. O Lott não entendeu nada.

O general Lott em 1955 tinha impedido o golpe da direita que não queria a posse de JK. Mas no Crato “esqueceu” de pedir autorização ao Senador para o seu comício.

A PRÓSTATA

Um dia, um grupo da canalha estava reunido na Praça Siqueira Campos. Dentre eles, o Melito Macedo. Comentavam sobre a doença do Senador. Todo mundo preocupado com a retenção de urina que estava sofrendo, devido a problemas de próstata. A imagem de tristeza era evidente. Três do grupo estavam na casa do Senador, procurando uma forma de resolver a situação. O Melito saiu de mansinho, dirigindo-se para lá. Ao chegar encontrou, de fato, os três tentando ajudá-lo. O Senador estava em pé, sem as calças do pijama. Dois deles sustentavam-no, um de cada lado, enquanto o terceiro segurava um pinico e a pinta do Senador:
- “Vamos Senador, faça uma forcinha! Isso! Tá pingando... Melito, abre aí a torneira do banheiro. Vamos, Senador, não tenha medo que você não cai! Estamos segurando o senhor”
O Melito, então, bruscamente tomou o pinico da mão de um deles e ficou de costa para o Senador. Abriu a braguilha e ouviu-se o barulho: xoooooooo. Encheu o pinico com urina, até a borda. Em seguida, virou-se para o Senador, mostrou o pinico e disse:
- “Taí, Senador, veja como se mija!”

O TORNIQUETE

O Dr. Gesteira, sempre que podia participava dos ‘papos’ dos boêmios. Num determinado dia, um transeunte desmaiou na Praça Siqueira Campos, próximo ao trecho no qual se reuniam os boêmios. Tinha sofrido um acidente e sangrava muito. Dirigia-se ao Hospital São Francisco. Logo acorreram populares e muitos dos viajantes que se hospedavam no Grande Hotel. Dentre eles, alguns propagandistas de remédio. Coincidiu que o Dr. Gesteira estava junto ao grupo e logo se apressou em socorrer o ferido. Tirou do bolso um lenço de seda, improvisando um torniquete, para estancar a hemorragia. Enquanto isso, um dos propagandistas de remédios, se arvorando de quase médico, começou a querer ensiná-lo:
- “Não, aí não! O senhor vai prejudicar! Faça assim!”.
O Dr. Gesteira, então, parou. Olhou de baixo para cima e disse:

- “Vá à puta que o pariu! Será que um médico não sabe fazer uma porra de um torniquete!”.
O viajante, novo na atividade e não conhecendo o Dr. Gesteira, ficou todo desconcertado. Estancada a hemorragia, autorizou que o levassem para a Casa de Saúde Nossa Senhora da Penha, de sua propriedade. Dirigiu-se para lá e, minutos depois, retornou ao papo com os amigos, após ter medicado e internado aquele desconhecido, às suas expensas... Por isso é que o túmulo dele construído por amigos, no Crato, é tão visitado. Corre a fama de que continua operando. Agora, milagres.

O OVO DE PÁSCOA

O Dr. Gesteira, por ser vizinho e amigo do Luís, era um devedor crônico da Sorveteria Glória. A estima, a admiração, o reconhecimento devotados ao Dr. Gesteira, mantinham o seu cadastro sempre sem restrições de crédito. Um belo dia, entrou na Sorveteria uma senhora da sociedade cratense. Queria comprar um ovo de páscoa. O Dr. Gesteira estava presente. Conversaram animadamente, enquanto a senhora escolhia o ovo. No momento em que ela ia entregar o dinheiro para pagar, o Dr. Gesteira, gentil e elegante como sempre, disse:
- “Não, não, não, isso aí, deixe comigo”.
E dirigiu-se para o Luís:
- “Ponha na minha conta”.
O Luís prontamente aquiesceu. Mas, pensou consigo: “este dinheiro eu não vejo mais é nunca!...”
Dias depois o Dr. Gesteira entrou na Sorveteria e disse:
- “Luís, vim pagar!... A conta não, mas o ovo!...”

O NAMORO

Da mesma forma que o Dr. Gesteira não dava a mínima para o dinheiro, também desprezava as convenções sociais. Manteve, durante certo período, um namoro com uma moça da sociedade. Era um escândalo, por ser ainda casado. Naquela época não havia divórcio. Casou uma vez e nunca mais deixava de ser casado. E o Dr. Gesteira estava pouco se lixando para isso. Aliás, esse namoro nem poderia ser considerado como tal, nos dias de hoje. Apenas costumava sentar-se num banco, no prédio da Estação de Trem, e conversar com a sua pretensa namorada. Prédio, aliás, de uma beleza ímpar, com belos detalhes construtivos. Os mosaicos, por exemplo, tinham vindo da Inglaterra. O casal sentava-se no salão da Primeira Classe, comportadamente. Não pegava nem na mão! Mas isso não evitou que um falso puritano emitisse conceito, repudiando tal procedimento do Dr. Gesteira:
- “Estava enxovalhando a honra da sociedade cratense.”
Teve o desplante de ir ao Agente da Estação fazer uma reclamação, solicitando que ele impedisse aquele absurdo, não permitindo o namoro naquele recinto. O Agente, homem educado e de bom senso, repudiou e disse que nunca iria impedir que sentassem no banco e conversassem o tempo que quisessem...
Visão do Cristo Redentor que o Dr. Gesteira e sua namorada tinham do interior do salão de Primeira Classe da Estação.

O RÁDIO INGLÊS

Dr. Gesteira chegou à Sorveteria pela manhã, como era seu costume, e pediu um café. Servia-se sempre em pé, no balcão, e bebia apenas dois goles. Nesse dia pediu ao Luís para acompanhá-lo até o seu apartamento. Chegando lá, mostrou-lhe um rádio inglês, de excelente qualidade. Então, falou:
- “Luís estou precisando ir urgentemente a Fortaleza e queria que você me comprasse esse rádio, por mil e quinhentos cruzeiros. Pode perguntar ao José Cirilo, que ele vale muito mais”.
- “Não, Doutor Gesteira. Eu adianto o dinheiro. Se o senhor faz questão, eu posso até ficar com o rádio, mas quando o senhor me pagar eu o devolverei.”

- “Não, não! O negócio já está encerrado! Me dê os mil e quinhentos e pode levar o rádio”.
E, de fato, durante muitos anos, o Luís pode ouvir, com absoluta nitidez, a programação em português, da Rádio de Moscou. E pensava no desprendimento e generosidade daquele médico, para quem o dinheiro não tinha a menor importância!

O rádio do Dr. Gesteira era semelhante a este, pertencente ao meu tio Hermógenes Martins e guardado como uma relíquia por suas filhas.

A ALMA

O Aloísio era um daqueles que ficava em volta dos grupos de figurões que constituíam as duas Câmaras da Praça: Comuns e Lordes. Era baixinho e muito inteligente. Mais ouvia, do que falava. Correu um dia a estória de que o Aloísio tinha visto uma alma. Pra quê! Foi expulsão sumária, por parte do Júlio Saraiva. Não podia nem mesmo chegar próximo do grupo.
- “Mentiroso safado! Com estória de alma. Onde já se viu isso”, sentenciava o Júlio.
Participava da “Câmara dos Comuns” o Dr.José Nilo, dentista, pessoa de finíssimo trato, muito inteligente. Dono de uma biblioteca invejável e de um senso de humor inigualável. O Dr. “Zé” Nilo, querendo botar fogo na fogueira, falou:
- “Ô Júlio, você é homem inteligente, de opinião formada. Por que não deixa o Aloísio voltar pra perto do nosso grupo! Talvez ele possa até esclarecer essa estória da alma!”
E o Júlio, irredutível. Até que um dia permitiu que o “vidente” voltasse, mas com a condição de não falar nessa estória besta e mentirosa dele! Assim, o Aloísio pôde voltar “aos quadros constituintes vigentes”, como dizia o General Lott.
Passados alguns dias, o Dr. Zé Nilo voltou à carga:
- “Aloísio, que estória estranha essa tua de ter visto alma?”
- “Não Doutor, eu vi mesmo! Não sou de mentir, não!”.
E o Júlio já começou a ficar nervoso! Quando isso acontecia, começava a coçar os ombros. Com o braço direito, passando por sobre a cabeça, coçava o ombro esquerdo. E o contrário, com o braço esquerdo. O Zé Nilo, percebendo o mal estar do Júlio, insistiu:
- “Ô Júlio, deixa o homem contar a estória dele!”
- “Vai, conta a tua estória mentirosa!”.
E o Aloísio, humildemente e crente, contou a sua estória:
- “Uma noite saí daqui da praça e fui à Glorinha. De lá fui para casa”.
Morava numa baixada de terreno que existia depois da Igreja de São Francisco. Embora fosse uma região pouco habitada e com muito mato, tinha uns postes que iluminavam o caminho. Prosseguiu o Aloísio:
- “Quando eu ia na vereda, eis que avisto um vulto, vindo na direção contrária! Tinha uma cabeça muito comprida e feia! Não era coisa deste mundo! Comecei a tremer. Quando eu já estava pensando em voltar correndo, eis que alma entra de mato adentro...”
Neste momento, o Júlio interrompe a fala do Aloísio, fica de pé, abre bem os braços e, aos berros diz:
- “JÁ SEI, JÁ SEI! TUA ALMA FOI CAGAR...”

O BATALHÃO

Padre Gomes

Padre Gomes de Araújo, professor de História, foi um dos principais historiadores do Crato. Ele e o Dr. Irineu Pinheiro são os autênticos “Capistrano de Abreu” da cidade. Gostava muito de uma polêmica, principalmente quando o assunto versava sobre o Padre Cícero. Considerava o milagre da hóstia uma grande farsa. Sobre a batina usava uma capa que estava sempre esvoaçante, tendo nas mãos uma inseparável pasta preta. Nela, diziam ter um revolver. Um dia a minha mãe indagou se era verdade. Ele, rindo, abriu a pasta e mostrou para ela, que viu não ter revolver coisa nenhuma! Pela manhã, quando passava pela Praça Siqueira Campos rumo ao colégio, gostava de um dedo de prosa com o Júlio Saraiva. Era um dos poucos padres que falava com o Júlio, famoso por ser um pesquisador da vida privada dos padres e divulgar as suas fraquezas. E o Padre Gomes:
- “Como vai Júlio, já se converteu?”
- “Não, padre, vou esperar pela outra vida, que dizem que existe, para eu me converter! Eu vou lá me converter, padre! Lá vem você, agora, querer me converter!”
E o Padre Gomes achava graça! E o Júlio continuava:
- “Na certa o senhor já celebrou uma missa e invocou, com essas mãos pecaminosas, a presença de Cristo na hóstia. O senhor acredita, padre?”
E o Padre Gomes, sabendo que não ia nunca mudar a opinião do Júlio e nem querendo polemizar:
- “Não, também não”.
O Padre, mudando de assunto:
- “Mas Júlio, eu soube que você é contra a vinda do Batalhão de Engenharia de Crateús para Barbalha. Prefere que ele vá para Picos/PI. Logo você, homem, que é um defensor do Cariri! Já pensou no progresso que vai ter a região?”
- “Mas Padre, tem um problema. Serão, no mínimo, uns 400 homens solteiros aqui! É homem demais! Onde é que esses homens vão trepar?...”

A CONVERSÃO

Imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima, tendo ao lado o Padre que a acompanhava.

O Crato estava se preparando para receber a imagem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima. Cada rua fazia uma decoração especial. Lembro-me que, no quarteirão da Rua Nelson Alencar, onde eu e o Luís morávamos, tinha um enorme terço, idéia do meu irmão Raimundo, localizado quase em frente à casa do Luís. Ou seja, toda a cidade estava numa grande expectativa. Era o comentário em todas as rodas.

Imagem de Nossa Senhora de Fátima percorrendo as ruas da cidade. Observamos a rua toda engalanada. O meu tio-avô Hermógenes Martins aparece à direita, de terno.

Padre Gomes, num dos seus habituais encontros com o Júlio Saraiva, para provocá-lo, comentou:
- “Olha, meu amigo, aproveite a vinda da Santa e se converta! Salve a sua alma, homem!”
- “O conselho veio tarde, Padre! Pois se algum dia eu tive alma faz tempo que a caguei!”

O POETA

Júlio Saraiva era muito inquieto. Sentava-se no banco da Praça, discutia, expunha as suas idéias. De repente levantava-se e começava a coçar um ombro, sempre com a mão trocada e passando sobre a cabeça. Um dia, resolveu fazer algo diferente. Foi até à beirada da calçada. Olhou para cima e sapecou:
- “Pronto, agora virei poeta! Lá vai”:
“Lá vem a lua saindo
Redonda como um solidéu
Não é lua não é nada
É o olho do cu do céu!”

MIRINDIBA

O Júlio Saraiva era também uma espécie de Burle Marx da cidade. Era ele quem projetava os jardins públicos e orientava a sua implantação. Sempre utilizava as árvores da região, para possibilitar sombreamentos. Mas nunca chegou a utilizar uma conhecida por “mirindiba”, bastante apreciada como alimentação dos veados (o animal mesmo). Dentre as árvores da Siqueira Campos tinha umas palmeiras imperiais que já estavam necessitando de substituição.
Por ser um espaço muito democrático, no qual se reuniam os mais distintos grupos de pessoas, também contava com representantes do que hoje chamaríamos “gays”. O local de suas reuniões era, justamente, embaixo das tais palmeiras.
Certo dia o Padre Gomes, passando por lá, na sua costumeira conversa com o Júlio Saraiva, sugeriu:
- “Júlio, por que você não substitui estas palmeiras que estão morrendo por “mirindiba”. Os veados da praça vão gostar!!!”

Em primeiro plano a Praça Siqueira Campos e as palmeiras, sob as quais se reuniam os “gays”. Ao fundo o Grande Hotel e, no térreo, a Sorveteria Glória.

RUI BARBOSA

Numa das edições da Revista cratense “A Província” o Júlio Saraiva foi homenageado com um belíssimo artigo de Zilberto Fernandes Teles. Além de traçar um real perfil, contou fatos da verve afiada desta figura ímpar da “Câmara dos Comuns”. Embora se dizendo ateu, agia como um verdadeiro seguidor de Cristo. Sempre que algum pedinte aproximava-se dele, antecipava-se e, carinhosamente, dizia:
- “Não me peça, eu lhe dou...”
Mas era implacável com as pessoas que não costumavam usar da inteligência. Não contemporizava. Certa ocasião, em conversa com alguém que tinha um avô quase analfabeto, o assunto passou a ser sobre música. Júlio era admirador exaltado da música clássica. Este interlocutor disse, recebendo a imediata resposta do “Velho Bode”, como também era conhecido:
- “Para mim tanto faz ouvir um clássico como um baião do Luiz Gonzaga.”
- " Realmente, não faz diferença. É a mesma coisa de uma carta escrita por seu avô e outra por Rui Barbosa... "

O ZOOLÓGICO

Papai sempre foi um apaixonado por pássaros. Chegou até a fabricar gaiolas ou viveiros para eles. Eram tarefas executadas à noite, com a ajuda do “Compadre Zé” (José Pereira). E eu sempre acompanhando, querendo ajudar. Meu pai gracejava, dizendo:
- “Compadre Zé, este menino ‘a trabalha’ muito, não é?!”
Esta paixão por passarinhos perdurou por toda a sua longa vida. Nos seus últimos anos não podia mais cuidar, porém ficava ouvindo o seu canto, extasiado. Faleceu em casa, às 2h30 da madrugada. A sua velha sabiá não mais cantava. Porém, naquele momento, ouviu-se o seu mavioso canto.
Por algum tempo chegou a criar outros tipos de animais. Lembro-me de umas marrecas. Para tanto, foi feito um pequeno tanque que, em certas ocasiões, transformávamos em piscina. O certo é que as marrecas começaram a importunar, e mamãe deve ter aconselhado a doá-las para o pequeno zoológico, que tinha no centro da Praça da Sé, idealizado pelo Júlio Saraiva, por ocasião das festas do Centenário (1953). Lembro-me da grande atração que era um jacaré chocando uma quantidade enorme de ovos. Diante dos meus protestos em doar as “minhas” marrecas, papai dizia que eu podia ir visitá-las, lá na Praça. O certo é que, ainda hoje, qualquer marreca que vejo penso que são as “minhas”. Tornaram-se imortais...
Sob os protestos do Júlio, o Prefeito, para economizar a ração dos animais, acabou com o Zoológico.
Em frente à Praça Siqueira Campos, ao lado da Sorveteria Glória, tinha a casa “dos Leões”. Eram duas estatuetas de leões, que existiam no portal de entrada da residência. A casa foi demolida e o Júlio recolheu os “leões”. O prefeito, que acabou com o pequeno Zoológico, pediu ao Júlio as estatuetas para colocá-las em determinado projeto da Prefeitura. Recebeu a seguinte resposta:
- “Você não gosta de animais que comem, eu não lhe dou os animais que não comem”

Marcelo tomando banho no tanque das marrecas.

FRESCURA

Júlio Saraiva era freqüentador assíduo da Praça Siqueira Campos. À noite a sua presença era sagrada. Durante o dia, naquelas horas em que o calor era mais intenso, ia sempre à Sorveteria Glória tomar um refrigerante ou algo gelado, que abrandasse o calor.
O Veridiano, meu primo, que hoje mora em Teresina, trabalhou certo período na Sorveteria do Luís. Costumava atender ao Júlio. Um dia, porém, ficou confuso com um seu pedido, ao pé do balcão:
- “Me dá uma frescura, aí.
- Oxente, “seu” Júlio, uma frescura?
- Sim, uma frescura!
- Não estou entendendo. O senhor quer um refresco?
- Não, refresco é fresco duas vezes. Eu só quero uma frescura.

AROEIRA

O Sr. José Horácio Pequeno era Prefeito do Crato, tendo como Secretário de Obras, o Júlio Saraiva. Nessa época a Chesf começou a instalar a rede elétrica, que possibilitaria à cidade receber, finalmente, os benefícios tão longamente esperados da energia gerada na cachoeira de Paulo Afonso.
O Prefeito convocou o seu Secretário de Obras e determinou que providenciasse a retirada de toda a rede elétrica pública, incluindo postes e fiações, pois a Chesf iniciaria a instalação da nova rede.
E assim foi feito. O Júlio estava supervisionando a retirada de um poste (eram todos de madeira), e ficou admirado ao perceber que o trecho que estava enterrado há muitos anos encontrava-se em perfeitas condições. Até as marcas do machado que beneficiara aquela madeira estavam intactas. Diante da sua admiração, o operário explicou:
- Ah, “seu” Júlio! Isto aqui é aroeira. É o miolo da aroeira. Não acaba nunca. É mesmo que ferro!
- Ah, com os diabos! Agora eu descobri uma coisa!
- O que foi, “seu” Júlio?
- A mulher lá em casa é feita de miolo de aroeira...

Minha irmã Iara encostada em um poste de Aroeira
que existia em frente à nossa casa, na Nelson de Alencar.

REVOLTA

Um dos freqüentadores mais assíduos da “Câmara dos Comuns” era casado há muitos anos, mas vivia intrigado com a mulher. Moravam sob o mesmo teto, dormiam no mesmo leito, mas era como se vivessem em planetas distintos. A conversa entre eles era indireta, tendo sua filha como mediadora.
Uma noite, quando o casal se encontrava deitado para dormir, surgiu certa “vontade”... Como, devido à idade, este desejo estava ficando raro, resolveu relevar aquela discórdia e fazer uma trégua rápida. Usou a técnica de tocar o dedinho do pé no dedinho do pé da mulher. Uma mão boba aqui, acolá. E ficou no “ponto”! Quando pensou que ela ia aceitar, que nada! A mulher, bruscamente virou-se de costas para ele e ficou bem na extremidade da cama. Com aquela recusa, ficou indignado, possesso mesmo! Sentou-se e, esbravejando e agitando o braço disse, com extremo desprezo:
- “Quer saber duma coisa: pegue essa sua perereca e meta no seu rabo”.

POVO “BÃO”, UAI!

Chico Soares fazia parte dos freqüentadores assíduos da Praça. Depois de um período em Belo Horizonte, passou a participar dos jogos de buraco, na casa do Luís, que aproveitou para perguntar como tinha sido a sua experiência em Belo Horizonte. E o Luís ficou na dúvida se ele estava brincando ou falando a verdade. Contou o seguinte:
- “Ah! Fui muito bem, Luisinho. Povo muito bom!! Você sabe que eu já estava gostando! Já estava até falando ‘Belzonte’, ‘Trem Bão’, ‘Uai’. Olha esses óculos. Não são bons? Pergunta quanto custou.”
- “Não tenho a menor idéia”.
- “Não custou nada! No tempo em que morei lá, comprei fiado em tudo quanto era loja e não paguei a ninguém. Que povo acolhedor!!!”

O FESTIVAL

Na década de sessenta eram comuns os festivais de canção popular. O Crato, guardadas as devidas proporções, também organizou os seus festivais. Realizavam-se na quadra de esportes, próxima ao Hospital São Francisco.
Nesta mesma época o Chico Soares resolveu fazer um empréstimo no Banco. O Gerente foi taxativo:
- “Para você eu não empresto. A não ser que tenha um avalista bom, eu empresto”.
- “Serve o Brigadeiro?”.
O gerente aceitou na hora e já preparou a letra para colher as assinaturas. O Brigadeiro era rico e dono de um grande patrimônio.
Lá se foi o Chico dar a “facada” no amigo. E o Brigadeiro:
- “Chico, eu não sei não. E esse Gerente te empresta?”
- “Com o seu aval ele empresta até o Banco todo!” ·
O Brigadeiro, coçando a cabeça, pensou: “Será que esse ‘fio duma égua’ vai pagar? Mas ele é meu amigo! Amigo é para ajudar aos outros. Eu vou arriscar”. E falou:
- “Me dá essa letra que eu assino!”
Chegou a data do vencimento e nada de pagamento. O Brigadeiro recebeu a primeira cobrança do Banco, mas pensou: “Vou dar mais uns dias. Ele deve pagar. Não vai fazer uma desfeita dessa com o amigo”
Diante da segunda cobrança, o Brigadeiro resolveu ir à Repartição, onde o Chico trabalhava. E numa sala bem comprida a sua mesa ficava lá nos fundos. O Brigadeiro, logo da porta, segurou a letra com as duas mãos, levantou-a bem alto e falou:
- “Chico, Chico é a letra que você não pagou e eu fui pagar lá no Banco. E aí?”
O Chico, com a cara mais lisa do mundo:
- “E ai? Ora Brigadeiro não é uma letra? Bota uma música nela que é capaz de você ganhar o festival de música, lá na quadra!!!”

O RICO

Uma das coisas que Chico Soares sabia fazer era declaração de imposto de renda. Por este serviço ele cobrava um determinado valor. Um dia surgiu a oportunidade de fazer a declaração de um grande industrial e homem rico de Orós. E o Chico pensou: “É agora que eu vou pegar num bom dinheiro!” Não quis nem que ele viesse ao Crato pegar a declaração. Ele mesmo foi a Orós. Ia pensando em cobrar um bom dinheiro. Ao avistá-lo, o industrial veio ao seu encontro. Agradeceu o favor que o Chico fizera e, ao mesmo tempo, enfiou no bolso da sua camisa uma nota. Quando o Chico, entusiasmado foi olhar o valor, era uma nota que, nos dias de hoje, valeria uns cinqüenta reais. A decepção foi grande. Pensou que ia se benzer e quebrou a testa. Comentou:
- “É Luisinho, o homem é sabido demais! Tinha que ser rico mesmo...”

NÃO IA MAIS SAIR DE LÁ

O Chico Soares também era um freqüentador do cabaré da Glorinha. Ia mais para bater papo. Um dia, estava com a esposa na Praça Siqueira Campos quando ia passando a Glorinha. Falou para ela:
- “Antonieta você não conhece a Glorinha, não é? Olha, é aquela ali. Aquela loura!”
- “Eu quero lá saber de rapariga! Respeite-me, Chico”.
- “É porque você nunca foi lá! Se você fosse, não ia mais querer sair de lá!”

A CHUVA

Um dia o Chico Soares ia saindo de casa com a esposa e percebeu que estava “bonito para chover”, como diz o cearense. Sugeriu, então:
- “Antonieta vamos voltar para casa que vai chover”.
Como de fato. Foi só chegar e começou uma chuva pesada. Então ele saiu-se com o seguinte comentário, que mereceu o devido protesto da Dona Antonieta:
- “Antonieta, se esta chuva fosse de rapariga, eu ia destelhar a casa, com a tua ajuda, tapar todos os esgotos para enchê-la todinha de rapariga!”


CADÊ O TREM?

O Crato, por ser fim da linha férrea, tinha sempre às segundas feiras, além do trem normal, vindo de Fotaleza, um especial, vindo da Paraíba. Este era o que trazia a maioria dos feirantes para a grande feira livre, que ocupava todas as ruas centrais da cidade. Esta feira era tão importante que, quando coincidia com o sete de setembro numa segunda-feira, as comemorações relativas ao Dia da Independência eram antecipadas para o domingo. Não tinha feriado. Até os colégios funcionavam.
O Chico Soares gostava muito de fazer ponto na Praça Francisco Sá, também conhecida como Praça da Estação ou Praça da Coluna da Hora. Ficava ouvindo o papo dos feirantes e participando das conversas. Foi lá que teve a oportunidade de ouvir, por parte de um deles, oriundo de Pernambuco e que, portanto, não usava o trem, fazer o seguinte comentário:
- "Mas rapaz, eu já vim ao Crato várias vezes e nunca vi um trem! Eu não conheço um trem!”
- “O que?!?! Um trem?!?! Tanto trem parado aí, no outro lado da estação e você nunca viu um trem?!”


Desfile de Sete de Setembro com a participação do Tiro de Guerra e dos Colégios. Nas segundas feiras essa rua (João Pessoa) e todas as demais do centro da cidade eram, literalmente, tomadas pela feira. Por isso que a comemoração era antecipada para o Domingo.
- “Não, nunca vi”.
O Chico Soares pegou o matuto pelo braço e disse:
- “Por isso não. Agora eu vou lhe mostrar um trem”.
Começou pelo vagão de segunda classe:
- Tá vendo aqui? Este é o vagão de segunda classe do trem. Está notando que os bancos são de madeira? Por isso a passagem é mais barata, para as pessoas pobres”.
E continuou:
- “Este é o vagão do trem para a primeira classe. Veja que os bancos são forrados, de couro. A passagem é mais cara”.
Em seguida entrou no restaurante:
Rua Dr. João Pessoa totalmente ocupada pela feira.
- “Olhe, aqui é o restaurante do trem. As pessoas que têm dinheiro comem aqui.”
E o matuto admirado:
- “E a comida?”
- “Tem a cozinha do trem, para atender ao restaurante do trem!”
Mais adiante mostrou o vagão bagageiro:
- “Neste vagão vão as malas maiores dos passageiros do trem”.
Por fim chegou à máquina:
- “Aqui é a máquina do trem”.
Belíssimo prédio da Estação onde o Chico foi mostrar o trem para o matuto.
E o matuto, percebendo que não tinha mais nada para mostrar:
- “Ah, é a máquina do trem? E ‘quedê’ o trem?”

MELHORAL RECICLÁVEL

Chico Soares contava uma estória de uma pessoa de uma família tradicional que era muito “mão fechada”. Assim são chamados, no Ceará, aqueles que são avarentos. Mas este era além da conta. Quando tinha dor de cabeça e era obrigado a tomar um Melhoral, fazia o seguinte: Amarrava um barbante no comprimido e engolia. Quando a dor de cabeça estava passando, ele puxava o Melhoral de volta, guardando para a próxima dor!...

A CARRADA

Um dia, O Luís estava estacionando o seu carro na “sombra do BEC”, local da antiga Casa dos Leões, quando ouviu o chamado do Chico Soares, que estava na Praça.
- “Luisinho, Luisinho, vem cá! Velho não vale nada!! Acabou de passar por aqui um caminhão com uma carrada de estrume. Chega ia derramando pelas laterais! Luisinho, estrume não é bosta?
- “É. Pode ser de vaca, de bode, de galinha. Mas é sempre bosta”.
- “Por aí você vê como nós, velhos, não valemos nada”.
- “Mas, por que, Chico?”
E o Chico, indignado:
- “Alguém quis comprar essa carrada de estrume e o dono se negou a vender. Disse que aquela já estava vendida e tinha outras tantas para entregar. E que não estava mais encontrando estrume. As próximas vendas já seriam por um preço muito mais alto. Agora eu te pergunto, Luisinho. Se alguém passasse aqui com uma carrada de velho, oferecendo de graça, alguém ia querer ficar com pelo menos algum de nós?...”

NUM PNEU

No Crato era comum as pessoas chegarem a uma idade bem avançada, quase centenárias. Alguns desses foram encurvando, provavelmente por algum problema de coluna. Um que estava com este problema muito acentuado mereceu o seguinte comentário do Chico Soares, na Praça Siqueira Campos:
- “Sabe o Sr. Salim? Ele tá encurvando tanto, tá tão encurvado que, quando morrer vai ser enterrado dentro de um pneu...”

NOS BRAÇOS

Muitos membros de uma família no Crato eram portadores de uma estranha doença. Apresentavam problemas nas pernas, ficavam sem forças. Um deles, o Joaquim, quando ia passar a marcha do seu carro tinha que ajudar a perna com a mão. Da mesma forma para sair do veículo.
Um dia na praça, o Luís, Chico Soares e outros, começaram a tratar dos parceiros do jogo de baralho, no seu apartamento. O Joaquim perguntou:
- “Tem um lugarzinho para mim, hoje?”
- “Tem Joaquim. Pode ir!”
O Chico Soares, que ia para o jogo, achando que o Joaquim não dava conta de subir as escadas, disse logo:
- “Olha, Luís, mas eu não vou subir tuas escadas com o Joaquim nos braços, não!!”

CORNO INDO E VOLTANDO

Chico Soares tinha um filho de nome Chico Pão. Destacava-se bem no futebol do Crato. Certo dia vinha dirigindo seu jeep quando percebeu o pai atravessando a rua, calmamente. Resolveu, então, brincar com ele. Ao passar perto, gritou:
- Sai do meio da rua, “seu” corno velho!
Chico, sem nem olhar para o motorista, respondeu, a todo pulmão:
- Corno é teu pai, “seu fela” da puta!

O SABOR DO PICOLÉ

Desde que comuniquei, através do Blog do Crato, coordenado pelo Dihelson Mendonça, o endereço deste Livro na Internet, tenho recebido comentários.
O Antônio Morais, muito amigo do meu tio Luís, contou mais alguns “causos” do Chico Soares, que me apresso a incluí-los no “Só no Crato...”
Quando o meu tio foi morar no Rio de Janeiro, repassou a Sorveteria Glória para o Sr. Miguel Siebra de Brito. Em certa ocasião estava ele na sorveteria, fazendo companhia ao Chico Soares, que tomava uma cerveja. Então, tocou o telefone e ele foi ao escritório atender, e pediu para o Chico prestar atenção ao local.
Nesse momento, entram duas estudantes do Colégio Santa Teresa e perguntam se tem picolé. O Chico, de imediato, disse que sim. Elas, lógico, indagam de que é que tinha. Ele vai até o freezer, levanta a tampa e observa uma variedade de picolés, em diversas cores. Sem ter a menor idéia dos sabores, vira-se para as mocinhas e diz:
- De grude!

A MÃE DO QUIXABA

O Quixaba era muito conhecido no Crato. Nos dias de hoje seria dito ser um autêntico afro-descendente. A sua cor negra era pura, imprescindível saber para entender o presente fato.
O Sr. Antônio Morais namorava a filha do Sr. Miguel Siebra, na época em que o Chico Soares espantou as freguesas com o tal picolé de grude.
Somente dez anos após o casamento, teve coragem de contar essa história para a Dona Nair. Ela, que já não simpatizava com o Chico Soares, criou mais abuso dele.
Depois de alguns anos, resolveu levar o Chico Soares para almoçar em sua casa, numa tentativa de acabar com essa mal querença.
A esposa do Sr. Antônio é uma católica fervorosa e, como tal, devota de Nossa Senhora Aparecida. Na sala principal e em local de grande destaque tem uma imagem de uns 30 cm de altura, da padroeira do Brasil. O Chico, usando a máxima de que perde o amigo, mas não perde a piada, disse:
- Dona Nair, onde foi que a senhora encontrou essa imagem da mãe do Quixaba?
Até hoje, quando o Sr. Antônio fala do Chico Soares para a Dona Nair, ela diz, com enorme desprezo:
- Não sei como você pode ter sido amigo dum cabra daqueles!

JOSINO

A conversa estava animada entre os freqüentadores da Praça Siqueira Campos, mas sentiram a falta do Josino e da sua famosa frase: “Vai correr uma mão de...”
- “Cadê Josino? Nunca mais ele apareceu por aqui!”
Até que alguém soube que ele tinha sido hospitalizado e estava em casa, ainda muito doente. O Brigadeiro Macedo sugeriu:
- “Pessoal, vamos fazer uma visita ao Josino. Afinal de contas, é nosso companheiro daqui. Pode ser que ele esteja precisando de alguma coisa”.
Mas ninguém sabia onde morava o Josino. Por fim, descobriram que ele morava para as bandas do Seminário. E lá foi a comitiva, em busca da casa do Josino. Perguntaram a uma pessoa que deu a informação correta:
- “É aquela casa onde tem uma gaiola com um cabeça vermelha”.
Ao chegarem, encontraram o Josino deitado numa cama Patente, bastante cadavérico e arquejando. Uma irmã, já velha, cuidava dele. Quando o grupo ficou em torno da cama, Josino falou para a irmã:
- “Trás aí uma mão de cadeira”.
- “Não se preocupe não, Josino. Nós estamos bem. Você logo, logo vai ficar bom e voltar lá para a praça.!”
Demoraram mais um pouco e o Josino voltou a falar para a irmã:
- “Ô menina, trás aí uma vela que vai correr uma mão de mooooorte...”
E morreu mesmo!!!

PÁSSARO DE DOIS BICOS

O Juvêncio Bezerra era proprietário de um caminhão. Costumava fazer fretes para o sul e de lá para o Ceará. Sua técnica para conseguir fretes de retorno eram umas histórias fantásticas que ele contava. Só um detalhe: era tudo mentira. E ele conversando com o Luís, na Praça Siqueira Campos:
- “Mas Luís, paulista é o bicho mais besta do mundo! Todas as mentiras que eu conto eles acreditam! Um dia eu me ofereci para levar uns passarinhos daqui do Crato, para agradá-los, e eles me pediram um Curió. Então eu expliquei que Curió é de Minas ou Goiás. Não é daqui. Eles insistiram, e eu disse que ia levar um Bico de Lacre, passarinho que só existe na Serra do Araripe, perto do Crato. Disse que ele tinha dois bicos. Ficaram admirados demais! Eu ainda exagerei. Disse que um bico era pra cantar e o outro pra comer. Pra quê fui falar! Logo apareceram vários interessados, já querendo me dar dinheiro adiantado. Cada um oferecia mais. Porém eu disse que era um passarinho muito difícil de pegar. Então perguntaram como era que ele cantava e comia ao mesmo tempo. E eu expliquei que usava um bico de cada vez”.
- “E ai Juvêncio, você ainda está enrolando esses paulistas?”
- “Não, eu não voltei mais lá. Tenho que arranjar frete com outros. Desta vez exagerei na mentira”.

INGLÊS FLUENTE

Uma Universidade americana resolveu desenvolver um projeto de auto-suficiência em uma região de um país sub-desenvolvido, no intuito de aproveitar a potencialidade local e investir no seu desenvolvimento. O Presidente da OEA de então, que era brasileiro e cearense, ao tomar conhecimento do interesse da Universidade, indicou a região do Cariri, no Ceará, para a implantação dessa idéia. Assim, foi firmado um convênio entre a Universidade americana e a Universidade Federal do Ceará, para implantação do Projeto Asimov.
Vieram vários técnicos americanos, todos jovens falando ainda um português bem atravessado. Só com muita boa vontade era possível entendê-los. Anos depois, no começo da década de oitenta, realizei um trabalho num projeto com o Banco Mundial. Um dos técnicos me chamou a atenção, pois falava bem o português, mas com um forte sotaque caririense. Conversando com ele, soube que fizera parte desse projeto, tendo morado no Crato. Perdera o sotaque americano, mas o do Crato...
Muitas indústrias foram implantadas, tendo à frente pessoas da região.
Posteriormente foi oferecida, a alguns dos participantes do projeto, a oportunidade de conhecer os Estados Unidos. Dentre eles foi o José Justino, habitual freqüentador da Praça Siqueira Campos.
Uma viagem dessas, na década de sessenta, era um acontecimento! Um mundo totalmente novo! O José Justino, que é moreno, resolveu assistir um filme. Ao entrar no cinema, pensando que estava no Cassino, foi barrado por não ser branco. Encarou, porém, esse fato com naturalidade, já que não estava em seu país. Procurou um cinema só para pretos. Quando ia entrando, foi novamente barrado: não era preto! O José Justino, perplexo, perguntou:
- “Que diabo eu sou, então? Não sou gente, não?”
Esta viagem rendeu muitos outros acontecimentos pitorescos. O José Justino contou ao Luís o seguinte fato: um dos viajantes resolveu comprar um relógio, para levar de lembrança. Não falava uma palavra de inglês, mas isso não era problema, pois tinha certeza de que falava inglês fluentemente. Com a maior naturalidade, dirigiu-se à vendedora e, apontando para um relógio, falou, enrolando a língua:
- “Quanta custar esta relógia?”
A moça totalmente atarantada, sem entender nada. E ele novamente falou:
- “Mim falar bem devagar. Mim querer esta relógia. Mim querer esta relógia. Quanto custar preço desta relógia?”.
O José Justino, vendo aquela presepada, chegou e disse:
- “O que o senhor está falando não é inglês não. A moça não está entendendo nada!”
E ele, indignado com aquele comentário:
- “Como não!!! Não é esse o inglês que os gringos falam pra gente lá no Crato e a gente entende tudo!...”

DISCRIMINAÇÃO NO CRATO

No ano de 2008, a minha turma de Engenharia completou 40 anos de formatura. Como uma forma de congregar os colegas, organizamos um blog onde são disponibilizadas fotos e histórias de “causos”.
O meu colega, João Vianney Gurgel Fernandes, contou um que se passou no Crato e, de imediato, pedi a sua autorização para incluir no “Só no Crato...”, no que fui atendido.
Na nossa época o curso de engenharia tinha os dois primeiros anos como básico. No terceiro ano, você podia escolher por fazer Civil ou Mecânica. Eu escolhi Civil e o Vianney, Mecânica.
A turma do Vianney, então, foi fazer estágios nas indústrias do Plano Asimov, no Cariri, mais precisamente nas cidades do Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha.
Num final de semana, um dos coordenadores do projeto, residente no Crato, convidou a turma de estudantes para uma visita ao Clube Grangeiro.
Ao chegarem ao clube, ficaram bastante entusiasmados com a mulherada na piscina e pensaram que poderiam surgir alguns namoros. Afinal de contas, podiam tirar uma onda de jovens da capital e, principalmente, estudantes de engenharia. Tinham o seu real prestígio!
Antes, tentaram, sem muito sucesso, uma partida de futebol naquele campinho que tem ao lado. Logo alguém apareceu com uma garrafa de pinga, o que apressou a ida para a piscina. Era a hora de comprovar o prestígio que acreditavam ter, segundo o Vianney, junto às “garotas”, como se dizia à época.
Foi só eles caírem n’água, todos os freqüentadores se retiraram. Não apenas da piscina, mas do local. Simplesmente foram embora, resmungando. O Vianney conta que chegou a ouvir o seguinte diálogo, entre duas moças que se afastavam, indignadas:
- É fulana, hoje aqui deu um “cabocal”, hein!
- É, esse clube já foi mais bem freqüentado.
Por isso, para o Vianney, que já se imaginava inserido na fatia nobre da sociedade, teve seu primeiro contato com a discriminação. Foi uma dura experiência.

Pela foto da época, o meu colega não poderia ser classificado como um “cabocal”, mesmo nos padrões discriminatórios de então.

MEU AMIGO!

No Crato existiram muitos projetos com financiamento da Sudene. José Justino foi um dos beneficiados pelo Projeto Asimov e também dera entrada em projeto na Sudene. Mas o tempo passava e não obtinha nenhuma resposta. Certo dia, lamentando esse fato numa conversa na Praça Siqueira Campos, estava presente o Juvêncio Bezerra (o do pássaro de dois bicos), que gostava de contar muita mentira e não fazia segredo disso. Então disse:
- “Mas Justino, por que você não me falou há mais tempo. Eu sou amigo de infância do João Gonçalves, o Superintendente da Sudene. Fomos criados juntos, em Lavras da Mangabeira. Tomei muito banho no riacho com o Gonçalves. Querendo, em vou a Recife com você e prometo que a gente desencava esse projeto!”.
Mas o Justino pensou que fosse mais uma brincadeira do Juvêncio, uma das suas mentiras. Passados alguns dias tornaram a se encontrar e o Juvêncio voltou a insistir:
- “Eu tenho que fazer um frete para Recife e você vai comigo, no meu caminhão!”
O Justino acabou aceitando a oferta. Ia arriscar! No entanto, foi pensando durante a viagem toda: “Eu vou passar é vergonha! Como é que o Juvêncio vai fazer esse homem tão importante lembrar dele quando ainda eram meninos?”. Chegando em Recife dirigiram-se para o prédio da Sudene. Ambos muito bem vestidos de paletó e gravata. Na ante-sala do Superintendente, o Juvêncio, com toda a intimidade, falando alto, foi logo dizendo que queria falar com o ‘Gonçalves’. A Secretária toda formal, folheando a agenda, perguntou:
- “O Senhor marcou audiência?”
- “Audiência coisa nenhuma, menina. Diz a ele que é o Juvêncio Bezerra que está aqui”.
O Justino tomou o maior susto! Abriu-se a porta do Gabinete do homem e ele saiu de lá, com os braços abertos e dizendo:
- “Mas Juvêncio velho!!!! Meu amigo!!!”
Foi aquele abraço de quebrar costela.

A BRECHA

O Superintendente da Sudene, com o braço no ombro do Juvêncio, levando-o para o Gabinete e este, por sua vez, segurou pelo braço do Justino e o arrastou com ele. A Secretária não entendeu nada! Começaram a conversar sobre os tempos de menino. O Superintendente:
- “Lembra quando a gente ia ‘brechar’ as meninas tomando banho nuas, no rio?”
- “Lembro demais! Tinha até uma espera (para caçar avoante) onde a gente se escondia e ia, um de cada vez, para apreciar as meninas!”
- “Teve uma vez que o Zezinho foi o primeiro a olhar e disse que naquele dia não estava prestando e que ninguém precisava olhar. E eu fui olhar. Quando olhei, vi foi a irmã dele nuinha. Aí eu disse: Pra mim está especial!!!”

MENTIROSO?

Depois de muita conversa, muito riso, o Superintendente perguntou:
- “Sim, e aí Juvêncio, você está precisando de alguma coisa de mim aqui na Sudene?”
Só então o Juvêncio apresentou o Justino e explicou o motivo da visita. De imediato, o Superintendente disse:
- “Está vendo aquela mesa ali, cheia de projetos? É capaz do projeto dele estar lá. Dá uma olhada, Juvêncio”.
Não se fez de rogado. Procurou, mexeu, remexeu e encontrou o projeto do Justino. Desencavou mesmo. Entregou na mão do Dr. Gonçalves que deu uma folheada, fez algumas perguntas ao Justino e disse:
- “Pode deixar, esta semana eu libero este projeto”.
De volta à Praça Siqueira Campos, o Justino passou a contar a história nos mínimos detalhes. E sentenciava:
- “Mentiroso é quem diz que o Juvêncio é mentiroso!”

O PICOLÉ

No início da Sorveteria Glória, o Luís instalou o serviço de gelados. Eram sorvetes e picolés. Só no Crato tinha essa novidade. E, como não podia deixar de ser, o movimento era muito intenso. Como uma forma de organizar e dar um melhor atendimento aos fregueses, foi instituído um sistema de fichas. Para cada tipo de produto tinha uma ficha de uma determinada cor. A pessoa pagava na caixa registradora, recebia uma ficha correspondente e ia ao balcão dos gelados, se servir. Muitos vinham de longe, atraídos pela fama de que era tão gelado que queimava a boca.
Num determinado dia, uma senhora de meia idade foi à Sorveteria, experimentar a novidade. Pagou o preço de um picolé e recebeu uma ficha amarela. Devido ao grande movimento, ninguém percebeu que ela começou a chupar a ficha. Passados alguns minutos ela voltou ao caixa e, em altos brados, exclamou:
- “Vocês me roubaram! Esta porcaria não tem gosto e também nem queima a boca da gente!”

PATATIVA

O famoso e saudoso Patativa do Assaré era um grande amigo do Luís. O início dessa amizade foi quando um amigo do Luís, Omar, conhecido por Babá, que morava em Petrolina, solicitou a sua interferência para conseguir que o Patativa fosse participar de um festival de poesias em Juazeiro da Bahia. O Luís conversou com o Sr. Elói Teles, grande amigo do Patativa. Com a sua mediação, o poeta foi para o festival, no qual fez um grande sucesso, principalmente quando improvisou uma poesia conclamando as duas cidades rivais (Petrolina e Juazeiro), a se unirem em um casamento, pois entre elas já existia um “leito”: o leito do Rio São Francisco...
O Sr. Eloi combinou com a sobrinha do Patativa para levá-lo ao Crato, visando acertar os detalhes para a ida ao festival. Recomendou para não confundir com o Luiz Gonzaga, o sanfoneiro. Inicialmente foi à casa do Luís. Como ele não estava, foi orientado a procurá-lo na Praça Siqueira Campos, numa roda de amigos. E assim o fez. Naquele seu caminhar difícil, com uma bengala, se dirigiu ao grupo de pessoas na Praça e achou de pegar justamente no braço do Luís. Com aquela voz grossa e meio trêmula, perguntou:
- “Você, por acaso, viu o Luís Gonzaga Bezerra Martins por aqui?”
Participava do grupo o Sr. Ernani Silva, pessoa bastante espirituosa que, antes do Luís falar e diante daquele campeão do improviso, foi logo dizendo:
- “Pois solte o braço dele que ele é casado!”

Eloi Teles, um dos primeiros a divulgar o Patativa.


É MUITO FEIO

O Luís ficou encarregado de levar o Patativa à rodoviária do Crato, a fim de embarcá-lo para Petrolina. Enquanto aguardava a saída do ônibus, Patativa foi ao banheiro, urinar. Na Rodoviária cobravam-se cinqüenta centavos para auxiliar na manutenção do banheiro. Quando ele voltou, estava indignado com aquela cobrança. Dirigiu-se para o ‘cobrador’, em verso improvisado:
“Meu Deus que sorte precária,
A Vida está mesmo rija
Aqui na Rodoviária
Quem não tem ficha, não mija.

Vou voltar daqui dizendo
Que achei bastante feio
Ver um sujeito vivendo
À custa do mijo alheio.

POESIAS INÉDITAS DO PATATIVA

O meu tio Hermógenes Martins tinha uma incrível facilidade para fazer amizades. E uma delas era com o famoso poeta repentista Patativa do Assaré. Certo dia, visitando o meu tio era o aniversário de sua filha Ruth. Ganhou de presente estes versos do poeta

Mote

Que se reproduza esta data
Para alegria da gente

Glosa
De pobre vocabulário
Ruth um poeta tu tens
Que te entrega parabéns
Pelo teu aniversário

Que se reproduza esta data
Para alegria da gente

Não te direi o contrário
Estou alegre e contente
Desejo extremosamente
Nesta hora doce e grata

Que se reproduza esta data
Para alegria da gente

Crato, 28 de julho de 1955 (16,30 horas)

José Gonçalves da Silva (PATATIVA)

Em outra ocasião, mais precisamente no dia 14/08/1970, fez os seguintes versos para as filhas da Ruth:
Sandra e Cinara
Poeta Patativa (improviso)

Esta menina pequena
Nos fascina nos encanta
Parece mesmo uma santa
Esta garota morena

Além disso não malandra
É muito trabalhadora
Será nossa professora
Esta pequenina Sandra

E a sua irmã Cinara
Que possui beleza além
Se a sua beleza é rara
O nome é raro também

A BAGACEIRA

Chegou ao Crato um promotor novo e que logo se entrosou com os componentes da Câmara dos Comuns. Era jovem, bastante culto e de uma conversa muito agradável. Costumava freqüentar a Sorveteria Glória para tomar café. Um dia notou, na prateleira, algumas garrafas de uma cachaça gaúcha, chamada Bagaceira. Era uma cachaça que estava encalhada e que ninguém queria. O promotor fez o seguinte comentário:
- “Luís você tem Bagaceira! Isso é uma raridade!”.
E levou uma garrafa. Dias depois um amigo do Luís veio trazer a novidade:
- “Luís, aquela Bagaceira que você vendeu para o promotor fez a maior bagaceira!”
- “Mas como, e por que?”.
- “O promotor é alcoólatra e desde que chegou ao Crato estava se segurando. Com a Bagaceira ele teve uma recaída e bebeu a garrafa inteirinha. Foi para o meio da rua fazer discurso, totalmente nu!!”
Tiveram que transferi-lo para longe das Bagaceiras do Luís!

CHICO PONTINHA

Numa das conversas na Câmara dos Comuns, na Praça Siqueira Campos, alguém insinuou uma maledicência do “pontinha” do Chico Pontinha. O Luís logo esclareceu:
- “Não é nada disso, não. Ele foi meu contemporâneo no internato do Colégio Cearense. As mesas do refeitório eram para seis alunos. Os irmãos chamavam de “esquadra”. A alimentação era muito farta. Cada um recebia um pão enorme, cheio de manteiga. Todos tinham um bule de leite. Sempre tinha alguém passando para oferecer mais leite. Era muito diferente do Seminário do Crato, de uma pobreza franciscana. Um dia faltou um aluno da esquadra e todos avançaram para ficar com o pão que sobrara. Nisso, o Chico gritou: ‘Deixem pelo menos uma pontinha pra mim’. Pronto! A partir daí passou a ser o Chico Pontinha”.

PULIÇA

Puliça era um bêbado comum. É o que se pode chamar de bêbado crônico. Magro, feio e sujo. Gostava de sentar-se na Praça Siqueira Campos sempre só e, claro, bêbado. Vivia resmungando algo que ninguém entendia. Não queria a companhia de pessoa alguma. Caso alguém sentasse ao seu lado, imediatamente mudava-se para outro banco. Também ninguém gostava de chegar perto dele, pela mania que tinha de não tomar banho. Certa manhã, num feriado, chegou ao Crato, proveniente de Cajazeiras/PB, uma excursão de jovens estudantes. Logo que uma delas desceu do ônibus e pisou na Praça, foi logo avistando um grupo de rapazes e exclamou para as outras colegas:
- “Gente, aqui tem muito rapaz bonito!”.
O Puliça, que estava sentado num dos bancos, imediatamente melhorou um pouco a postura (que era sempre encurvada), e exclamou bem alto:
- “E é porque ainda não tomei banho hoje!”

ALENTO

No famoso Café Crato, do Sr. Orestes Costa, um velhinho costumava fazer ponto junto do caixa, esperando receber uns trocados de esmola. Um dia o Luís comprou duas fichas e o convidou para tomar um cafezinho com ele. Resolveu puxar uma conversa e perguntou:
- “Me diga uma coisa, o senhor não dá mais no couro, não?”
E ele, muito triste, disse:
- “Não, meu filho, eu não tenho mais alento”.
- “Mas veja, aquela mulher que está lavando as xícaras. Aquela da bunda grande. Será que nem com ela o senhor não tem alento?”
E ele, bem baixinho, no ouvido do Luís:
- “Olha, meu filho, mesmo que ela fique nua despida, o alento... não vem mais...”


APROVEITE A DOR

Luiz Gonzaga, o ‘rei do baião’, era natural de Exu/PE, cidade vizinha ao Crato, localizada do outro lado da Serra do Araripe. Cresceu indo em lombo de animal, para a feira do Crato. Depois de famoso, todas às vezes que ia a Exu, visitar os pais, não deixava de ir à “Princesa do Cariri” rever os amigos e fazer shows. Um dos seus amigos era o Manelito Alencar, com quem chegou até a fazer uma música, em parceria:
Eu sou do banco
Do banco, do banco,
Eu sou do banco,
Do Banco do Nordeste,
Cabra da peste.
Por outro lado, tinha que passar pela cidade, pois utilizava o aeroporto local para suas viagens. Antes da Rádio Araripe, seus espetáculos eram no Cine Cassino, que tinha um acanhado palco onde mal cabiam Luiz Gonzaga e seus acompanhantes. Como era um artista popular e muito querido, muita gente não podia assistir a seus shows devido o espaço reduzido do Cassino. Assim, procurava fazer um show em praça pública, para o povão, como dizia. O Cassino ficava defronte à praça Siqueira Campos. Ele então resolveu cantar na própria praça. À procura de um espaço elevado para colocar seu palco, divisou a marquise da Sorveteria Glória. Disseram-lhe, então:
- “O dono da Sorveteria é seu xará. É Luís Gonzaga, também”.
- “É mesmo! Então vamos lá conversar com o meu xará”.
Ao chegar, foi logo se apresentando com aquela simplicidade que lhe era peculiar. O Luís (meu tio) disse:
- “Você não precisa se apresentar. Tem alguém que não o conhece neste Brasil? Em que posso ajudá-lo?”

Da Praça Siqueira Campos o Rei do Baião divisou a marquise da Sorveteria Glória. Vou fazer meu show dali de cima!

Quando o Rei do Baião explicou o seu desejo, o Luís esclareceu que a marquise não era muito confiável. O prédio era velho e ela já apresentava sinais de trincas. Não poderia suportar muita gente. Então o Luiz Gonzaga disse que ele não se preocupasse, pois ficariam só ele com os dois acompanhantes e os aparelhos de som. E assim foi feito. O show foi um sucesso! Minha irmã Yara, com meu irmão Marcelo no braço, recorda-se bem do espetáculo. Não sei por que não fui também! Uma das músicas de maior sucesso foi aquela que ele conta o drama da mulher no parto. Ele reproduzia um fato verdadeiro, no qual as parteiras do interior comandam as mulheres a fazer mais força quando vem a dor. Então ele dizia:
- “Aproveita a dor!!”.
E o povão todo rindo! Não houve nenhum contratempo. A marquise resistiu ate à demolição do prédio, passados mais de cinqüenta anos de seu momento de maior glória!
Quem teve problemas foi o Luís, o da sorveteria! No dia seguinte, um padre, foi reclamar:
- Como é que o senhor permitiu aquele show indecente e imoral em plena praça pública?
- “Indecente e imoral por que?”
- “Aquela música de ‘aproveita a dor’...”

INTRIGOU-SE

Plínio Menna Barreto, como integrante da Marinha Mercante, viajou pelo mundo todo. Quando se aposentou, com uma boa poupança financeira, voltou para o Crato, a fim de fazer só o que gostava: beber cerveja e conversar com os amigos. Era um dos freqüentadores das conversas, na praça Siqueira Campos. Com um detalhe: chegava quando o grupo estava indo embora. Costumava temperar a garganta, emitindo um verdadeiro urro, que se ouvia à distância. Tanto assim que, muitas vezes, quando o grupo ia embora alguém dizia:
- Espera aí, pessoal. Não vamos agora não. Lá vem o Plínio. Não estão ouvindo o urro dele?
Um dia o Plínio apareceu com uma saliência no pescoço, como uma glândula inflamada. Resolveu ir ao Dr. Irineu Pinheiro, seu amigo de velhos tempos. O Dr Irineu era médico, mas a essa época já se aposentara e dedicava-se a escrever a história do Cariri, o que, aliás, fez muito bem. Morava vizinho à Sorveteria Glória. Hoje não mais existe a sua casa. Nota-se apenas a marca do telhado no prédio vizinho, pertencente ao Sr. Ernani Silva. Quando o Plínio foi se consultar com o Dr. Irineu, ele retrucou:
- “Plínio eu não sou mais médico não. Faz tempo que parei. Estou aposentado. Minha preocupação atual é só escrever. Aconselho a você procurar os colegas novos, daqui do Crato. Tem rapazes muito bons, recém formados, com os conhecimentos atualizados”.
- “Ah que é isso, Irineu. Quem é médico não esquece nunca. Eu vou lá me receitar com esses meninos, sem experiência. Eu confio é em você.”
Insistiu tanto que o Dr. Irineu acabou apalpando o pescoço do Plínio. Apalpa daqui, apalpa dali e disse:
- “Olha Plínio, fica muito difícil eu dar um diagnóstico sem os exames necessários. Por isso eu lhe aconselho a procurar um centro mais adiantado. Por que você não vai a Recife, ou mesmo a Fortaleza?”
- “Que nada, Irineu. Eu vou lá viajar! Já viajei demais! Eu quero é aproveitar o meu resto de vida bebendo minha cerveja e batendo papo com os amigos. Você está achando que é coisa séria, não é?.
- “Não sei, Plínio. Não posso fazer um diagnóstico apenas apalpando o seu pescoço.”
- “Já sei você não quer é dizer. É câncer, não é?
- “Não sei, Plínio. Pode ser, ou pode não ser. Insisto, vá a um centro mais adiantado.”
- “Se for câncer quanto tempo de vida eu tenho? Pode dizer, Irineu. Não estou preocupado se vou morrer.”
O Dr Irineu, já não agüentando mais aquela insistência:
- “Sei lá, Plínio”.
- “Pode dizer doutor. Eu não vou atrás de médico nenhum”.
O Dr. Irineu, já para se ver livre, sentenciou:
- “Uns seis meses, talvez”.
O Plínio não alterou em nada o seu modo de viver. Passaram-se os seis meses e nada aconteceu. O Dr Irineu costumava ficar na janela da sua casa, voltada para a praça, observando o movimento da rua. Numa dessas ocasiões, o Plínio vinha no rumo da praça. Quando chegou na calçada do Dr. Irineu, este saiu da janela e fechou-a abruptamente. O Plínio atravessou a rua e foi ao encontro dos amigos, dizendo:
- “Viu só? O Irineu, porque eu não morri, intrigou-se comigo!!!...

COMI MUITO...

O Plínio quando cheio de álcool gostava de fazer umas brincadeiras meio pesadas. Um dia vinha numa rua e deparou-se com um velório. Naqueles tempos os velórios eram nas próprias casas. Elas ficavam com todas as portas e janelas escancaradas e qualquer pessoa podia entrar e sair, como bem entendesse. O velório se dava na chamada “sala de visitas”, que era o primeiro compartimento da casa, ao se entrar. O Plínio encaminhou-se para o caixão e ficou observando o morto, com muita contrição. Em volta, algumas pessoas sentadas em cadeiras encostadas nas paredes. Virou-se e foi sentar-se. No meio do caminho parou e voltou a ficar ao lado do defunto. Desta vez abaixou o rosto, como quem vai dar um beijo na testa do morto. Mas ficou apenas olhando bem a fisionomia do falecido. Meneou a cabeça de um lado para outro, num gesto de quem não quer acreditar na morte. Desta vez, dirigiu-se a um sofá, já meio surrado, e deixou-se cair num canto do sofá. Tirou do bolso traseiro da calça um lenço velho e sujo e cobriu o rosto. Ficou então a soluçar, demonstrando grande prostração. Tinham vindo para o enterro dois filhos do falecido, que não moravam no Crato. Ficaram cochichando um com o outro, indagando quem seria aquela pessoa que estava demonstrando tanto sentimento pelo pai deles. O filho mais velho, sensibilizado, resolveu conversar e consolar aquele amigo do seu pai. Aproximou-se, pediu licença a alguém para sentar-se ao lado do Plínio. Sentou-se na ponta do assento do sofá. O Plínio, afundado no velho sofá, com as molas já estragadas, soluçando baixinho. O filho, então, falou:
- “Senhor, eu sou o filho mais velho do meu pai e, em nome da família, gostaria de expressar nossos agradecimentos pela demonstração de pesar pelo falecimento do nosso querido pai. Mas, gostaria de dizer que estamos consolados, pois significou um descanso para o papai que estava sofrendo demais.”
O Plínio, ouvindo isso, foi baixando lentamente o lenço fazendo aparecer os olhos vermelhos de tanto choro (na verdade, estavam vermelhos de muita cana), e disse, numa voz chorosa:
- “Ah, meu filho, eu comi muito o cu dele...”
O filho, sentindo aquele bafo de cana, imediatamente pegou pelas bitacas aquele bêbado safado e o pôs pra fora de casa, com a ponta dos pés, indo o Plínio cair no meio do calçamento.

SARGENTO MORAIS

Quando o Jô Soares apresentava o seu quadro do soldado Geléia, lembrava-me sempre do Sargento Morais, da polícia civil do Crato. Ambos eram extremamente medrosos. A diferença é que o cratense não era gordo.
Mas o Sargento Morais tinha até um pouco de razão em ter medo. Quando era soldado, numa missão, foi esfaqueado por um marginal. Como seqüela ficou com um defeito no braço. A promoção para Sargento foi devido a este fato. Mas, a partir deste incidente ficou extremamente medroso, não se metendo mais em nenhuma confusão. Quando chamado para resolver algum problema, dirigia-se logo para o lado contrário Às segundas-feiras, dia da grande feira do Crato, o índice de bêbados aumentava e, também, as ocorrências policiais. O Sargento Morais era escalado para ficar na beira do rio. Certa vez houve uma briga e não pode fugir, por ter sido perto dele. Então, deu ordem de prisão e o bêbado não se rebelou. Levou o preso para a delegacia, conduzindo-o pelo braço. Mas segurando de leve. Nada de violência. A cadeia ficava na Praça da Sé, prédio histórico onde hoje funciona um Museu. O Sargento teve que passar pela Praça Siqueira Campos. No Café Crato, que ficava na Praça, tinha um grupo de pessoas tomando café. Então alguém comentou:
- “Aquele é o Sargento Morais levando um preso?”
- “É mesmo! Ei! Sargento Morais! Sargento Morais! Vai levando um hoje, hein?”
Quando o preso ouviu isso, parou. Olhou para o Sargento e disse:
- “Espere! Você é que é o Sargento Morais?”
- “Sou sim”.
Então, deu um cotoco para o Sargento e disse:
- “ ‘Taqui’ que eu vou preso!!!”
E foi embora!

FOLCLORE

Os freqüentadores da Câmara dos Comuns gostavam de recitar os seguintes versos do grande poeta popular cratense José de Matos, falecido em 1904, tecendo comentários jocosos sobre famílias tradicionais da cidade, no que eram apoiados pelo Dr. Mozart Cardoso:
Nunca vi Teles valente,
Nem Esmeraldo trabalhador
Nem Pinheiro inteligente e
Nem Alencar rezador.
Nos versos originais do poeta, consta Quezado e não Esmeraldo. Mas, dentre as muitas poesias do José de Matos, gostavam de recitar uma na qual ele se vinga de alguém que se negou e lhe dar um piqui:
Terra boa é o Cariri,
Tem mangaba e tem piqui,
Tem muita moça bonita
E cabra bom no fuzi.

Mais arredó de sete légua,
Tem cabra fi duma égua,
Que nega até um piqui.

SUPOSITÓRIO

O Crato, desde há muito tempo, dispunha das facilidades de médicos e hospitais. Por essa razão, muitas estórias interessantes do pessoal da roça se receitando eram contadas nas reuniões dos boêmios, na Praça Siqueira Campos.
Recentemente tinha chegado a novidade do supositório, vindo eliminar aqueles terríveis processos de laxantes, como óleo de rícino. Um médico receitou para um senhor de meia idade, da zona rural, esta novidade, explicando como usá-lo. Forneceu até uma amostra grátis. O senhor ficou com aquela amostra na mão, sem entender bem onde teria que colocar. Muito constrangido, muito tímido, perguntou ao médico:
- “Doutor, o senhor falou para eu meter no ânus???”
O médico, percebendo que ele não conhecia aquele sinônimo, procurou falar um português mais claro:
- “É, sim senhor. Para meter no cu!!!”
E o pobrezinho do homem, já se tremendo:
- “Doutor, não se zangue comigo não!!!”

O APELIDO

Esta outra estória de médico e roceiro me foi contada pelo meu pai. Mas, segundo o Luís, também circulou na Praça.
Um daqueles coronéis dono de engenho, homem da roça, falou para a filha, moça, de boa instrução, que a mãe dela estava com um problema de saúde. A filha logo identificou que a mãe estava com uma crise de hemorróidas, precisando ir urgente a um médico. Com muito jeito, conseguiu convencer o pai da necessidade da consulta. Orientou-lhe para que, quando fosse falar com o médico usasse a palavra “ânus”, por ser mais elegante e apropriada ao linguajar da medicina.
Foram os três para o consultório. A sala de espera do médico, repleta. O casal de velhos era conhecido por todos.
Chegando a vez deles, entram os dois. A filha fica na sala de espera. Pouco depois a porta se abre e aparece só a cabeça do velho. Com um vozeirão bem alto, bem arrastado, fala para a filha:
- “Ô filha! Como é mesmo o “apelídio” que tu botou no cu da tua mãe?

O PAPA

O Dr. Wilson Gonçalves foi um dos políticos mais destacados do Crato. Foi Prefeito, Deputado Estadual, Federal, Senador e até Vice-Governador. Na época em que foi prefeito nasceu a idéia da Exposição de gado, hoje tão famosa. Sempre que seus afazeres o permitiam, ia ao Crato, para os habituais contatos com “as bases”. A sua residência era na Bárbara de Alencar, próxima ao Crato Hotel. Quando estava na cidade sempre tinha um grupo que não o largava para nada. Eram devotados correligionários. Dentre estes se destacava Maildo Rodovalho de Alencar. Numa dessas ocasiões, o Maildo ia passando na Praça Siqueira Campos, em direção à casa do Dr. Wilson, quando o Walter Peixoto o chamou. Waltinho era adversário político do Dr. Wilson, mas mantinha boas relações de amizade com ele. Walter, então, falou:
- “Maildo, Maildo, venha cá. Ouça aqui esta nota que saiu no jornal de Fortaleza sobre o Dr. Wilson”.
Walter tinha dobrado o jornal, de tal maneira que só se destacava a tal nota. Maildo não enxergava bem e ficou de longe, vendo o jornal. Walter passou a fazer de conta que estava lendo:
- “O Papa acaba de condenar a candidatura de Wilson Gonçalves para qualquer cargo eletivo. Quem votar nele vai para o inferno, pois além dele ser comunista, é maçom. A pena é a excomunhão automática”.
Maildo ficou lívido, pensativo. Aproximou-se mais de Walter e disse:
- “Leia esse negócio aí de novo”.
Walter voltou a “ler” e depois ainda explicou:
- “Maildo excomunhão significa não perdão na hora da morte e passagem direta para o inferno”.
Maildo ficou um tempo parado, olhando para o Walter. Em seguida deu meia volta e comentou:
- “Papa fresco”.

QUEM COM QUEM?

Vizinho ao Cine Cassino, defronte à Praça Siqueira Campos, morava um aposentado. Tinha a cabeça bem branca e os olhos bem azuis. O de que ele mais gostava na vida era das conversas na Praça. Quando via formar-se uma roda de pessoas conversando, não resistia. Saía da sua cadeira de balanço e vinha participar da conversa, para saber das novidades.
Ele tinha uma filha que namorava um filho de uma conhecida personalidade do Crato. O que tem de incomum é que os dois namorados tinham, na época, apenas 14 anos, e as famílias não sabiam do namoro.
Nesse dia as pessoas estavam reunidas na praça, justamente para falar do namoro das duas crianças. O velho, vendo aquela aglomeração, apressou-se em chegar até a roda. Alguma novidade, pensou. Como era seu costume, meteu a cabeça no meio do grupo, virando-a de um lado para o outro e perguntou:
- “Quem com quem?”
Alguém se apressou em dizer:
- “Quem com quem? É a sua filha que acaba de fugir com o namorado

OS DOCUMENTOS


O Dr. Luis de Borba Maranhão era advogado, bem conceituado, e político. Tinha tentado ser Deputado várias vezes, sem obter sucesso.
Dr. Luís de Borba Maranhão.

Depois de aposentado ficou cuidando de sua propriedade que ficava para as “bandas da Batateira”, na Serra do Araripe.
A Batateira é o local de uma famosa fonte de água artesiana, que jorra alguns milhares de litros por hora. É tão intensa que comporta uma mini-turbina, para gerar energia elétrica. É na subida as Serra para quem vai do Crato para Pernambuco, mais propriamente o Exu, cidade do famoso Luís Gonzaga, o Gonzagão.
Na saída da cidade, depois do “Seminário dos Alemães”, existia um posto fiscal. Tinha uma fiscalização mais intensa principalmente por ser o último posto de fronteira com outro estado.
Todos que por lá passavam, tinham que se submeter a uma revista. Portanto, só se passava quando o “guarda autorizava”...
Para o Dr. Luís não tinha essas revistas. Todos os guardas já o conheciam e ele passava direto.
Mas, um belo dia, estava de serviço um guardinha novato. E, portanto, não conhecia o Dr. Maranhão. Sendo assim, ordenou que parasse. Por essa razão, dessa vez, ele teve que se submeter à revista, muito a contragosto.
O guarda se dirigiu até ele e disse a conhecida frase:
- Os documentos, por favor.
O Dr. Luís não titubeou. De imediato abriu a braguilha e, facilitado pela cueca “samba canção”, juntou tudo com as duas mãos e disse:
- “Taqui” os documentos...
Nunca mais foi parado...

O JOGADOR

Uma das características do Dr. Luís de Borba Maranhão era ser extremamente simples. Não ligava a mínima para nada. Chegava a ser até ingênuo. Era rico desde que vendera uma mina de pedras semi-preciosas que ele tinha no Rio Grande do Norte. Carros ele tinha vários. Mas tudo era velho. Quando trocava de carro era por outro velho. E o filho, João de Borba Maranhão, era do mesmo jeito. Ambos eram assíduos freqüentadores do jogo de “buraco” na casa do Luís. Com um detalhe: quando o pai ia o filho não ia:
- Não, Luís, não vou não. Muito obrigado. Meu pai joga muito mal e acha que joga.

O INFARTO

Certo dia, o jogo de buraco corria solto na casa do Luís. De repente, ele começou a suar muito e com uma dor no peito, correndo para o braço esquerdo. Alguém, de pronto, ligou para o Dr. Raimundo Bezerra. Do outro lado da linha veio a ordem:
- Leva rápido para a Casa de Saúde que ele está tendo um infarto!
O João de Borba Maranhão, imediatamente se prontificou:
- Eu levo o Luís!
Mais do que de repente, os jogadores carregaram o Luís e o instalaram no banco traseiro do carro, onde ele ficou deitado.
Foi aí que ele pode comprovar a mania da família por carro velho. Era uma batedeira total. Parecia que não tinha amortecedor e nenhum parafuso. Apesar de toda a dor, só pensando em morrer, o Luís notou que o carro estava com o freio de mão puxado até o último ponto. O motor zunia e o carro não desenvolvia. O Luís com uma dor terrível, que não o deixava falar. Só conseguia pensar:
- Porra, vou morrer por causa de um freio de mão! Puta que pariu! Que sorte essa minha! Nessa velocidade, quando chegar ao Hospital, eu já estarei morto!
Quando conseguiu estacionar na emergência da Casa de Saúde do Dr.Raimundo, a fumaceira tomou conta de todo o carro. Então, o João de Borba, na maior calma do mundo, exclamou:
- Ih! É por isso que o carro não desenvolvia! Eu doido para chegar rápido e o carro não andava! Deixei o freio de mão ligado!

O PERUANO

Apareceu no Crato, em determinada época, um peruano. O Luís não sabe explicar como ele foi esbarrar por lá. Mas conseguiu se firmar na cidade. Casou com uma filha do Dr. Luís de Borba Maranhão.
Certo dia, numa roda de amigos, ele falava das suas criações. Era capêto pra aqui, capêto pra lá. Participava da roda o Sr. Joaquim Bezerra, pai do Dr. Raimundo Bezerra. Ele soltou aquela sua gargalhada característica, e disse:
- Este cara está aqui há tanto tempo e ainda não aprendeu a falar! Não é capêto não, homem, é CAPOTE!

O TÉCNICO

Três clubes se destacavam no futebol do Crato. O Sport - o melhor - mais organizado e de maior torcida. Provavelmente devido às cores das camisas rubro-negras, como as do Flamengo. O Atlético, com as camisas mais para laranja do que vermelho. E o Cariri, de camisas brancas com duas listras separadas na diagonal, em preto e vermelho. Dos três, o mais modesto.
A Diretoria do Cariri decidiu convencer o Dr. Luís de Borba Maranhão de que ele era um excelente técnico de futebol. Na verdade, estavam de olho era no dinheiro dele. O certo é que ele pegou a corda e a sua estréia foi num clássico contra o Sport. O jogo foi no campo do adversário, no Bairro Barro Vermelho. O campo era de terra, o alambrado era um único arame que cercava as quatro linhas, e o fechamento do estádio era com palha. Joguei algumas vezes nesse campo, em torneio de times de garotos. A bola era oficial, de “pito”, como se chamava, e todos jogavam descalços.
Com o patrocínio do Dr. Maranhão, o Cariri lançou um atacante, Meinha, que tinha fama de goleador.
O Luís se colocou ao lado do novo técnico, para observar suas instruções. O jogo disputadíssimo, mas com maior pressão por parte do Sport. Quase ao final do jogo, córner contra o rubro negro. A bola é lançada para o tumulto da pequena área. E o Meinha, entra de peixinho e, com a cabeça, empurra a bola para o fundo das redes do Sport. O técnico virou-se para o Luís e disse:
- Essa jogada eu combinei para lançar na cabeça do Meinha!
Ao final da partida, com a vitória do Cariri, o novo técnico foi carregado nos ombros pelos jogadores e Diretoria. Afinal de contas, era o grande patrocinador da Equipe...

Clube Atlético Cratense. O primeiro, em pé, da esquerda para a direita, é o Alagoano, cunhado do Luís. Foi quem me levou para assistir ao meu primeiro jogo de futebol. O segundo, agachado, da esquerda para a direita, é o Ossian Alencar Araripe, que chegou a ser prefeito do Crato e Deputado Federal. Era o craque do time e da seleção cratense.

LEOA

A Igreja tinha um jornal denominado “A Ação”. O Monsenhor Rocha, dedicado Reitor do Seminário, escrevia uma coluna denominada “Alfinetadas”. Fazia críticas gerais, inclusive alfinetando pessoas da sociedade.
Numa edição de um outro jornal local, o único verdadeiro comunista do Crato, o Sr. José de Brito, escreveu um artigo lamentando e tecendo considerações da inutilidade da cerimônia de primeira comunhão de um filho seu.
O Monsenhor Rocha sentiu a alfinetada e resolveu escrever um artigo de meia página, criticando o José de Brito. O título, em letras garrafais, era: “SOSSEGA, LEÃO”.
O Diretor do outro jornal, Osvaldo de Sousa, permitiu a resposta do José de Brito. O título, que levou os freqüentadores da Praça Siqueira Campos às gargalhadas, foi: “CALMA, LEOA”.

A ESCADA

A Sorveteria Glória ficava no térreo do Grande Hotel. Pegava a esquina, tendo, portanto, duas frentes. Uma voltada para a Praça Siqueira Campos e a outra para uma rua lateral. A entrada para o Hotel era nesta rua lateral, através de uma escada. Muitas pessoas entravam na Sorveteria pensando que era o Hotel, no que eram esclarecidas:
- Por favor, eu queria um quarto.
- Não, aqui não é o Hotel. A entrada do Hotel é aí vizinho, pela escada. Tem até uma placa: Grande Hotel!
A sorveteria tinha uma área de serviço que servia como poço de ventilação para o Hotel. Nela, o Luís guardava, engradados de bebida e uma escada comum, de madeira.
Certo dia entrou uma senhora de meia idade na Sorveteria, procurando pelo Hotel. O sorveteiro Hermínio, que estava limpando o congelador e sem olhar para a senhora, informou:
- Não, o Hotel é aí ao lado. Sobe-se pela escada!
O Luís estava na registradora quando chegou o Hermínio:
- “Seu Luís, Seu Luís, venha cá depressa, venha cá! Olha como é que ela quer chegar ao Hotel!”
E apontou para a área de serviço: a senhora estava subindo na escada de madeira do Luís, já quase chegando ao topo. Tinha só parede e ela ainda querendo chegar ao último batente, na iminência de cair. E o Luís:
- “Ela quer é trepar, nem que seja numa escada.”

OS CAÇADORES

Na lateral da Sorveteria Glória, atravessando a rua, tinha a famosa Casa dos Leões. Nela morava um amigo do Luís, que tinha dois filhos simplesmente terríveis. Aprontavam as maiores traquinagens na Sorveteria. Um dia as garçonetes vieram reclamar que eles estavam tirando dinheiro da caixinha delas. Não dava mais para agüentar. O Luís resolveu falar com o Mozart, pai das “ferinhas”.
- “Mozart, teus meninos não dão descanso à gente aqui. Dê um jeito nestes teus meninos. Eles estão cada vez mais danados. Agora inventaram de tirar dinheiro da caixinha das pobres das garçonetes.”
- Ih!! Luís!!! Você acha que eu posso dar jeito nestes meus meninos.
- E quem vai dar?
- Eles não têm jeito não, Luís. Sabe o que aprontaram ontem lá em casa?
- Não, o que foi?
- Comprei um relógio de parede de cuco, sabe qual é?
- Sei, aquele que quando dá as horas sai o passarinho e canta.
- Pois veja só. Ontem chegou uma parenta minha lá em casa e notou que os dois meninos estavam agachados atrás de uma poltrona.
- Fazendo o quê?
- Pois não é que os dois pestes estavam de tocaia, armados de baladeira e apontando pro relógio! PRA MATAR O PASSARINHO, LUÍS!!!!!

O FISCAL

A Prefeitura do Crato cobrava de comerciantes, profissionais liberais etc, o imposto da placa de identificação, exposta na fachada. Era uma taxa por metro quadrado de placa. Existia um fiscal pouco inteligente que, uma vez por ano fiscalizava se a placa era a mesma ou tinha sido mudada. Estava o Luís na sua Imobiliária Santa Marta, quando chegou o tal fiscal:
- “O senhor mudou a placa?”
- “Mudei sim. Era de madeira e agora é esta aí, de acrílico e iluminada”
- “Ela é maior do que a outra?”
- “Não sei. Pode medir.”
Feita a medida, o fiscal observou que a nova placa era maior. Então, saiu-se com esta:
- Esta placa é maior. O senhor tem o direito de pagar mais um tanto.”
- “Tenho o direito, é?”
- “Sim, senhor. Tem o direito”
- “Pois, se eu tenho este direito, eu prefiro não ter este direito!!!”

O GOVERNADOR

Na Imobiliária Santa Marta tinha um conjunto de sofás, destinados aos clientes. Mas quem usava mesmo eram os personagens tradicionais do Crato. Alguns deles compareciam diariamente. Iam só para bater papo. Um desses era o Dr. Dogivaldo Ribeiro, bom advogado, muito inteligente, natural de Assaré. Somente nos dias muito quentes é que não usava terno. Quando estudante secundarista, em Fortaleza, foi companheiro de “República” do Genésio, irmão do Luís.
O Dr. Dogivaldo gostava muito de política. Era seu assunto predileto. Um dia sentou-se no sofá e falou para o Luís:
- “Luís, finalmente tomou posse o novo Governador, não é?”
- “Pois é Doutor. Mais um biônico!”
E continuou, num tom de discurso, levantando o braço, como os políticos:
- “Plácido Aderaldo Castelo. Governador que toma café no pires e recebe os convidados de pijama! É Plácido porque é calmo. Aderaldo porque é cego e Castelo porque vive nos ares!!!”

A BRIGA

O comentário na Praça era a surra que um soldado da polícia tinha dado num dos Teles. Por pura maldade, covardia mesmo. Quase que mata o pobre do rapaz. Acontece que o agredido tinha um irmão lutador de judô: Alberto Teles. Houve, casualmente, o encontro do Alberto com o tal soldado, na Santos Dumont, próximo ao Cine Moderno e do calçadão que passa ao lado da Imobiliária do Luís. O Alberto foi reclamar ao soldado pela arbitrariedade cometida. O soldado, ao ver aquela pessoa franzina, já se encheu de coragem e partiu para a agressão. De repente sofreu um golpe que o arremessou pelos ares, indo estatelar-se no calçamento. De imediato sacou da arma e, antes de empunhá-la, o Alberto deu-lhe uma pernada, jogando a arma para longe. O soldado, covarde como era, puxou uma peixeira enorme. Alberto, então, entrou na relojoaria do Geraldo Formiga, que só tinha uma porta.

Calçadão que liga o Cine Moderno à Praça Siqueira Campos. À esquerda, o Grande Hotel e no térreo funcionava a Imobiliária do Luís.

Enquanto isso, alguém chegou na Imobiliária do Luís chamando:
- “Luis, Luís, vem cá depressa. Vem ver uma briga aqui na esquina, entre o Alberto Teles e um soldado!”
Quando o Luís chegou ao local, só ouviu um barulho dentro da relojoaria. Quando menos esperou, o soldado foi saindo, literalmente, voando pela porta e esparramando-se no calçamento. Foi se levantando e gritando:
- “Não deixem esse homem me matar!!!”

ZÉ CANGALHA

Impressionado com a façanha do Alberto em desmontar o soldado valentão, o Luís ficou tão entusiasmado que resolveu matricular-se na escola de judô de sua propriedade. Porém a idade já não ajudava mais. E, logo nas primeiras aulas convenceu-se de que nunca seria um Alberto Teles.
Certo dia, o Luís estava sentado na Praça Siqueira Campos, quando chegou o Zé Cangalha. Este tinha fama de valente. Gostava mesmo de dizer que era valente. Poucas pessoas tinham amizade com ele. O Luís era seu amigo e companheiro nos jogos de baralho. Foi uma amizade selada numa missão difícil e perigosa que os dois tiveram que cumprir. Dar fuga a um Arraes, caçado pela ditadura, que estava escondido na casa do Padre Frederico. Levaram-no para um estado vizinho, de onde embarcou num navio mercante, que o Governo francês determinara mudar de rota para levá-lo à França.
O Zé Cangalha, percebendo que o Luís estava sentindo dores e com um emplastro Sabiá, perguntou:
- “O que foi isso Luís”?
- “Foi um diabo de um negócio de aprender Judô! Eu inventei de entrar na academia de Judô do Alberto Teles! Naquelas quedas levei uma pancada nas costelas e estou aqui, me vendo de dores!”
- Homem, deixe de besteira!! Que Judô que nada! Olhe, isto aqui é que é o seu Judô!!!
Nisto o Zé Cangalha abriu a camisa e o Luís viu um bruto de um 38 enfiado na calça. E continuou.
- “Luís, você sabendo atirar e sendo rápido, não tem Alberto Teles que tire a arma da sua mão!”

A FAMA

O Luís abandonou a academia de judô, mas continuou amigo do Alberto Teles. Chegou, inclusive, a vender-lhe um terreno, motivo pelo qual ficou sabendo do seu endereço: Rua José Carvalho.
Certa ocasião, num dia de muita chuva, ia passando por esta rua. Em sentido contrário, vinha um jeep e, ao aproximar-se do Luís, propositadamente passou numa poça d’água, dando-lhe aquele banho. Eram quatro conhecidos marginais, que saíram rindo. O Luís, na tentativa de escapar do banho, fez aquele gesto característico nessas horas, com o braço seguido do devido xingamento. Percebeu, então, que os caras estavam vindo de ré. Não sabia dizer o por quê daquela perseguição. Teve a intuição de atravessar a rua e entrar na casa do Alberto Teles. Foi a sua sorte. Quando estava abrindo o portão do jardim, ouviu uma brusca freada do jeep. Em seguida, um cantar de pneus e os marginais fugindo da cena.
Ficou parado e pensando: “Tudo isto é medo do Alberto Teles?!?!?!”

O PÁRA-CHOQUE

Zé Cangalha estava sempre com carro novo. Ninguém sabia a fonte de renda dele. Um dia seu carro estava parado perto da Siqueira Campos, quando um advogado, recém chegado à cidade, foi estacionar o carro à frente do de Zé Cangalha. Foi de uma imperícia tal que acabou batendo a traseira do carro dele no pára-choque frontal do carro do Zé, um Del Rey. O advogado desceu, olhou e comentou:
- “O Sr. é o dono do carro?”
- “Sou, sim, doutor!”
- “É, mas foi só um arranhãozinho, né?”
- “Doutor, arranhãozinho ‘pro’ senhor. Pra mim, que sou o dono do carro, não foi arranhãozinho, não!”
- “Então, vamos para uma oficina para mandar dar um retoque!”
- “Não, doutor! Não é assim como o senhor tá pensando, não! Em primeiro lugar eu vou lhe dizer uma coisa. Eu sou o FAMOSO Zé Cangalha! Daqui nós vamos sair é para a concessionária, mandar mudar todo este pára-choque.”
- “Mas não há necessidade!”
- “Não! Há sim! Nós vamos! Entre no seu carro que eu vou no meu, lhe seguindo!”
- “Mas eu estou aqui até sem talão de cheques!”
- Não, não tem problema não. Na hora aparece!
Foram à concessionária e o pára-choque foi efetivamente trocado. Conforme o Zé tinha dito, apareceu dinheiro, apareceu cheque, apareceu tudo. Quando foram se despedir o Zé disse:
- Doutor, agora o senhor pode contar com o amigo aqui, o velho Zé Cangalha. Numa situação inversa, eu estou do seu lado... Não abro nem pro trem!”

SUTIL AMEAÇA

O meu avô tinha grande estima e preocupação em dar assistência à sua irmã (Tia Gonçalinha), à filha Gracinha e duas sobrinhas (Dula e Giomar). Moravam numa casa da Rua Ratisbona de propriedade do Sr. Benedito Teles, pai do lutador de Judô, Alberto Teles. Quando o vovô passou a morar em Fortaleza, deixou com o Luis a responsabilidade de dar-lhes apoio. Assim, o aluguel da casa passou a ser pago pelo Luís. O proprietário sempre ia à Imobiliária, bater papo, receber o aluguel e acordar aumentos. Foi sempre um relacionamento muito amistoso.
Em certa ocasião, o Sr. Benedito pediu a casa. Estava querendo dar para uma filha, que ia casar. O Luís logo se prontificou em conseguir uma nova casa para abrigar a tia e as primas. Mas explicou que estava difícil encontrar casa no Crato. Mas não pouparia esforços. Como de fato o fez. O tempo foi passando e nada de conseguir uma casa. O Sr. Benedito sempre indo à Imobiliária e o Luis pedindo mais prazo. Um dia, perguntou para o Sr. Benedito:
- “O Senhor já falou com a Tia Gonçalinha?
- “Ah, Luis, não tem jeito. É perda de tempo. Quando eu vou lá ficam as quatro falando ao mesmo tempo, sem parar, não me ouvem e ainda pedem que eu repare a fossa!”
O velho foi ficando impaciente. Um dia, como de costume, sentou-se no sofá da Imobiliária. Ficou um tempo calado. Cabeça baixa. Estranho. Então, sapecou uma indireta, que o Luís logo entendeu ter endereço certo:
- “É, vou sair agora. Vou ao comércio. Vou comprar uma tinta, cimento. Vou contratar um pedreiro e um pintor para ajeitar um quarto pra mim lá na Cadeia. Não tem outro jeito. Vou ter que fazer um desatino. Não quer resolver na paz! Meu destino é ser preso mesmo”

SOLIDARIEDADE

Um grande amigo do Luís recebeu um representante comercial de Fortaleza, com quem tinha negócios, e este desejou visitar a Glorinha. Foi levá-lo para conhecer a mais famosa boate da cidade. A sua esposa, por acaso, passou dirigindo o carro dela em frente à boate da Glorinha. Para sua surpresa, viu o carro do marido estacionado lá. Parou e foi confirmar de perto. Conferiu a placa. Ficou um tempo pensando no que fazer. Depois saiu. Nisto, o guardinha que cuidava dos veículos, entrou e foi avisar à Glorinha que a esposa do amigo do Luís tinha reconhecido o carro dele. Imediatamente foi acionado o esquema de proteção a marido infiel. A Glorinha fez parar um carro, dirigido por um homem, e explicou-lhe a situação. Enfiaram o amigo do Luís no banco de trás, com a ordem de despejá-lo, urgente, na Praça Siqueira Campos.
A esposa, ainda transtornada, ficou rodando na cidade, arquitetando um plano para dar um flagra no marido. Pensou em buscar a ajuda de umas amigas a fim de invadir o cabaré da Glorinha. Nisto, passou na Praça Siqueira Campos e avistou-o, tranqüilamente sentado num banco, numa roda de amigos. Estacionou o carro. Chegou perto do marido e ele se adiantou, com a cara mais sonsa do mundo:
- “Oi, Amor! Você por aqui! Senta aqui.”
- “Onde é que está o teu carro?”
- “Ah, Bem! Eu emprestei para aquele meu amigo de Fortaleza! Ficou de me devolver agora, às 10 horas. Tô esperando por ele.”

O PRAZO

Um grande amigo do Luís, dono de engenho, não fugia à regra dos demais. Tinha a família oficial e uma casa montada na rua, com uma rapariga. Estando praticamente separado da esposa, já estava elevando o status da outra mulher. Começou a circular na cidade em seu carro com sua amante. Era uma agressão à sociedade.
Do casamento oficial ele tinha duas filhas, sendo que uma estava ficando noiva. Faltava apenas formalizar o pedido ao pai. A filha, no entanto, ficava muito constrangida com a atitude dele, circulando pela cidade com aquela mulher. A esposa buscou apoio junto aos parentes e amigos, no sentido de dissuadi-lo desse caso. Todos concordaram. Um amigo, Walter, ficou com a responsabilidade de falar com ele.
Esse amigo morava perto da Praça Siqueira Campos e sabia que, no início da noite, ele vinha ao centro comprar pão para levar para o pessoal da moagem, no engenho. Dito e feito. Um garoto foi avisá-lo que o Walter estava querendo falar com ele. Já ficou meio cabreiro, mas foi.
Quando chegou, o Walter, que estava com outros amigos comuns, tomou a palavra:
- “Meu amigo, você sabe da nossa grande amizade de longas datas e, por isso, eu fui incumbido pela sua esposa de lhe fazer um apelo. A sua filha está ficando noiva e a menina está muita ressentida com a sua atitude de passear com a sua rapariga pela cidade toda. O pedido é que você não seja tão acintoso. Eu acho um pedido justo”.
E ele, bem sério:
- “É. Eu também acho. Mas vocês devem entender que eu não posso acabar o relacionamento com esta mulher, que vocês chamam de rapariga, da noite para o dia. Eu preciso de um prazo”.
Alguém que fazia parte da conversa, disse:
- “É justo!”
E o Walter:
- “Que prazo você precisa?”.
Sério, como sempre, respondeu:
- “Dez anos”.
Dito isto, deu meia volta e foi cuidar do seu engenho...

ZÉ ARROCHADINHO

Luís Sarmento foi outro dos freqüentadores da Praça Siqueira Campos. O seu expediente era pela manhã, horário no qual os aposentados ficavam apreciando as meninas irem para o colégio. Era um homem muito alto, que estava sempre transpirando muito. Por causa da sua altura, quebrou as duas pernas. Numa viagem a Recife, de ônibus, uma freada brusca e o aperto entre os bancos fez com que ele quebrasse as duas pernas de uma só vez. Devido a esse acidente, ficou com o caminhar irregular. Falava também com dificuldade, pois nunca se adaptou às duas dentaduras que usava. Era um contador de piadas, sempre inéditas. Certa vez contou a seguinte:
Existia um dançarino de samba famoso, que se chamava “Zé Arrochadinho”. Não era o samba dos morros cariocas, que se espalhou por todo o país. Mas era, como se chamavam, desde o século XIX, as festas rurais, animadas por sanfoneiros. Anos depois, passaram a se chamar forrós. O Zé Arrochadino tinha um desafeto gratuito. Certo dia, chegou e avisou para a mulher:
- “Mulher, vai haver um samba ali e eu quero ir. É dos bons, do jeito que eu gosto! Eu quero que você arrume a melhor roupa que eu tiver aí!. É muito bom. É aqui perto!”
- “Tu não larga essa mania de ir pra samba!”
- “Este eu não quero perder de jeito nenhum!. Tenho dois motivos para ir: primeiro porque o samba vai ser bom; segundo, porque estou com um palpite que o Zé Arrochadinho vai, e eu vou matá-lo.”
- “E por que você vai matar o Zé Arrochadinho? Este cristão algum dia lhe fez mal?”
- “Simplesmente porque não vou com os cornos dele! Eu não simpatizo mesmo com aquele caboclo. Uma vez ele disse que suor de negra não fede, o que fede é suor de negro! Desde este tempo que eu fiquei invocado com ele!”
- “Pois agora eu estou é gostando desse Arrochadinho! E pra que a melhor roupa?”
- “Porque eu quero chegar é bonito!”
Foi só chegar no samba e já avistou o Zé Arrochadinho, dançando com uma negra. Não houve nem discussão. Foi logo enfiando a peixeira no desafeto. Foi aquele alvoroço! Fugiu e desapareceu. A casa de samba fechou. Após três semanas resolveu reabrir, encerrando o luto. Quando menos se esperou, estava lá o assassino, dançando tranqüilamente. O policial, que estava de espreita, bateu no seu ombro e disse:
- “Teje preso!”
- “Espere, não vai me dizer que ainda é por causa daquela história antiiiiiiga do Zé Arrochadinho!”

O AZARADO

Outra piada de Luís Sarmento foi a do apreciador de “samba”. Era muito pobre. As camisas que tinha estavam faltando botão. A única calça, já bem surrada. Com sacrifício conseguiu arrumar uma roupa para ir à festa. Foi à caixa de costura da sua velha mãe e conseguiu uns botões de diversos tipos e cores, para pregar na camisa. Reclamava porque nem o Padre Cícero nem o Frei Damião acabavam com a sua miséria.A calça era que “tava” ruim. Mas como dançava muito bem, sabia que não ia faltar “dama” para dançar com ele. Contava também com a pouca iluminação do forró, para ninguém notar a pobreza da sua roupa. Quando se dirigia para lá, um caminhão passou em grande velocidade por uma poça de lama, dando-lhe o maior banho. Não foi respingo, foi um banho mesmo:
- “Isso é que é o diabo! Mas eu ainda vou dar um jeito e vou pra este samba!”.
Aproveitou o vento forte para tentar secar a lama e, com um pedaço de madeira tratou de tirar o grosso da sujeira. Foi para trás de uma árvore e tirou a roupa para melhor limpá-la. Mesmo sentindo a fedentina, não desistiu do samba, confiando na sua fama de bom dançarino. Ao chegar, foi logo tirando uma conhecida para dançar, mas ela recusou:
- “ ‘Virge’ home de Deus. Tu tá podre!! Tu tá fedendo a pau de chiqueiro, vôte!! Vou lá dançar com você!!”
Ainda assim, não se deu por vencido. Foi para o terreiro tomar mais um vento, para sair a catinga. Na segunda tentativa, desistiu quando a dama exclamou:
- “Égua, tu parece uma carniça, de fedorento!”
Voltando para casa, pensava no seu azar, depois de tanto sacrifício. Deparou-se com um comício. Estava em um local mais elevado daquele onde se realizava o comício. Vendo aquele monte de gente, pensou alto:
- “Eu sou o único azarado aqui!”. Mas não tem nada não! Vou já fazer um outro azarado também.”
Com raiva, pegou uma banda de tijolo, deu uma volta no corpo e ...vupt... rebolou na multidão. Foi para casa dormir. Antes, porém, foi à beira do pote tomar um banho. Tombou no pote, que quebrou e a água se esparramou toda. Resolveu dormir sujo mesmo. Logo em seguida acordou, sobressaltado, com alguém batendo na porta e gritando:
- “Chico, ô Chico!!”
- “O que é? Não deixa nem a gente dormir, batendo na porta a estas horas da noite!”
- “Que nada, homem, eu venho é te avisar de uma desgraça. Um ‘fela da puta’ passou perto do comício e rebolou uma banda de tijolo, que bateu na cabeça da tua mãe. Corre que ela está pra morrer, no hospital!”


VI – OS COMUNISTAS

O Crato, como o restante do país, também foi vítima da chamada “redentora”. A cidade presenciou, estarrecida, o peso da total arbitrariedade de uma ditadura. Cidadãos trabalhadores e honestos, da noite para o dia foram arrancados de seus lares e submetidos a humilhações de toda sorte, sendo, inclusive, torturados. Os responsáveis eram pessoas completamente despreparadas para o convívio democrático. Bastava uma denúncia de quem quer que fosse, para que uma pessoa passasse pelo vexame de uma prisão sem culpa formal, sem prova alguma. Chegava à “autoridade” e o acusava de “comunista”. Estava decretada a prisão.
O Crato era uma cidade pequena onde todos se conheciam. O Luís, por exemplo, era uma pessoa pública. Dono, durante anos, da principal sorveteria da cidade, freqüentador assíduo das conversas da Praça Siqueira Campos, proprietário de uma Imobiliária legalmente constituída e trabalhando dia e noite na sua atividade. Transformou-se, da noite para o dia, fantasiosamente, em um perigoso guerrilheiro que iria repetir na Serra do Araripe os feitos dos barbudos das montanhas cubanas. Um inocente jogo de baralho, cujas partidas eram disputadas com caroços de feijão ou milho, passou a ser uma “terrível” célula comunista, onde eram arquitetados os mais tenebrosos planos. A venda de terrenos em um loteamento no Grangeiro passou a ser o “assentamento de guerrilheiros”. Torna-se difícil, para a geração atual, acreditar que tal paranóia realmente aconteceu.
O Luís, que nunca foi, não é e nunca será comunista, foi preso tantas vezes que perdeu a conta. De tanto ser preso, virou celebridade. Até as rádios de Fortaleza noticiavam sobre os prisioneiros do Crato. Com tanta popularidade, os verdadeiros comunistas ficaram curiosos por conhecer este “camarada”, perdido lá no Crato. Ganhou “status” de comunista sem nunca ter sido. Começou a receber, na prisão, latas e latas de doce em conserva que ele ia empilhando. Algumas vinham até com bilhetes dos “camaradas”, exortando-o à resistência etc etc... Como não deu vencimento, quando da libertação solicitou ao major para distribuí-las com outros presos, de todos os matizes. De vez em quando chegava um soldado do 23ºBC, na cela, indagando: - “Quem é Luiz Gonzaga Bezerra Martins”?
- “Sou eu.”
- “Encomenda para o senhor”
Várias vezes, na Siqueira Campos, foi assediado por pessoa estranha, cheia de mistérios, de cuidados, travando o seguinte diálogo:
- Companheiro, eu sou fulano, do partido, estou aqui para prestar solidariedade à sua luta de resistência, bla, blá, blá, blá. Notamos que você nunca se filiou e tenho a missão de convidá-lo a assinar a nossa ficha de inscrição.
- Ih!! Quero nada, rapaz. Que conversa é essa. De jeito nenhum! Eu tenho horror a obrigação. Não suporto viver com nenhum tipo de restrição. Já fui convidado a participar de Câmara Junior, Rotary e nunca aceitei.” “Deus me livre!” Não agüentei Seminário, internato do Colégio Cearense somente porque não suporto que ninguém me imponha limites. Partido político da mesma forma. Seja ele qual for. Eu quero ter a minha liberdade de ir e vir. Sou simpatizante. Agora, eu sou um socialista, pois defendo a justiça social. Mas não sou e nunca serei militante de partido político nenhum.
Outro que sofreu perseguições foi o Dr. Raimundo Bezerra. Era filho de uma mulher extremamente caridosa, a Dona Zezinha. A pedido dela e, depois por iniciativa própria tinha um determinado dia para atender, gratuitamente, à população pobre da cidade. Logo apareceu um idiota e outros, mais ainda, devidamente fardados e engalanados, que acreditaram que ele recebia dinheiro de Cuba para fazer aqueles atendimentos.
Na foto à esquerda a Dona Zezinha, a caridade em pessoa, induziu o filho a atender gratuitamente aos pobres, sem ajuda de Cuba.
Na foto à direita o Sr. Ernani Silva, vítima da tal “Redentora”

O Luís sentia uma enorme revolta quando via um homem da grandeza do Sr. Ernani Silva, trancafiado com 14 pessoas, num cubículo onde mal cabiam seis. Era uma colher só para todos se servirem da comida. E ainda mais, sob as ordens de um major alcoólatra, sendo submetido, com os demais cratenses, a dividirem aquele cubículo onde um aparelho sanitário entupido (provavelmente assim preparado), fazia escorrer fezes e a urina, para os arremedos de colchões espalhados pelo chão. Mas uma coisa a ditadura não conseguiu: acabar com o humor dos perseguidos. Este foi mantido incólume, senão, melhorado.

O PRESIDENTE

A visita do Castelo Branco ao Crato não foi nada agradável para o Luís. A amizade dele com o Dr. José Ribeiro Dantas, promotor público, acabou sendo responsável pelo fato constrangedor. Antes da sua chegada o Dr. José Ribeiro comentou com o Luis sobre o orgulho dele em poder hospedar o Presidente da República. E o Luís:
- “Deixa de besteira Zé. Ele não vai nem dormir lá. Vai usar a tua casa só pra mijar”.
A filha do Dr. José Ribeiro ficou encarregada de recolher doações de dinheiro, junto ao comércio cratense, com a finalidade de comprar um presente para ser ofertado ao Presidente. Passou na Imobiliária do Luís e ele deu a sua contribuição. Quando a menina ia saindo ele comentou:
- “Compra uma coroa”.
Como os ditadores se consideram reis absolutistas, nada melhor que uma coroa para coroar o ditador. Chegando em casa a menina comentou com o pai:
- “Mas o tio Luís é muito engraçado. Mandou que eu comprasse uma coroa”.

Visita de Castelo Branco ao Crato, ao desembarcar no aeroporto de Fátima, na Chapada do Araripe. É cumprimentado pelo prefeito Pedro Felício Cavalcanti. Ao lado, o bispo Dom Vicente de Araújo Matos.

Estava na casa do Dr. José Ribeiro a equipe precursora da vinda do Presidente, composta de militares da segurança. Como estava em plena vigência do festival da besteira que assolava o país, um militar, chegou à “brilhante” conclusão:
- “O que? Coroa? É coroa de flores. Vão assassinar o Presidente. Quem é este Luís? Luís Gonzaga Bezerra Martins?”
Consulta a lista dos “comunistas” do Crato. Lá está o nome do Luís como já tendo sido preso. Não quis saber se a prisão foi justa ou injusta. O Luís foi preso e levado para o 23º BC de Fortaleza, prometendo que, da próxima vez, diria que o Presidente era:
- “Alto, louro de olhos azuis”.


Autógrafo de 10 presos políticos do Crato, entre eles o Dr. Raimundo (6980) e o Luís (6986) ao chegarem no 10º GO de Fortaleza, de triste memória.

OS GUERRILHEIROS DA SERRA DO ARARIPE

Em julho de 1964, depois de um ano e meio tive condições de gozar umas férias. Passei o ano de 1963 estudando pesado no Cursinho da Sudene, para o vestibular da Escola de Engenharia. Passado o vestibular, entrei direto no exigente curso de Engenharia. Quando chegou o mês de julho resolvi passar os trinta dias na casa do Luís, no Crato. O movimento político estudantil era muito atuante, tanto no cursinho da Sudene como na Universidade. Mas eu, politicamente, era completamente alienado. Com as seguidas idiotices que a tal redentora estava fazendo, comecei a despertar para os absurdos que estavam sendo cometidos. Excelentes professores da Escola presos por razões mais sem sentido, próprias de um festival da besteira. Tínhamos um professor de Física, o Dr. Milton Ferreira de Sousa. Um idealista que viera de uma pós-graduação nos Estados Unidos para ensinar no Ceará, quando poderia ter ido para um centro mais adiantado no seu estado natal: São Paulo. A assinatura do professor Milton parecia com a palavra Miltoff. Por isso ele foi apelidado, pelos primeiros alunos da Escola, de Miltoff. E o apelido pegou. Logo após o golpe, a Escola foi invadida por um Coronel para prender esse russo Miltoff.
Não sei o que de verdade ou fantasia tem nessa versão. Mas, naquela época tudo era possível, alguém ser preso por causa de um apelido.
Mas, como além do Dr. Milton, foram presos outros professores que podem ter sido vítimas de “dedurismo” de alunos ou mesmo professores. Os motivos tão idiotas como esse acima relatado: ter oferecido um livro sobre teoria marxista a um aluno; criticado ou sido irreverente com alguns professores não tão dedicados, como ele, ao magistério; ter expressado opinião sobre qualquer assunto político da época; simpatia por algum partido político etc. Ou seja, temas ou assuntos corriqueiros hoje em dia. Na época, era atentado à segurança nacional. Tristes tempos!
O fato é que ele foi preso. Quando foi solto, o desgosto era grande que resolveu abandonar os seus sonhos e ir embora para São Carlos/SP. O Ceará perdeu um grande pesquisador. Até hoje o Professor Milton continua o grande pesquisador que era. Nunca se revelou esse comunista “perigoso”. Ao contrário, é um grande patriota que continua trabalhando, embora aposentado, para a Universidade de São Carlos. Por isso, tanto a Escola de Engenharia como o Cursinho da Sudene tinham fama de ser um antro de comunistas. E eu, no meio de tudo isso, só pensando em estudar.
Cheguei ao Crato e, diariamente, tinha um jogo de buraco no apartamento do Luís. Participavam vários amigos, entre eles o Dr. Raimundo Bezerra. Eram parentes e quase irmãos, pois foram criados juntos desde Crateús. Durante o jogo a conversa girava somente em torno do jogo em si. Eram duplas e uma tentava intimidar a dupla adversária. Pressionavam quando alguém demorava a jogar. Enfim, não se falava nem em mulher, nem da vida alheia e muito menos de política. Embora todos tivessem suas convicções políticas e não concordassem com as asneiras que estavam sendo feitas no país. Eu, quando não estava passeando na praça ou num cinema, ficava “aperuando” o jogo. Logo me entediava e ia dormir.
Foto colhida no prédio em que morava o Luís, em Crato. Eu estou à direita com a camisa da Engenharia. Ao meu lado, de óculos, meu irmão Mendelssohn. As três filhas do Luís: Cristina, Roseana e Sandra. A esposa do Luís, Margarida e minha mãe, Giseuda. Meu pai, Mourãozinho, não dispensava o terno.
Logo após o meu retorno a Fortaleza, uma patrulha do Exército arromba, literalmente, a porta do apartamento do Luís e, armados de metralhadoras, prendem aquela célula de guerrilheiros comunistas que estavam preparando uma contra-revolução na Serra do Araripe. Entre eles, o vizinho do Luís, pessoa totalmente avessa à política. Era uma pessoa alta e foi colocado numa cela que não podia ficar em pé, nem deitado. Para agravar mais ainda ele sofria de claustrofobia.
Será que eu estaria contando esta história se a invasão tivesse ocorrido quando ainda estava lá? Como o vizinho foi preso, eu, como hóspede, também seria preso. Como é que eu iria explicar para aqueles parvos que eu era apenas estudante da Escola de Engenharia e não um agente comunista de Fortaleza fazendo a ligação com os guerrilheiros da Serra do Araripe?...

VIVA ARRAES

Na véspera da chegada do Castelo Branco ao Crato, à noite, os “guerrilheiros da Serra do Araripe” fizeram a sua primeira e única “ação”. Compraram quase todo o estoque de tinta a óleo branca do comércio do Crato. Na calada da noite e em dois jeeps com luzes apagadas, invadiram a pista do aeroporto do Crato e picharam o asfalto, em letras enormes, tomando quase todo o tamanho da pista, a partir do ponto em que o avião pousa, as seguintes frases, que o Castelo Branco deve ter lido: VIVA ARRAES! ABAIXO A DITADURA!
Em 1963, o Castelo Branco com o Jango e o Arraes. No ano seguinte enxotava um do Brasil e prendia o outro em Fernando de Noronha.

UM BEBÊ

A estória dos “guerrilheiros da Serra do Araripe” fora fruto da imaginação fértil e até maldosa de alguns fofoqueiros e “dedos duros” de plantão, que também existiam no Crato. Não diferindo das demais cidades do Brasil.
Um destes, morava perto do apartamento do Luís, no bairro do Pimenta, em uma casa que por sua arquitetura de péssimo gosto lembrava a silhueta dos antigos caminhões FêNêMê, nome pelo qual era assim apelidada. O cidadão que morava nessa casa era dedo duro, informante das autoridades. Desta forma eles ficavam sabendo sobre os freqüentadores da “célula comunista” – o jogo de buraco na casa do Luís.
Não sabiam quem era e qual motivo, mas como acontece nas pequenas cidades, alguém acabou informando ao Luís que o tal vizinho era o “dedo-duro”. Não houve nenhuma represália contra ele, mas passou a ser observado com restrição pelos jogadores de buraco.
Não muito tempo depois, esse impoluto cidadão foi vítima de uma dessas artimanhas do destino. Foi flagrado pela esposa “mamando” na empregada, dentro do FêNêMê. A estória se tornou de domínio público, principalmente pelo fato do choro da tal figura diante da esposa, na hora do flagra. A turma dos guerrilheiros teve a sua agradável vingança. A partir deste fato o cidadão passou a ser conhecido como o Bebê Chorão do Fênêmê... Bebê, porque estava mamando, chorão por causa da reação que teve na hora do flagra e Fênêmê, em alusão a casa onde morava.

CHE

O Luís é daqueles que perde um amigo, mas não perde uma piada. Somente na cabeça delirante dos milicos daquela época, cabia a idéia de ele ser comunista. Não só ele como os outros cratenses. Tanto é verdade que os anos se passaram e ninguém se revelou comunista. Aliás, o único comunista foi preso apenas uma vez. Este, inclusive no passado perdera um olho, em ação. Certo dia o Luís encontrou-se com ele, em Fortaleza:
- “E aí, o que é que está fazendo?”
- Nem te conto, Luís. Fiz um concurso público, passei e estou trabalhando na Justiça Federal. E os bestas nem sabem! Não vai falar nada não!
O Luís resolveu achar um motivo que justificasse realmente as perseguições sofridas pelos milicos. Já que era preso mesmo, decidiu dar-lhes provas de que estavam tratando com um autêntico “comuna vermelho”. Imbuindo-se do verdadeiro espírito de gozação e deboche reinante entre seus parceiros da Praça Siqueira Campos, decidiu preparar-se a caráter. Como a primeira prisão o pegara desprevenido, a partir da segunda não seria mais assim. Estaria bem preparado. Não era nenhum esquema mirabolante de fuga. Em absoluto. Antes, porém, de pegar a escova e a pasta de dentes, ia ao guarda-roupa e vestia, com todo prazer e cerimônia, a camisa do Che Guevara!! Seria hilariante se fosse ao som da Internacional Comunista... Era uma camisa idêntica à usada nas serras cubanas. Guardava-a somente para estas ocasiões. Estava sempre bem lavada e bem passada. De prontidão! E assim se apresentava aos seus inquiridores para responder às perguntas mais idiotas. Até hoje se indaga por que nunca mandaram-no tirar aquela camisa debaixo de porrada. Talvez por ser a prova de que necessitavam para justificar-lhes os delírios de estarem, patrioticamente, combatendo os guerrilheiros vermelhos da Serra do Araripe.
O Che Guevara com uma camisa “igual a do Luís...”

No dia seguinte, na Praça Siqueira Campos, os remanescentes das Câmaras dos Comuns e dos Lordes, se indagavam, seguida de uma gargalhada geral:
- “E aí, o Luís foi com a camisa do Che?”

PASSAR NO COPO

Um costume muito usado, quando morria alguém importante ou pessoa querida do Crato ou das cidades vizinhas (Juazeiro do Norte, Barbalha, Missão Velha, Caririaçu, entre outras menos votadas), consistia em homenageá-las no Bar do Tinga.
A homenagem consistia em se Passar no Copo o falecido.
Todos tomavam uma rodada de cerveja e faziam um brinde ao falecido.
Essa ação de Passar no Copo, poderia ter uma dupla finalidade.
A primeira, e mais freqüente, era a de festejar mesmo a morte do coitado, era do tipo aquela, já foi tarde, não vai deixar saudade nem para viúva etc.
Nenhum milico que partiu desta para a pior foi esquecido. Em especial o Castelo Branco.
A segunda era uma ação concreta de solidariedade e mesmo de pesar, pela morte do falecido, geralmente restrita a alguém da roda de freqüentadores do Bar do Tinga ou simplesmente das relações de amizade de alguns dali. Nessa segunda hipótese só os do Crato tinham direito: “aqui Só do Crato”.

O BUCHANAN’S

O Dr. Raimundo Bezerra tem uma estória curiosa com relação ao militares da Redentora. Os primeiros filhos do Dr. Raimundo e da Dona Selene, foram duas meninas e ele não desistia da idéia de ter um filho homem.
Como ganhara de presente de um de seus inúmeros pacientes uma garrafa de Whisky Buchanan’s envelhecido de algumas décadas, prometeu a todos que a abriria quando o Raimundo Filho – era esse o nome que teria o filho – nascesse.
Várias vezes, e por diversos motivos, foi instado a abrir a tal garrafa de Whisky, principalmente por um seu primo, o Valmir, que também era um dos integrantes dos tais guerrilheiros da Serra do Araripe. Este tinha dois filhos, com os nomes Raul e Fidel (mera coincidência). Aliás, nenhum padre do Crato queria batizar os meninos. Somente o Padre Frederico rompeu com este preconceito, dizendo:

- “Traz os comunistazinhos que eu batizo”.
Dr. Raimundo sempre resistiu à tentação:
- “Não o Whisky é do Raimundo Filho, baixinho” – chamava a todos mais ligados a ele de baixinho.
Entrava ano, terminava ano, novas Exposições aconteciam (era uma das paixões do Dr. Raimundo) e nada justificava a abertura do Whisky.
Em um começo de tarde, todos foram surpreendidos pela notícia, vinda de Fortaleza, que havia ocorrido um acidente com um avião particular, que caíra nas margens da Lagoa de Messejana, em Fortaleza. Só escapara o co-piloto da aeronave que tinha o apelido de infância de “Piloto”.
Entre os mortos no acidente, estava o Ex-Presidente Castelo Branco, responsável, indiretamente, pelas prisões de muitos cratenses, como integrantes dos “Guerrilheiros da Serra do Araripe”. Cada vez que o Presidente vinha ao Ceará, os “guerrilheiros” (inclusive o Dr. Raimundo) eram, preventivamente, recolhidos.
Nesse dia, o Whisky Buchanan’s do Raimundo Filho foi, com toda justiça, bebido até a última gota!

A COMEMORAÇÃO

O Luís mereceria uma investigação científica, pois não consegue ingerir a menor quantidade de bebida alcoólica. Sofre uma reação alérgica terrível. Desde quando provou um gole de cerveja, na mocidade, nunca mais repetiu, devido às conseqüências.
Neste dia, que passou para a história do Brasil, o Luís estava em casa, quando o Dr. Raimundo Bezerra entrou, alvoroçado:
- “Luís, Luís, Luís liga o rádio aí, depressa. Liga, liga, liga”.
O Luís, então: “Clic... em acidente aéreo morre o ex-Presidente Humberto de Alencar Castelo Branco... Clic”
O Dr. Raimundo foi para o hospital trabalhar e o Luís se encaminhou para a Praça Siqueira Campos. No caminho, ouviu um espocar de fogos de artifício. Pensou: “Será?”. Chegando na praça aproximou-se dele o Plínio Norões, outro que não bebia nada, cunhado do Gov. Miguel Arraes. Trocaram olhares e o Plínio, falando entre os dentes, quase sem mexer os lábios, disse:
- “Vamos tomar uma?”
Dirigiram-se, calados, para a bodega do Dom Juan. O Luís pensando no que é que ia tomar: “Qual a que vai me fazer menos mal?” Pediu uma dose de Cinzano com uma gota de cachaça. O Plínio foi menos complicado:
- “Uma dose de whisky”.
Servidas as bebidas, ambos fizeram um discreto “Tim Tim” e beberam, sorvendo com enorme prazer cada mililitro daquela bebida que, por incrível que pareça, não fez o menor mal.
Então, o Luís indagou ao Dom Juan:
- “Quanto foi?”
E o Dom Juan que era um mão fechada, mas um excelente adivinhador de charadas:
- “NÃO FOI NAAAADA!!!. Vocês acham que vou cobrar de duas pessoas que nunca beberam na vida, nem Mineral!!! Eu sei porque é que vocês estão bebendo!!! Vocês estão passando é o VELHO NO COPO!!!! Eu não sou comunista, mas sou puto com essa tal de revolução!!!”

A ESPERA

A arbitrariedade nas prisões era tamanha que aqui e acolá os incompetentes prendiam pessoas erradas. Mas, até para corrigir o próprio erro não sabiam ou não queriam fazê-lo. Tinham que receber uma ordem superior de Fortaleza para soltar aquele que não deveria ter sido preso... As comunicações eram precárias. Não tinha telefone. A comunicação era feita através do “rádio”, que nunca funcionava.
Quando o Luís foi preso pela primeira vez, juntamente com os outros “companheiros”, foram levados para o Batalhão de Polícia de Juazeiro. Teriam que ser transportados para Fortaleza, mas faltavam os meios. Propuseram, então, que cada preso cedesse o seu veículo para “colaborar” com o transporte. Contando hoje, parece mentira. O Luís foi taxativo:
- “Eu não vou botar carro meu para eu mesmo ser preso, coisa nenhuma!! Era só o que faltava!!! O governo que pague passagem de trem ou alugue um veículo. Não tenho o menor interesse de ir para Fortaleza”
Quando o grupo foi colocado numa cela o Luís viu, com surpresa, o seu grande amigo Chico Soares, que também estava entre os comunas.
- “Mas Chico, o que é que você está fazendo aqui?”
- “Fui preso, Luisinho. Mas parece que queriam pegar era outro!”
Ficou o impasse de como os presos seriam transportados. E não resolviam nunca. Toca a esperar uma solução. Então o Chico, não perdendo o seu bom humor, chegou perto do Luís e comentou:
- “Luisinho, o que é chato da viagem é esta demooooora!!...”

O COMPROVANTE

Finalmente foi resolvido o problema do transporte que conduziria os “comunistas” para Fortaleza. Cada preso levara para a prisão uma trouxinha. Uma malinha qualquer com seus mínimos pertences, arrumados apressadamente. Então pegaram a sua pequena bagagem e foram acomodando no veículo.
O Chico Soares, embora soubessem que ele estava no lugar de outro, foi levado a embarcar assim mesmo. Quando depositou a sua bagagem, virou-se para um militar daqueles e cobrou:
- “E o meu comprovante?”

CONSELHO

Quando, às cinco horas da manhã, o grupo ia finalmente embarcar para Fortaleza, chega o tal “da radia” liberando o Chico Soares. O Delegado Pinheiro, do Crato, que era uma pessoa de bom senso, horrorizado com aquelas arbitrariedades do Exército, disse para o Chico Soares:
- “Chico, gosto muito de você. Gosto muito daqueles seus papos na Siqueira Campos! Mas não vá conversar besteira não! Você está vendo como o povo do Crato exagera as coisas. Vá pra casa. Vá dormir. Tem gente que se presta a este papel de denunciar os outros só por maldade. Se não fosse assim o Luís não estaria preso! Pelo amor de Deus, Chico, se aquiete. Se não, você vai acabar dando motivos para ser preso mesmo!”

HORÁRIO POLÍTICO

Querendo jogar para o público externo, dando idéia de Democracia, a Ditadura criou, artificialmente, dois partidos: um da situação (ARENA) e outro da oposição (MDB). Mas, justiça seja feita, foi o começo do fim deles. O MDB aos poucos foi se firmando, agrupando as pessoas que realmente queriam uma Democracia, que acabou vindo, lenta e gradual, no linguajar dos próprios ditadores.
Dentro deste arremedo de Democracia foram permitidos horários nos meios de comunicação para que os partidos políticos apresentassem suas idéias. Foi o precursor do atual horário político. O veículo de comunicação existente no Crato era o rádio. Foi permitido, então, que a Rádio Educadora, da Igreja, liberasse um horário. E o Luís foi escalado para falar no horário do MDB. Não era Democracia? Então falou o que quis. Tirou todos os recalques. Espinafrou a Ditadura e terminou com:
- VIVA ARRAES E ABAIXO A DITADURA!!!
Foi igual a “Primavera de Praga”. Não teve tanque, mas o programa foi extinto...
Rádio Educadora, em foto da época.

NADAR

Quando os “comunistas” cratenses chegaram ao “GO”, quartel do Exército em Fortaleza, de triste fama pelas covardes torturas que praticavam, os oficiais procuraram quebrar a resistência do grupo, com tortura psicológica:
- “Vocês pensam que vão chegar vivos em Fernando de Noronha?! Vamos abrir a porta do avião e jogar vocês todos no mar, sem pára-quedas!!”
Um deles acreditou naquela tortura e acovardou-se. Começou a chorar, alegando que era da Associação Comercial, era do Rotary, era comerciante estabelecido etc. Pura verdade. Mas a sua prisão já era um atestado que o Exército não estava querendo saber da verdade. Então, o Luís (que não entra em piscina nem de criança com medo de se afogar) interveio, para o riso dos demais presos:
- Deixe de ser besta, rapaz! Deixa eles jogarem a gente. Eu sei nadar. Pra mim não é problema. Se um jacaré (?) não me pegar. Morrer eu não morro!
- Você é ignorante, Luís! Pensei que você fosse um cara mais inteligente! Você já viu alguém escapar sendo jogado de um avião, cair dentro do mar e escapar, rapaz, nadando?!?!Morre no meio do caminho da viagem!
- Morre não! E você não sabe nadar, não?


VII – PERSONAGENS DA CIDADE

São inúmeras as figuras curiosas que ainda permanecem bem vivas na memória privilegiada do Luís, memória esta, hoje chamada saudade... São muito poucos os que sobreviveram à inexorável ação do tempo, apesar de tão vivos em suas estórias, em suas peripécias. Outros, ainda perambulam pelas ruas da moderna cidade, pela Praça Siqueira Campos, sem entender como tudo mudou “tão de repente...”
Das muitas conversas com o Luís, surgiu a idéia de falar sobre esse período da história da cidade, também sobre estes personagens, a fim de que, daqui há algum tempo, não pensemos que nada disso existiu. Que tudo ão passou de um sonho... O meu tio, Luis Gonzaga, pode afirmar, como em Juca Pirama – “Meninos, eu vi”.
A lista é imensa. Eis as estórias de cada um:

ÁGUA BANANAL

“Seu” Teófilo foi um farmacêutico que ficou famoso na cidade. Era um homem alto, conversador, espirituoso. Como farmacêutico sempre combateu o tracoma, uma conjuntivite grave que ataca a mucosa ocular, problema quase endêmico na região, principalmente naqueles brejos. Sua incidência era tão intensa que chamavam os que nasciam no Crato de cratenses dos olhos roídos. Teve a lucidez de alertar ao Bispo sobre o reservatório de água benta, das igrejas, que era um ponto de contágio de tracoma. A farmácia dele era sempre um local de reunião, onde muitas estórias se passaram.
Próxima da sua farmácia tinha também uma outra, a Central, do José de Figueiredo (Sr. Zuza). Além de farmacêutico também era escritor e pai do que viria a ser o escritor famoso da terra o J. Figueiredo Filho. Em um dia de feira, o Sr. Zuza observou um grande movimento de pessoas na farmácia do Sr. Teófilo, que saíam com um litro de um produto. Era um remédio para o tracoma. Segundo as prescrições, deveria ser usado para lavar bem os olhos, voltando na semana seguinte para comprar um outro litro. O Sr. Zuza, curioso, perguntou para um vendedor do concorrente que fórmula era aquela, recebendo a resposta:

J. Figueiredo Filho, grande escritor cratense.
- “Água bananal”
- “Água bananal?!?!
Como o vendedor não esclarecesse, o Sr. Zuza resolveu dar uma espiada para dentro da farmácia, onde eram aviados os remédios. Flagrou o Sr. Teófilo “preparando” um novo litro prodigioso. Após encher o litro com água da torneira, fazia aquele gesto característico de quem dá uma banana: apoiar a mão direita sobre a esquerda e deslizá-la até o pulso do braço direito encostar na palma da mão esquerda. A cada gesto desses dizia:
- “Toma filho de uma égua”.
Estava entendido o porque da água bananal...


Acima foto da Farmácia Central. Vemos o Sr. Zuza, de terno, ao lado de seus colaboradores. As funcionárias todas uniformizadas.


O Sr. Zuza, acima, deixou uma marca indelével no meu braço. A cicatriz da vacina contra varíola...

O OCULISTA

A farmácia do Sr. Teófilo era um ponto de reunião da cidade, de onde todas as novidades se difundiam. Chegou ao Crato um novo médico, Dr. José Furtado Filho, com a especialidade de oculista. Logo foi levado à farmácia, para ser apresentado ao Sr. Teófilo, bem como a outras pessoas importantes da cidade que ali se reuniam. O farmacêutico teceu os maiores elogios ao médico, deu-lhe as boas vindas, pois a cidade estava precisando de um médico com essa especialidade etc. Fez até a encenação teatral de chegar até a porta da farmácia e, em voz alta, voltado para a rua, bradar:
- “Parabéns Crato!!! Agora tens um médico oculista!!!”
Mal o médico deu as costas, virou-se para seu auxiliar e ordenou:
- “Chega Siqueirinha, vai depressa cortar vara de marmeleiro. Nós vamos ganhar dinheiro, vendendo bengala pra cego....”

O TRATO

Ao final do expediente diário, o Sr. Teófilo, juntamente com o Xenofonte, seu funcionário, fechava o “caixa” que, na verdade, era uma gaveta e recolhia o apurado. Na manhã seguinte o Xenofonte ou um segundo funcionário abria a farmácia. Aconteceu, num determinado dia, do Sr. Teófilo chegar primeiro que todos os funcionários. Ele mesmo abriu a farmácia. Por coincidência, um freguês que estava à espera comprou um produto. O Sr. Teófilo recolheu o patacão na gaveta. Logo em seguida chegou o segundo funcionário e encontrou a farmácia aberta e o Sr. Teófilo trabalhando no laboratório, aviando umas receitas. Nesse ínterim entrou um novo cliente e comprou um medicamento. Quando esse funcionário foi guardar o dinheiro, encontrou um patacão. Então pensou que ficara esquecido. Não teve dúvidas, embolsou o dinheiro. Pouco depois chegou o Xenofonte e se explicou sobre o motivo do atraso. Chegou um novo cliente e desta vez foi atendido pelo Sr. Teófilo. Ao abrir a gaveta para passar o troco, percebeu a falta do patacão. Não teve dúvidas. Chamou o funcionário à parte e disse-lhe:
- “Vamos fazer um negócio. Toda venda que eu fizer o dinheiro é meu. A que você fizer, pode roubar. Assim, devolva o meu patacão.”

A MERENDA

No Crato morava uma parenta nossa (minha e do Luís) que tinha uma mania exacerbada de economia. Ela era descendente do primeiro Mourão cearense, como eu (Alexandre da Silva Mourão I). Em tudo ela primava pela redução de despesas, principalmente com alimentação. As estórias de economia são várias.
Acredito que essa sua mania de economia com alimentação provinha de algum trauma de infância. Uma irmã dela, que vivia na sua cidade de origem, produzia hóstias para a Igreja. Ensinava bordado a um grupo de moças, não esquecendo de recomendar sempre:
- “Tragam merenda, senão vão comer restos de hóstia”.
O mais interessante é que não havia a menor necessidade da prática excessiva de tais economias por parte dela. O esposo tinha uma situação financeira excelente, porém, dentro do seu espírito bonachão, não a impedia de agir daquela maneira. Por trás, dava sempre um jeito de diminuir as conseqüências daquela restrição alimentar. Reconhecia as inúmeras qualidades da esposa, como mãe, companheira, pessoa extremamente caridosa e solidária. Enfim, uma pessoa boníssima, a não ser por este pequeno problema. O prato do almoço era o famoso PF. Assim, podia controlar a quantidade, evitando os excessos. Nesta hora, sempre dizia:
- “Tá na hora da divisãosinha”.
O queijo do baião de dois não era em pedaços. Ela apenas espalhava um pouco de queijo ralado. Esta divisãosinha significava um regime alimentar drástico. Os filhos, todos em fase de crescimento, geralmente iam completar o almoço no Quiosque do Sr. Anfrísio, na praça Francisco Sá, ou no Bar Social do Sr. Chiquinho, com o beneplácito do pai.
Mas, sejamos justos, segundo testemunha o Luís. Ela era farta na sobremesa e nas merendas. Tanto assim, que o Luís procurava estar sempre presente nestas horas (morava vizinho). Mandava comprar um cento de macaúbas, que custava frações de tostão, e colocava numa enorme cuia, que vivia sob a mesa do almoço. Todos podiam comer macaúba à vontade. O que se ouvia então era o barulho característico do quebrar das cascas das macaúbas, nos portais daquela residência cratense. Era uma festa!
Bar Social onde o almoço era complementado...

MEIO QUILO

Até o início da década de cinqüenta era raríssima a família que possuía uma geladeira em casa. No Crato, então, contavam-se nos dedos de uma mão quem dispunha desse avanço tecnológico. Sendo assim, os alimentos perecíveis tinham que ser comprados diariamente e apenas nas quantidades necessárias para o consumo. Portanto, todas as manhãs alguém da família era escalado para ir ao mercado comprar carne e verduras para o uso diário.
A responsabilidade de fazer essas compras na casa dessa nossa parenta, do Luís, e do meu pai (Alexandre Sauly Mourão), era de um empregado do meu avô, Sr. José Pereira. “Seu Zé”, como todos o chamavam. Era uma pessoa muita inteligente, perspicaz e bastante observadora. Lá em casa ele sempre comentava, rindo, as encomendas da nossa parenta, muito menores que a do meu avô e as lá de casa. No entanto, ela gostava de manter privacidade sobre o excessivo zelo financeiro com relação à alimentação. Assim, quando ia passar para o “Seu Zé” a encomenda do dia, se estava presente alguém estranho à família, recomendava:
- “Sr. Zé, hoje só basta meio quilo de carne”...

O TOSTÃO

Na contabilidade desta querida senhora, um ovo para uma criança era desperdício. Como a família era numerosa e, muitas vezes hospedavam primos, um ovo sempre dava para mais de uma pessoa. Às vezes para quatro! A quantidade de ovo a comprar sempre dependia da cotação. Caso o preço fosse de dois ovos por quinhentos reis, “Seu Zé” tinha autorização de comprar dois ovos. Mas se estivesse custando três tostões, bastava comprar um.

A MANTEIGA

Essa mesma parenta econômica tinha uma preferência e um cuidado todo especial com uma sua filha. Para ela eram reservadas certas regalias. Uma delas era uma manteiga de melhor qualidade, sempre guardada no guarda-roupa!. Para tanto, era comprada a marca mais famosa e mais cara: a Lírio. Ao abrir a lata, um papel isolava a tampa da manteiga. Ao retirá-lo vinha grudada uma porção do produto, que era aproveitado com papel e tudo e jogado na panela do feijão, para temperá-lo. A mesma coisa ela fazia com o toucinho: colocava no feijão para aproveitar o sal. Quando recebia alguma visita que merecia comer o pão com manteiga de melhor qualidade ordenava à sua auxiliar apanhar no guarda-roupa:
- “Ô menina, traz aí a manteiga da minha filhinha”!

RESERVA DE ÁGUA

O impacto do choque de um meteoro com a Terra (como o que provocou a extinção dos dinossauros), ou o deslocamento das placas continentais sempre provocaram movimentos violentos na crosta terrestre. A região do Cariri, no Ceará, também sofreu abalos sísmicos há milhões de anos. Houve uma violenta fratura na crosta, ocorrendo um cisalhamento e uma brusca elevação de uma parte do solo, fazendo surgir a chamada Serra do Araripe. Serve de fronteira entre os Estados do Ceará e Pernambuco. Tem uma extensão de 180 km, uma largura média de 20 km e uma altitude em torno de mil metros. Este brusco movimento fez secar lagos ou extensões do mar, deixando milhares de peixes debatendo-se na lama, vindo a formar os depósitos de fósseis que deram fama internacional à Região, pela riqueza de material para pesquisa geológica.
Esta aparente catástrofe foi, na verdade, uma benção da natureza para a região. O material elevado, constituído de sedimentos totalmente permeáveis, passou a ser um grande reservatório de água, funcionando como uma verdadeira esponja. Toda esta “esponja”, com espessura de cerca de 400 m, repousa numa camada impermeável. Por um outro capricho da natureza, esta camada impermeável tem uma inclinação voltada para o lado cearense. Isto faz com que mine água dessa “esponja”, formando o fertilíssimo Vale do Cariri.
A Serra é alimentada de água por duas maneiras. As “frentes frias” que chegam a alcançar o Nordeste esbarram na Serra, provocando chuvas e encharcando a camada de arenito. A outra maneira são os ventos úmidos do Atlântico que, ao chocarem-se com a chapada da Serra, são forçados a subir, provocando o resfriamento, condensação e precipitação, alimentando seus mananciais.
No topo da Serra não tem rios. Toda água que cai se infiltra. Os fazendeiros têm duas opções para ter água: ou fazem um poço com mais de 300 m de profundidade; ou criam os barreiros. Estes barreiros surgiram como fruto da observação dos primeiros colonizadores que ocuparam a região para a criação de gado. Notaram que nos currais a água não se infiltrava. Então escavaram trechos do solo, formando enormes “bacias”. E ali colocaram o gado ou o jumento para caminhar à vontade. A compressão do casco do animal provoca a impermeabilização do solo. Não funciona caso a compactação seja feita utilizando equipamentos. Voando-se sobre a serra, no período de chuva, percebe-se, naquela imensa “mesa de bilhar” de tão plana que é, inúmeros barreiros. Alguns para animais, outros para consumo humano.
O contrário acontece nas cidades que cresceram na encosta da Serra. Crato, por exemplo. Existem dezenas de fontes a derramar água constantemente. Na verdade a Serra é uma enorme “caixa d’água”. O volume estimado é de quatro bilhões de m³, duas vezes o Orós e livres de evaporação.
Mas, não é necessário nenhum conhecimento técnico da geologia da região para qualquer pessoa compreender que se trata de um oásis no Nordeste, tal a abundância de água. Os “banhos” na Nascente ensinavam que a fartura de água é imensa. Aquela água a jorrar indefinidamente, dia e noite.
Mas, existia uma pessoa no Crato que estava preocupada com a possibilidade de acabar com aquela inesgotável reserva de água da Serra. Era a minha querida parenta, já comentada. Como tinha oito filhos e mais alguns agregados, parentes dela ou do esposo, quando um dos meninos entrava no sanitário, ela determinava:
- “Não vá dar descarga agora, não! Deixe juntar mais!”

MAIS ÁGUA

A abundância de água no Crato era tão grande, que a Prefeitura, nas décadas antes de cinqüenta, não cobrava taxa. Era de graça. Nos chafarizes públicos, nos bairros afastados, como testemunha o Luís, as pessoas não tinham o hábito de fechar as torneiras. Ficavam derramando água direto. Uma vez ou outra havia uma deficiência no abastecimento, provocada por um problema qualquer no sistema. Mas essa nossa parenta mantinha sempre uma bacia d’água, que era utilizada para diversas finalidades.Ali a empregada dava banho em dois ou três meninos. Como a parte dos fundos da sua residência era em tijolo de chapa aparente, sem qualquer revestimento, precisava ser mantido sempre úmido, para não levantar poeira. Quando a empregada ia jogar fora aquela água já reutilizada ela gritava:
- “Não, não, não, aproveita para aguar o quintal...”

O DOCE

Dentre muitas das habilidades da nossa querida parenta, destaco, no aspecto da culinária, o seu doce de leite. Era inigualável. Pela sua consistência cremosa e seu sabor, assemelhava-se com o outro doce, muito famoso do Crato, o doce de leite da Isabel. Minha irmã Yara era vidrada nesse doce e, costumeiramente, ia visitá-la na esperança de saborear aquela guloseima. Por ser sua querididinha, era sempre convidada a comer do doce. Então ela dizia:
- “Minha filha, como você é de casa, coma aqui na colher mesmo...”
Dava-lhe uma colher de sopa com doce... Mas a Yara queria mesmo era um pires cheio, a ser degustado lentamente. Então, esperava que ela se afastasse e, com a mesma colher, engolia seguidas colheradas de doce, quase de uma só vez...

A REFEIÇÃO

O hábito de economizar, digamos assim, dessa nossa querida parenta perdurou por toda a vida. Mesmo após os filhos casados, formados, em condições financeiras excelentes, não relaxava no seu cuidado com a economia. Um dos filhos, após a formatura, radicou-se em uma capital nordestina. E, nas férias, sempre ia ao Crato com a família, rever os pais e os irmãos. No retorno de uma dessas viagens, dirigindo o seu carro, sofreu um acidente em Brejo Santo. Ele e sua família foram socorridos no hospital daquela cidade. Receberam a maior atenção, principalmente por ser a família do irmão de um grande amigo do Dr.Gladson, Diretor do Hospital. Em seguida, esse irmão foi buscá-los em Brejo Santo, levando-os para o Crato, a fim de dar continuidade ao tratamento. A esposa, acidentada, ficou em convalescença na casa da sogra, com recomendação para uma alimentação cuidadosa, visando auxiliar na recuperação.
O Luís foi visitar os filhos do acidentado no hospital, e a esposa, na casa da nossa parenta. Chegando lá, ela falou estar bem. O problema era só a alimentação:
- “Luís, sabe o que minha sogra trás para mim, todas às tardes, às três horas, pontualmente?”
- “Não, o que é?”
- “Um prato de miolo de pão com leite...”

O CARROSSEL

A Praça Francisco Sá, grande obra de Alexandre Arraes, nas décadas de quarenta e cinqüenta, era o cartão postal do Crato e a sala de visitas da cidade. A foto da praça, mostrando a coluna da hora foi motivo do selo comemorativo dos cem anos da cidade, em 17/10/1953.
Um dos lados da praça dava para a Estação Ferroviária, aliás, um belíssimo prédio. O movimento de trem era diário, constituindo-se a porta de entrada e saída do Crato. Não existia outro meio de transporte além do trem. As pessoas iam para a Estação, como hoje se vai para os aeroportos, levar ou receber pessoas ou, simplesmente passear ou comprar os jornais da capital (Unitário, Correio do Ceará e O Povo). Às segundas-feiras, dia da grande e famosa feira livre, o movimento era duplicado, pois o trem trazia os feirantes pela manhã, carregados de mercadorias e, à tarde os levava de volta para as diversas cidades vizinhas.
Selo comemorativo do centenário do Crato no valor de 60 centavos. É da minha coleção, quando ainda garoto. Aparecem a Coluna da Hora e a Fonte Luminosa.
Circundando os outros lados da praça pontuavam residências de famílias que marcaram a vida social do Crato naquelas décadas. Trouxeram o progresso para a cidade, como comerciantes de escol que eram. Através de grandes investimentos, contribuíram para o desenvolvimento da cidade, tanto na construção de imóveis como colaborando junto à Prefeitura em diversas melhorias urbanas. Dentre outros citarei: Luis Martins de Araújo (meu avô); seu grande amigo e sócio Joaquim Bezerra de Farias, cujo filho, Raimundo Bezerra foi prefeito na década de 90, responsável pela recuperação da praça, que estava abandonada e decadente; José Teunas Soares grande amigo dos dois citados anteriormente, embora concorrentes no comércio; George Lucetti, de nacionalidade grega, comerciante e industrial e o maior investidor na construção civil da cidade, dono da casa mais bonita da praça; meu pai (Alexandre Sauly Mourão), que morava vizinho ao Sr. George Lucetti, aliás, na casa onde nasci; Sr. Adalgiso Paiva, comerciante de couro de animais silvestres; Sr. Francisco Bezerra, dono do Bar Social e mais conhecido como “Seu Chiquinho do Bar Social”. Lembro-me muito bem dele, de baixa estatura, num passo pequeno, atravessando a praça na diagonal, de sua casa para o bar; e do Sr. Chico Higino, comerciante de madeira. Era de cor branca, sardento e com o cabelo meio avermelhado. Por isso, muitos dos seus filhos tinham essa característica especial: o cabelo vermelho. Nós, meninos, dizíamos que eles tinham tomado banho de chuva e o cabelo tinha enferrujado...
Casa do Sr. George Lucetti, local de grande festa ao término da IIª Guerra Mundial. Parentes dele foram mortos pelos nazistas quando do ataque a Creta. À direita da casa o armazém Lucetti Exportação. À esquerda a casa onde nasci. Presumo que a foto seja de 1944. Existe uma criança nos braços de uma moça. Penso que seja eu com a minha babá Maria.

Foto atual da casa do Sr. George Lucetti. Funciona uma escola infantil.
Meu pai contava que o Mestre de Obra, que a construiu, dizia: “Lucetti, esta casa devido as curvas sempre será bonita”. Tinha plena razão.

Casa, vizinha à do Sr. George Lucetti, onde nasci em 12 de fevereiro de 1943.

Residência do Sr. Teunas Soares. Em frente, na praça, existia um banco onde ele, meu avô e outros amigos se reuniam ao final de todas as tardes.

Residência do Sr. Chiquinho, do Bar Social. Demolida recentemente.

Residência do meu avô, Luís Martins de Araújo. Foto de 1948, colhida pelo meu pai. O garoto sou eu com o “chapéu de engenheiro”. À minha direita minha irmã Yara e meu irmão Raimundo. As moças são: minha tia Gerson e suas primas Guiomar e Valdívia. Ao fundo, atrás da coluna, meu tio Gervásio.

O certo é que, essas figuras notáveis costumavam, aos finais de tarde, reunir-se em um banco da praça, em frente à casa do Sr. Teunas, onde conversavam assuntos diversos, inclusive, estórias engraçadas. Todos vestiam ternos de linho e usavam chapéu de massa. O Sr. Chico Higino, dono de um humor fino, o que transferiu ao filho Zé Aragão. Estava sempre com um sorriso nos lábios. Certa vez contou o seguinte fato, que ocorrera com ele: estava na zona rural do Crato e entrou numa bodega para comer um queijo. Nesta ocasião entrou um homem do campo, com um chapéu de palha de abas largas. O chapéu media cerca de um metro de diâmetro. O Sr. Chico Higino perguntou-lhe:
- “Meu amigo, onde é que você vai montar este carrossel?”
Aquele homem simples, com cara de poucos amigos, barba por fazer, olhando-o de cima a baixo, com uma voz grossa e bem pausada, respondeu:
- “No cu da mãe...”
O Sr. Chico Higino, rindo, imediatamente retrucou:
- “Oba! Pelo menos vou rodar de graça!!!”

MATA BORRÃO

O meu avô e o Sr. Joaquim Bezerra construíram um belo prédio, que até hoje chamamos de armazém, onde funcionava o comércio de atacado deles. A inauguração foi um acontecimento na cidade. Foram enviados convites para as autoridades e para os amigos. O Sr. Chico Higino recebeu também o seu. Na costumeira reunião no banco em frente à casa do Sr. Teunas, comentou com o Sr. Adalgiso:

Prédio onde funcionou a firma do meu avô, Luís Martins com o sócio Joaquim Bezerra de Farias.

- “Mas Adalgiso eu recebi de presente desta firma que vai inaugurar amanhã um mata borrão que é uma maravilha!”
- “Mata borrão? Chico Higino isto não será o convite, não? Abra, que dentro tem um convite, homem!”
- “É mesmo? Eu sou muito ignorante, mesmo!!!”

MAMA MIA

Sr. George Lucetti foi um grego que muito fez pelo Crato. Foi comerciante, industrial e grande construtor. Os mosaicos da sua fábrica eram coloridos com tinta importada da Inglaterra. A Praça Siqueira Campos utilizou mosaicos doados por ele. Homem inteligente, poliglota, pessoa de conversa extremamente agradável. Grande admirador de música clássica.

Sr. George Lucetti numa foto com um grupo de rotarianos, no Crato Tênis Clube.

O Sr. George gostava muito de ficar horas conversando com o Luís, na Imobiliária Santa Marta, quando não estava lendo o jornal. Faleceu com mais de noventa anos em total lucidez. Lembro-me muito dele, pois fomos vizinhos. Nasci na casa vizinha à sua, que era a mais bonita da Praça Francisco Sá.
Um dia o Luís perguntou:
- “Sr. George por que o senhor veio morar no Brasil?”.
- “Luís como você sabe. Eu sou natural da ilha de Creta, filho de mãe italiana, daí o nome Lucetti. Minha mãe tinha o nome que eu dei para milha filha: Areti. Um dia foram nos visitar umas primas italianas. Elas falavam e eu não entendia nada. Mas quando elas disseram ‘mama mia!’, fiquei apaixonado por aquela língua. Disse para mim mesmo: eu vou morar num país da América que fale uma língua parecida com esta. Inicialmente vim morar em Buenos Aires, na Argentina e depois vim para o Brasil, sempre encantado com esse idioma. Por isso estou aqui. O ‘mama mia!’ que ouvi daquelas primas italianas me fez cruzar meio mundo e estou hoje, aqui com vocês!”

A PATIÑO

Da Argentina o Sr. George Lucetti veio para o Brasil, atraído pela possibilidade de fazer fortuna na construção da estrada Madeira-Mamoré. Chegando lá, a situação era bem diferente daquela que imaginara. As condições insalubres foram responsáveis pelo enorme número de mortos. Dizem até que, para cada dormente colocado morreu um trabalhador. Segundo ele foi lá que dormiu pela primeira vez em rede. Estava mesmo predestinado a vir para o Ceará. O Sr. George era um homem elegante, alto, preservando ainda a beleza da juventude. O acampamento onde morava era próximo de uma cidade boliviana, onde vivia uma família chamada Patiño, muito rica e dona de minas de estanho. Por sinal, Simon Patiño, na década de 20, chegou a ser o terceiro homem mais rico do mundo. Uma das suas filhas apaixonou-se pelo Sr. George, mas não se declarou abertamente. O Sr. George também manteve certa reserva, pois a época não permitia maiores intimidades. No entanto, esse ‘amor platônico’ já lhe propiciava certas regalias e, por conseqüência, para os seus amigos mais chegados. Um dia, quando estava dormindo no acampamento, na sua rede, foi despertado pelo cutucar de uma bengala de um colega, que dizia:
- “Ô George, George casa com a Patiño...”.

Simon Patiño, ex-futuro sogro do Sr. George Lucetti

O SILÊNCIO

Conheci o Sr. Artur Pirão trabalhando com o Sr. George Lucetti. Parecia um personagem saído de um livro de Machado de Assis. Andava sempre de colete, camisa branca, de mangas compridas, relógio de algibeira e óculos. O terno era preto. Não era baixo. Magro e bem empertigado para a idade, próxima, acredito, dos 90 anos. Parecia uma pessoa do século XIX. A manga da camisa era maior que o braço, pois sempre tinha uma dobra, na altura do antebraço, presa com uma espécie de liga. Gostava de cheirar um rapé, que guardava numa latinha (aliás, de nome muito estranho: boceta). Fumava também cigarro de palha, cujo fumo ele mesmo preparava, pisando num couro. Deve ser essa a origem do ditado: “apanha mais que couro de pisar fumo!”. Quando estava trabalhando no escritório tinha sempre à testa um protetor de luz, preso à cabeça por um elástico. Acredito que o Sr. George, homem de bom coração, mantinha-o no trabalho como uma forma de ajudá-lo na sua velhice.
Encerrado o expediente, o Sr. Artur ia sempre aperuar um jogo de gamão, no ponto de Sr. Zeba, próximo ao comércio de rapadura. Ele ia, assistia, entendia do jogo, mas não fazia nenhum comentário. Chegava calado e saia sem dizer uma palavra.
O principal jogador de gamão era o Zé Leitim. Ao contrário do Sr. Artur, falador, contador de piada. Estava sempre procurando fazer o Sr. Artur falar. Durante um jogo, para que os dados dessem um determinado número, ele cantava a pedra. Por exemplo, ele queria um terno e dizia, antes de jogar os dados: “Terno do peito amante”. Quando saia o terno, se dirigia para o Sr. Artur:
- “Tá vendo Artur. A gente tem que adular os dados!”
O Sr. Artur calado estava, calado ficava.
Um dia, após o Sr. Arthur se retirar, o Zé Leitim impaciente com aquele mutismo, falou:
- “Pessoal, vamos pregar uma peça no Sr. Artur. Vamos fazer ele falar”.
Eram uns seis ou sete, entre jogadores e “perus”. Dentre estes tinha um que ficou com um apelido de Gagarín (acento tônico na última sílaba). Tudo por ter feito o seguinte comentário, durante um jogo, seguido de uma gargalhada geral:
- “Tem um russo “avoando” arriba de nós. Um tal de Gagarín”
No dia seguinte, como de costume, o Sr. Artur chegou. De acordo com o combinado alguém falou para o Zé Leitim:
- “É verdade que você, quando menino, andou fazendo umas besteiras?”
- “Eu sei o que é que você está querendo dizer. É verdade. Eu não nego não. Mas, você sabe, eu era menino. E menino é bicho sem vergonha. Faz coisas que não sabe nem o que é. Mas também foi só uma vez. Nunca mais!”

E o Sr. Artur calado, apenas arregalou os olhos. Em seguida, o outro jogador:
- “Pois comigo, quando menino, foi mais de uma vez. Já estava até me viciando. Aí a minha mãe descobriu, me deu uma surra. Sabe aquelas surras que se dá em galinha para largar o choco? Se não fosse essa surra, eu acho que ainda hoje eu estava com esse “vício”.
O Sr. Artur calado. Apenas olhava para um e depois para o outro. Seguiram-se as outras “confissões”, inclusive do Gagarín. O Sr. Artur ainda calado. Apenas olhando fixamente para cada um. Fazia parte dessa roda de “perus” o então Deputado Federal, Ossian Alencar Araripe. Como os outros, também fez a sua “confissão”. O Sr. Arthur, espantado, o olhou de cima a baixo. Ficou, então, aquele silêncio. Todos esperando um “depoimento” do Sr. Artur. Finalmente, o silêncio foi rompido:
- “Querem saber duma coisa? Eu vou é embora, porque aqui só tem veado.”

PORRADA...

José Batista foi uma das figuras mais características do Crato dos anos cinqüenta. Vestia a camisa para quem trabalhava. Tinha sempre funções operacionais, mas falava como se fosse dono da empresa. Servira nos fuzileiros navais, no Rio de Janeiro. Após ter dado baixa, voltou para o Crato. Chegou falando chiado e cheio de gírias. Um ‘carioquês’, que os gozadores de plantão da cidade não poderiam deixar passar em brancas nuvens! E a oportunidade logo surgiu. Como gostava de jogar futebol, não perdia oportunidade de participar de ‘peladas’. Por ser bem alto e forte, tinha preferência por jogar na defesa. E, para intimidar os atacantes adversários, bradava com entonação carioca:
- “Não vem que ‘dou-te’ um pôôôrrrraaaada...”
Não teve outra! Foi rebatizado de Zé Porrada...
E o nome ficou. Para alguns ele admitia, para outros não. Quando ligava para o Luís, em Fortaleza, se identificava como José Batista. O Luís se fazia de desentendido, até que ele assumia:
- É o Zé Porrada!
- E como vão os porradinhas? (eram os filhos).

PROIBIDO FUMAR

Em agosto de 1951 os Diários Associados inauguraram a primeira rádio do interior cearense e uma das primeiras do Nordeste. O próprio Assis Charteaubriand foi para a inauguração. A casa do meu pai, na Rua Nelson de Alencar, era vizinha (parede com parede) com a Rádio Araripe. Lembro-me bem do Chateaubriand, num terno de linho branco, conversando com outras pessoas, em frente à minha casa.
Assis Chateaubriand inaugurou a Rádio Araripe do Crato
A Rádio Araripe tinha um bom auditório, que servia tanto para apresentação de filmes como para programas de rádio, com a presença de artistas famosos. O porteiro era, nada mais nada menos, do que o famoso “Zé Porrada”. Uma das suas características era integrar-se plenamente naquilo que estava fazendo. Era de vestir mesmo a camisa. Quando falava sobre a Rádio, era com tal entusiasmo que, se alguém não o conhecesse, pensaria que era sócio do Assis Chateaubriand.
Em certa ocasião, Orlando Silva estava na cidade para apresentação de um show, na rádio. Os artistas dos Diários Associados vinham do Rio de Janeiro de avião. A companhia era a Real Transportes Aéreos. Como os vôos não eram diários, ficavam aguardando alguns dias e se incorporavam ao cotidiano da cidade. Orlando Silva, então, decidiu assistir a um filme. Sentou-se na última fila. O cinema estava com pouca freqüência e ele resolveu acender um cigarro. Pra quê! O Zé Porrada chegou-se a ele e, autoritariamente, fazendo jus ao nome, disse:
- “Olha, aqui é proibido fumar. Pode apagar o cigarro!”

Orlando Silva, o “Cantor das Multidões”

NELSON GONÇALVES

A vizinhança com a Rádio Araripe me propiciava ver e, até mesmo encontrar mais à miúde, com Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Vicente Celestino, Augusto Calheiros, Ademilde Fonseca, Emilinha Borba, Luiz Gonzaga, as irmãs Batista, Dóris Monteiro, Agnaldo Raiol (ainda criança) e a Orquestra Cassino de Sevilla. Como a Real não tinha vôos diários os artistas faziam as suas apresentações e ficavam na cidade, integrando-se à sua vida alegre e hospitaleira, esperando o vôo que os levaria a Fortaleza ou de volta ao Rio de Janeiro. Lembro-me, por exemplo, do meu tio Hermógenes Martins, que tinha uma extrema facilidade de se relacionar com qualquer pessoa, levando o Orlando Silva até o armazém onde o meu pai trabalhava, para saber do resultado de um jogo do Flamengo. Em outra ocasião, a Doris Monteiro, na calçada da minha casa, conversando com o Diretor da Rádio, Wilson Machado. Eu ouvia admirado, por não entender nada do que ela falava. O sotaque carioca, para mim, era como uma língua estrangeira.
Um dos artistas que mais se integrou à cidade foi o Nelson Gonçalves. Ele ficava na Sorveteria Glória cantando suas belas canções, acompanhado ao violão pelo meu tio Gervásio Martins, irmão do Luís. A bebida dele era especial. Ele mesmo preparava. Chegava ao balcão e pedia à Maria das Neves, funcionária da Sorveteria, para esquentar dois ovos. Enquanto isso, pedia ao Luís, uma Pitu. Falava bem rápido, para disfarçar a gagueira. Colocava a cachaça pela metade do copo. Quando os ovos estavam mornos, despejava no copo, colocava o sal e, com uma colher grande mexia aquilo tudo. De uma talagada só, bebia aquela gororoba.O Gervásio, que tocava com perfeição, embora tivesse só 5% da visão, o aguardava para novos momentos de boa música. Eram tempos tranqüilos e felizes... Ficou famosa a dança do mambo jambo, do Nelson Gonçalves com a Regina Helena, em uma festa no Crato Tênis Clube.
Gervásio, de inteligência privilegiada. Autodidata em tudo. Tocava violão divinamente bem. Acompanhou Nelson Gonçalves no seu show particular na Sorveteria Glória.

Nelson Gonçalves deixou saudades no Crato
Um dos roteiros turísticos imperdíveis do Crato, era a Nascente. Tanto pelo bucolismo da região, quanto pelo famoso “banho da Nascente”, fonte de onde foi canalizada a água para acionar uma turbina inglesa, que gerou energia para a cidade durante muitos anos. O banho era na saída da água da turbina ou na captação, na encosta da Serra. Era o programa de fim de semana das famílias cratenses. À noite, quando não havia freqüência das famílias, constituía-se em cenário de encontros amorosos de casais, em contato direto com a natureza. E o Nelson Gonçalves, como não podia deixar de ser, quis experimentar o banho da Nascente, com tudo a que tinha direito. E foram buscar, na Glorinha, as profissionais. A Glorinha não quis liberar. Só o fez quando alguém falou:
- “Deixe de ser besta! O que é que você está pensando? É pra Nelson Gonçalves, Glorinha!!!”

A CORTINA

A função de porteiro do Zé Porrada na Rádio Araripe não foi das mais fáceis. Dois meninos atazanaram a vida dele. O meu irmão Marcelo, cinco anos mais novo do que eu, e um colega dele, o Antônio Querginaldo, que morava quatro ou cinco casas depois da nossa.
O Zé Porrada estava tranqüilamente no seu posto de porteiro do cinema da Rádio Araripe, se preparando para começar os seus famosos cochilos, quando começou a ouvir assobios e reclamações da platéia, em altos brados. Rapidamente entrou no auditório para saber o que estava acontecendo. Percebeu que a cortina que cobria a tela não tinha sido aberta. Já estava passando o Jornal Atlântida e ninguém conseguia ver nada, com a cortina fechada.
Acontece que o Marcelo e o Querginaldo, de tanto insistirem com o Wilson Machado, Gerente da Rádio, tinham recebido a “tarefa” de abrir a cortina, um a cada vez. O Zé Porrada correu para a cortina e, chegando lá, encontrou atrás da tela os dois meninos embolados no chão, na maior briga. Cada um achava que aquele era o seu dia de abrir a cortina...

FILME IMPRÓPRIO

O Marcelo, o Querginaldo, o Paivinha, e outros meninos da rua costumavam usar de dois artifícios para ver os filmes impróprios. Sentavam-se todos no muro do jardim da casa do Sr. Araújo (representante da Sousa Cruz), na frente da Radio Araripe. Esperavam o Zé Porrada dormir, debruçado sobre a urna onde eram colocados os ingressos. Não demorava muito e o Zé dormia. Então todos eles, um a um, pé ante pé, passavam pelo Zé e sob o único obstáculo que os separavam do cinema: uma corrente cromada de mais ou menos metro e meio. Os meninos costumavam ir para a primeira fila e se acomodavam embaixo das cadeiras, para não serem vistos. Quando o filme terminava, o Zé se surpreendia com os meninos saindo e perguntava surpreso:
- “Como é que vocês entraram?”
- “O xente, você dormiu...”.
O outro artifício se limitava a um deles entrar e abrir a cortina que bloqueava a porta secundária de saída do auditório do cinema. Esta porta tinha umas aberturas na sua parte superior. Sentado no muro do jardim do Sr. Araújo, que era meio alto, tinha-se a perfeita visão da tela da Radio Araripe. Quando o Zé, alguma vez acordava e percebia aquele amontoado de meninos, inclusive eu, não tinha dúvidas: ia fechar a cortina, para o desagrado geral.
Rádio Araripe. A Porta mais larga era a que dava acesso ao Auditório. À esquerda, uma porta menor que era utilizada para saída do público do Auditório. Na metade dela tinha uma abertura que dava para “brechar” o filme.

O APOIO

O Clube Grangeiro tornou-se realidade devido ao espírito empreendedor, aberto ao sonho, do Luís. Além de idealizador, foi o primeiro Diretor e também o construtor. Com visão estratégica, decidiu vender 30% dos títulos em Juazeiro, contra o desejo da maioria dos cratenses, devido a sentimentos de bairrismo e competição. Assim, graças a isso, pôde contar com um bom reforço financeiro. Sempre recebia apoio dos juazeirenses quando necessitava de aporte antecipado de recursos para ampliar o clube. Certa ocasião, indo vender um título a um juazeirense, foi atropelado. Logo alguém do Crato disse:
- “Taí o que ele ganhou! Foi vender um título em Juazeiro e quase morreu!”
A pessoa que comprara estava presente e disse:
- “Foi para mim que ele vendeu!”.
O “Zé Porrada” trabalhava como corretor do Clube. Há tempos tinha deixado de trabalhar nos Diários Associados. Sua função era vender títulos, o que exercia com aquela paixão que o caracterizava quando abraçava uma causa. Havia a reivindicação para a construção de uma piscina para crianças. E o Luís, conversando com outros sócios, informou que estava decidido a pegar um empréstimo para construí-la. Um dos sócios, o Walter Peixoto, disse que a decisão dele estava mais do que correta. E o Zé Porrada, que estava ao lado, afirmou enfático:
- “Eu topo!!!”

Vista do Clube Grangeiro, construído pelo Luís. Percebemos a piscina com água pura vinda diretamente de uma nascente própria.

O HOTEL

A visão empreendedora do Luís imaginou, no final da década de sessenta, implantar um Hotel cinco estrelas no Grangeiro. Viria atender a carência de Hotel da cidade do Crato, à época, e fortalecer o Clube, incluindo-o no roteiro turístico do Cariri.
Cheguei a elaborar o projeto, contratado pela Prefeitura, apresentando uma maquete e com todo o roteiro para buscar o apoio financeiro da Embratur.
Além do bloco de suítes do Hotel – que seria utilizado pelos sócios do Grangeiro - existia um outro, em forma de Y, que complementava todas as necessidades do Clube como cinema, teatro, salão de festas, restaurante, lojas de artesanato etc. Em contrapartida, os turistas utilizariam as piscinas e quadras do Clube.
Seria implantado no local onde hoje existem os chalés. Infelizmente, a idéia não foi avante, ficando apenas na maquete, conforme podemos apreciar nas imagens seguintes:
Em primeiro plano as instalações existentes do Grangeiro: piscinas, sanitários e quadra de esporte. Ao fundo, numa cota superior, com vista para todo o Vale, o Hotel.
Vista lateral do projeto, percebendo-se que ficaria numa cota bem superior ao plano das piscinas. Eu e a Edméia, ainda namorados.


A FARINHA

José Teunas Soares foi um dos grandes empreendedores do Crato. Tinha um comércio de atacado de grãos e amealhou uma boa fortuna, possibilitando atuar na área financeira como sócio em Banco Regional. O Sr. Teunas fazia questão de alimentar a idéia de que estava sempre em dificuldades financeiras, criando a fama de avarento, ou seja, popularmente conhecido como “mão fechada”. Mas tudo não passava de uma estratégia, uma forma de exteriorizar o seu senso de humor fino. E com isso, foi criando esta fama.
Ele e sua esposa, Dona Iolanda, eram grandes amigos dos meus pais. E nós amigos dos filhos deles, principalmente do Melchior.
No entanto, quando precisava gastar, não fazia economia. Quando um dos filhos passou por um aperto financeiro, o Sr. Teunas pagou todas as dívidas dele. A Dona Iolanda comentou com minha mãe:
- “Mas Giseuda, eu não sabia que o Teunas era tão rico!”
Em certa ocasião ele estava vindo de Araripina/PE, para o Crato, em um caminhão de boléia aberta, trazendo uma carrada de farinha. O caminhão estava descendo a serra e sobrou numa curva, tombando. O braço direito dele ficou preso debaixo da carroceria, chegando a quebrar. Lembro-me bem de vê-lo com o braço engessado. O motorista se apressou em socorrê-lo. Mas ele, debaixo do caminhão, com uma voz meio espremida, disse:
- “Salve primeiro a minha farinha”.

AS MÃOZINHAS

O Melchior, filho do Sr. Teunas é quase da mesma idade do meu irmão mais velho, o Raimundo. Gostavam muito de jogar futebol num terreno ao lado do armazém do pai. Conta que o Raimundo, a quem ele chamava de Perácio, quando estava perdendo, acabava o jogo. Como dono da bola, botava-a debaixo do braço e ia embora.
Quando saí do Crato (1955) perdi o contato com o Melchior. Somente anos depois, na década de setenta, quando já estávamos formados, voltamos a nos encontrar. Ele Diretor da Ceasa/CE e eu engenheiro da Cobal, com a missão de construir Centrais de Abastecimento pelo Brasil afora. Passamos a nos rever periodicamente, nos seminários sobre Ceasas. Sempre recordávamos os jogos de “ping-pong”, na mesa de almoço da minha casa que era em forma de elipse. Ainda hoje, quando vejo esses jogadores de tênis de mesa profissionais, sempre comento: queria ver era jogar naquela mesa “redonda” lá de casa e fazer ponto com “casquinhas” sensacionais, no cantinho da rede.
Interessante que, no primeiro seminário sobre Ceasa de que participei com o Melchior, percebi que todos os técnicos do país já o conheciam como “mão fechada”, ou seja, econômico, tanto com o dinheiro próprio como o da Ceasa (nesse particular, louvável). Ele não oferecia café. Era sempre um chazinho de ‘capim santo’, que a copeira colhia nos terrenos baldios da Ceasa. Também não ligava de Fortaleza para Brasília. Esperava que alguém ligasse e pedia para transferir a ligação para outro ramal. E assim ele falava com dez pessoas, com custo zero para sua Ceasa. Sempre tinha no bolso uma nota de maior valor. Aprendeu com outro colega nosso, Gilberto Gatti, que tinha a fama de não pagar nada. Hoje seria uma nota de cem reais. Com essa estratégia se livrava de pagar pequenas despesas, como cafezinho ou refrigerantes, alegando que não tinha ‘trocado’.
Um dia fui com o Melchior visitar os pais dele. O reencontro foi uma alegria. A Dona Iolanda, sempre muito gentil, me ofereceu doce:
- “Roberto você quer doce de banana em calda, doce de buriti, doce de leite, doce de goiaba, doce de caju, qual é o que você prefere?”
Antes que eu respondesse, o Sr. Teunas interveio, rindo, e disse:
- “Tá vendo, Roberto, é por isso que eu não sou rico. Com uma mulher perdulária dessa. Veja só a quantidade de doces que ela faz...”
Comecei a contar da fama de avarento do Melchior, junto aos técnicos de Ceasas do Brasil. Sr. Teunas, então, me pegou pelo braço e disse:
- “Roberto, vou lhe contar um segredo”.
Mostrou as duas mãos fechadas e continuou.
- O Melchior, quando nasceu, já veio com as mãozinhas bem fechadinhas.”.

Quatro cearenses, sendo três do Crato no XI Congresso Internacional de Mercados Atacadistas, em fevereiro de 1979, em São Paulo. Da esquerda para a direita: eu (recém saído da Ceasa/RS), meu irmão Raimundo (Diretor da Ceasa/PI), Ciano Ribeiro da Cunha (Diretor da Ceasa/SE) e José Melchior Soares (Diretor da Ceasa/CE)

A REVOLTA

O Colégio Diocesano do Crato tinha alguns aparelhos para as aulas de Educação Física. Alías, eram um martírio as tais aulas. Após os exercícios, tínhamos que tomar banho com água gelada. Na época fria, então...
Um destes aparelhos eram duas barras de ferro colocadas na vertical, com uns 4 metros de altura. Ficavam em frente à sala do Admissão. Nessa sala estudava-se durante um ano para fazer uma prova de “Admissão ao Ginásio”. Era uma espécie de vestibular. Para se passar para o ginasial, tinha-se que se submeter a essa prova.
O exercício, nessas barras, era subir até o topo usando a força dos braços e apoiando-se como as pernas entrelaçadas na barra. O Melchior estava tentando subir e o meu tio Galba, alertando-o do perigo de cair. E, de fato, o Melchior se despencou lá de cima e “se estatelou” no chão. Ficou sem fala e foi carregado para a Secretaria. No meio do ajuntamento de alunos curiosos, um disse:
- Eita morreu um aluno! Oba, três dias de feriado!!!
O Melchior, revoltado com aquele comentário e sem poder falar, apenas levantou o braço em meio àquela multidão de cabeças e manteve um longo e demorado COTOCO...

O RATO

O Dr. Tadeu de Paula Brito, médico, além de companheiro no Rotary era muito amigo do meu pai. Morava quase vizinho a nós, na Nelson de Alencar. Ele e sua esposa, Dona Zenilda, eram presenças constantes na “roda de cadeiras” na calçada da nossa casa. Ele sempre animava as conversas, pois era muito espirituoso e contador de piadas.
O casal não tinha filhos, mas criava dois sobrinhos, o Pedro Celso e o William, meus amigos e companheiros dos jogos de futebol com bolas de “meia” ou de “borracha”, nas calçadas da rua.
O Dr. Tadeu fez o seu curso secundário no Colégio Diocesano do Crato, na época Gymnasio do Crato, como interno, e aprontou poucas e boas.
Certa ocasião, revoltado com uma cobrança do Ginásio, que considerava indevida, resolveu se vingar. Comprou uma folha inteira de papel para embrulho, que tinha nas bodegas e, munido de uma lata com grude subiu, na madrugada, ao telhado do Colégio. Pregou, com muita dificuldade, a folha sobre a letra “C” de Crato, amanhecendo o educandário com um novo nome: “Gymnasio do Rato”, como podemos ver na foto a seguir.
Eu e o meu irmão Marcelo com os nossos amigos William e Pedro Celso em um dos brinquedos – de madeira – do Crato Tênis Clube.
Vista da entrada do Colégio Diocesano como era quando iniciei meus estudos, em 1949. Esta foto deve ser da década de 30 quando só existia o Ginasial e a reforma ortográfica ainda não havia ocorrido.
À esquerda o Dr. Tadeu. À direita, a Dona Zenilda com a minha mãe.

O COOPER

No começo da década de setenta estava projetando, calculando e construindo residências em Crato e Juazeiro do Norte. Num final de tarde estava conversando com dois clientes. Um médico, para quem estava projetando a sua residência, e um industrial que me contratou para reformular o projeto da sua indústria (sandálias japonesas), visando obter um financiamento da Sudene.

Na época, estava em voga a prática do Cooper, principalmente pelo fato da seleção brasileira de 70 ter utilizado na sua preparação física. Os preparadores eram dois militares: Cláudio Coutinho e Parreira.
Os meus clientes eram praticantes e estavam a contar as suas façanhas em números. Neste momento chega um terceiro, amigo dos dois. Então, tentam convencê-lo a ser um adepto da prática do Cooper. E ele sempre recusando. Até que ele perguntou:
- A que horas mesmo vocês vão para este negócio?
- Às cinco e meia da manhã!
- Ah, a esta hora a minha mulher não me deixa sair de casa.
E os dois em uníssono:
- Mas por quê?
Ele foi taxativo, anulando qualquer outro argumento:
- Esta é a hora do tesão do mijo!!! Temos que aproveitar!!!!

A “CORDA”

O seu Misael era proprietário de uma pensão no Crato, sendo um dos principais hotéis, na primeira metade do século XX. Pessoas importantes hospedaram-se lá. O Luís conheceu o Luís Gonzaga (o sanfoneiro) nessa pensão, onde ele costumava ficar. Lembra-se até de ouvi-lo cantando, para poucos, uma música que raramente se ouvia:
Sou pão duro
Vivo bem
Não dou esmola
Não faço favor
Não ajudo a ninguém!
A principal particularidade do Sr. Misael era ser um mentiroso contumaz. Contou que, certa vez, armou sua rede para dormir. Quando se deitou, a rede caiu. Acendeu a lamparina para rearmá-la. Somente então, verificou que tinha armado a rede não com uma corda, mas com uma cobra!...

AVIÃO VOA

Wilson Roriz foi Deputado Federal e era natural de Jardim, cidade vizinha ao Crato. Era um deputado ativo. Não era daqueles que ganhavam calado, como diz a música do Billy Blanco. Foi um dos primeiros a lutar pela energia de Paulo Afonso para o Cariri. Mas, apesar de ser político, não era simpático. Estava sempre reclamando. Costumava, como ainda hoje é comum nos deputados, viajar. E viajava de avião. O destino: Rio de Janeiro, capital do país, à época. O aeroporto era o do Crato, que ficava em cima da Serra. Tinha uma pista de asfalto e uma acanhada estação de passageiros. O funcionário da Real, empresa que atendia à região antes da Varig, chamava-se Pedro Patrício. Era o faz tudo no aeroporto. Fazia o check in, despachava e recebia as bagagens, embarcava os passageiros. Era uma pessoa que não aceitava desaforos, tendo sempre uma resposta pronta.
Um dia o Deputado Wilson Roriz chegou ao aeroporto para embarcar e, como de costume, chegou reclamando e bem alto para o Pedro:
- “E aí? O avião nada?”
- “Não, voa”.

O VÃO

O Deputado Wilson Roriz, quando no aeroporto, estava sempre reclamando. E o mau humor era geralmente direcionado para o Pedro Patrício, que nunca deixava o deputado sem a devida resposta.
Em certa ocasião, tendo chegado do Rio de Janeiro, estava aguardando receber a bagagem. Começou a reclamar em voz alta, daquele espaço reduzido. Solicitava a construção de um novo bagageiro, utilizando um espaço ao lado. Dirigiu-se ao Pedro, que estava no meio das malas:
- “E este vão aqui?”
- “É o vão à puta que pariu”

MUNDOCA

O aeroporto do Crato foi construído em cima da Serra do Araripe. O local não era adequado, pois costumava ficar nublado, ou seja, sem teto para pousos e decolagens. Vez ou outra o avião passava direto para Fortaleza ou Petrolina. Por essa razão, acabou sendo desativado, passando a ser utilizado o Aeroporto Regional de Juazeiro do Norte. Na época do aeroporto do Crato, os aviões eram remanescentes da segunda guerra: DC-3 e C-47. Posteriormente foram substituídos pelo Avro que era um turbo-hélice.
No Crato vivia uma figura muita querida de todos. Era o Mundoca. Seu meio de vida era vender rifas, que sempre tinha um sorteado. Por isso ninguém se negava a assinar as suas rifas. Outra característica dele era viver assobiando. Imitava tudo o que é tipo de passarinho. O assobio dele era alto e todos na cidade conheciam bem.
Quando o Avro começou a pousar e decolar no Crato, percebeu-se que tinha um assobio muito intenso. Logo os gozadores de plantão disseram:
- “Espere, e o Mundoca agora virou avião?”
O Avro virou Mundoca...

ALUIR

Os aviões DC-3, da Real, que pousavam no ‘campo de aviação do Crato’, só o faziam à tarde. De manhã, na altitude de mil metros, sempre estava nublado, portanto sem teto para pouso ou decolagem. O piloto acompanhava o processo de reabastecimento da aeronave. Como o ‘campo’ não era cercado, os matutos que moravam por perto se aproximavam, curiosos para ver o avião. O piloto, brincalhão, perguntou a um dos matutos, bem acanhado:
- “O senhor tem medo de avião?”
- “O bicho estando no chão, ‘seu major’, não tenho medo, não! Só fico com as carnes tremendo, quando ele vai ‘aluir’”.

A DECOLAGEM

Neste mesmo avião o Luís embarcou para Fortaleza, com o Dr. Eduardo Solon. Era um farmacêutico, nascido em Sobral e que adorava o Crato. Dono de farmácia na cidade, torcedor fanático do Flamengo e muito amigo do meu pai. Era uma pessoa muito expansiva. Falava alto e estava sempre alegre. Lembro-me dele, com os seus inseparáveis óculos ‘ray ban’
Estando os passageiros todos acomodados, o avião começou a taxiar em direção à cabeceira da pista. Antes da decolagem o piloto sempre fazia um ‘check list’. Começou a testar os motores e aquecer os magnetos. O avião preso e os motores a toda velocidade provocavam uma vibração e um barulho infernal, no interior do avião. Nisso, o Eduardo Solon dirige-se ao comissário de bordo:
- “Meu camarada, este avião está se espremendo todo é ‘pra’ levantar vôo ou vai primeiro cagar?”

Eduardo Solon e seus óculos
Ray Ban

A CONFUSÃO

O meu tio-avô Hermógenes Martins, tio do Luís, foi um personagem ímpar, no Crato. Homem de pouca instrução formal, mas detentor de um grande conhecimento, fruto de sua incrível curiosidade. Profundo conhecedor da geografia, da hidrogeologia do Vale do Cariri e da Serra do Araripe. Era o geólogo e o paleontólogo do Crato. Sabia classificar animais, plantas, pássaros, fosseis e árvores. E o Cariri é o maior depositário de fósseis de peixes do mundo. Recentemente foi descoberto um dinossauro carnívoro. Localizou e mapeou fontes e a estrutura mineralógica do sul do Ceará, com rara paciência e método beneditino.
Qualquer cientista que chegasse à cidade, para desenvolver pesquisas, trazia o seu nome e endereço: Coronel Secundo, 8. Cientistas brasileiros, japoneses, americanos e europeus não davam um passo sem ter a assessoria do Tio Hermógenes. Abaixo, vemos o cartão do Dr. Shozo Yamamoto da Universidade de Tóquio.


Também dominava, como poucos, os estudos genealógicos. Foi ele quem descobriu onde nasceu o grande Delmiro Gouveia.
Foi colaborador do Instituto Cultural do Cariri desde a sua fundação. Em sua casa recebia, sempre, com permanente bom humor, todas as caravanas estudantis ou de técnicos que vinham a busca de informações sobre a região.
A cidade o homenageou com um nome de rua.
Outra característica, que se sobressaia sobre as demais, era a facilidade de fazer amizades. Um dos seus grandes amigos era o notável Luiz Gonzaga, o sanfoneiro e o pai dele. A amizade era tanta que o velho Januário se hospedou durante quinze dias na casa do tio Hermógenes, para submeter-se a tratamento médico, enquanto o filho (fotos seguintes), famoso e querido de todos, fazia shows pelas cidades vizinhas.

O Tio Hermógenes teve quatro filhas: Ruth, Norma, Fátima e Célia. As três últimas eram pequenas, quando se hospedou o Sr. Januário. Uma delas foi atender alguém que batia à porta e, falando com um vozeirão, disse:
- “O velho Hermógenes está?”
- “Está lá dentro”
- “Pois diga que é o Luiz Gonzaga”.
A menina, meio confusa, pensando no primo Luís Gonzaga, disse para o pai:
- “Papai, tem um negro lá fora, dizendo que é o Luis Gonzaga!!”

Tio Hermógenes, a esposa Aracy e a filha Ruth logo após mudarem-se de Crateús para o Crato. Ao fundo, à direita, a casa onde moravam.

Tio Hermógenes e a esposa Aracy, pouco antes dele ser acometido da doença de Parkyson.

PÉ DE MESA

Nas cidades do interior, e o Crato não fugia a esta regra, todas as pessoas ficavam sabendo dos homens que tinham certas partes anatômicas do corpo avantajadas. Era sempre motivo de papos nas praças e calçadas. As putas não gostavam de ter como clientes aqueles a quem chamavam: “pé de mesa”. Estavam sempre avisando para as outras:
- “Não vai com fulano que ele é pé de mesa”.
E acabavam por contar para os clientes normais, que tratavam de espalhar pela cidade toda.
O “pé de mesa” mais famoso do Crato era um promotor que morou na cidade por um curto período. A Glorinha, para bajular o Doutor, avisou-lhe da chegada de uma menininha bem novinha linda de morrer. Só quinze anos. Ele foi logo experimentar esta preciosidade. A Glorinha, sabendo dos seus atributos, advertiu:
- “Olhe, vá com jeito. Seja moderado. A menina é nova e tem poucos quilômetros rodados.”
Poucos minutos depois que o casal entrou para o quarto, ouviu-se um barulho e um grito da menina:
- “Me acudam, me acudam, que este homem está me ‘ajojando’ !!!
Alguns dos fregueses, apavorados com os gritos, botaram a porta abaixo e depararam-se com a menina acocorada na cabeceira da cama e dizendo:
- “Tirem este jumento de lote daqui de dentro!”

RODILHA

A raça humana, como é hoje, surgiu após milhões de anos de evolução, há cerca de cem mil anos, no sul da África e às margens do Oceano Índico. Como eram nômades, se espalharam pelo mundo inteiro. Ou seja, desde aquela época já existia a globalização. Primeiramente na África. Quando chegaram no Oriente Médio, uns dobraram para esquerda e foram povoar a Europa. Outros dobraram para a direita e foram habitar a Ásia. Nesse período ocorreram duas glaciações, provocando o drástico rebaixamento do nível dos oceanos, possibilitando o acesso, a pé, das atuais ilhas do Pacífico e mesmo da Austrália. A América foi alcançada caminhando pelo estreito de Behring. Uma outra hipótese é que alguns chegaram à América do Sul cruzando o Oceano Atlântico reduzido, quando das glaciações. Estes nômades se alimentavam da caça e da colheita de frutas e raízes que a natureza oferecia. Desde o primeiro núcleo familiar, no sul da África, houve uma divisão de tarefas que perdura até hoje no nosso interior e, por conseguinte, no Crato. Os primeiros homens perceberam que as mulheres e as crianças não poderiam participar da caça. As mulheres falavam demais e as crianças faziam muito barulho, gritando e correndo. Com isso espantavam a caça. Assim, decidiram que as mulheres ficariam no acampamento, cuidando das crianças e da feitura dos alimentos. Uma outra tarefa estabelecida para elas foi a de abastecer o acampamento com água. Esta é uma tarefa, até hoje, século XXI, que as mulheres do sertão cumprem religiosamente, sem nenhum questionamento, como a coisa mais natural do mundo (na verdade é uma tradição de cem mil anos). As nossas sertanejas desenvolveram uma habilidade fantástica de equilibrar o pote ou a lata na cabeça. Mas evoluíram, usando um pano enrolado, conhecido como rodilha, que serve de proteção à cabeça e possibilita maior equilíbrio ao pote. Por isso surgiu um ditado: “Se não pode com o pote não pegue na rodilha”. Ou seja, se alguém não tem capacidade de desenvolver uma tarefa não deve nem tentar.
Mas tudo isso para dizer que uma sertaneja, “pupila” da Glorinha, no Crato, encontrou uma outra ‘função’ para a rodilha. Recebeu como cliente um conhecido ‘pé de mesa’. E ele, tentando convencê-la:
- “Mas minha filha, eu só ponho a cabecinha”.
- “Não, cabecinha sem ombro, não quero não”.
Conversa vai, conversa vem, até que ela se saiu com esta:
- “Tá bom, eu deixo, mas desde que você use esta rodilha como esbarro”.

A SAUDADE

A Rua Nelson de Alencar era uma rua sui-generis. Tinha de tudo. Começava com um cabaré. No primeiro quarteirão todas as casas eram prostíbulos. Os mais famosos: Odilon, velho José Alves, Iraci, entre outros. Ali só circulavam os homens e as prostitutas. Quando um garoto atravessava aquele quarteirão proibido, as prostitutas iam ‘enredar’ ao pai. Os outros quarteirões eram familiares. Tinha indústria de mosaico, revendedora da Chevrolet, a sede da maçonaria, a praça Francisco Sá, hotel, uma rádio e um cinema, dentista, colégio, carpintaria e terminava com um cemitério. Quando o Crato teve a sua primeira Juíza, ela tomou uma decisão que os outros juizes não tiveram coragem (também eram usuários...): expulsou o cabaré da Nelson Alencar para a periferia da cidade. Aquele trecho da rua, então, passou a se chamar: Rua da Saudade...
Rua Nelson de Alencar, em 1950, vista na direção do Colégio Diocesano. Minha irmã Yara encostada no poste de madeira existente em frente ao portão da nossa casa. Ainda não existia a Rádio Araripe. Este poste e a parede delimitavam a “trave” nas nossas “peladas” com bola de meia ou de borracha.

Rua Nelson Alencar da Rua Bárbara de Alencar para o Ginásio do Crato em foto recente, colhida por mim. Ao fundo a Serra do Araripe. O poste, agora, é de concreto.

BAR DO TINGA...

O meu irmão Marcelo que se formou médico, antes de se radicar no Rio Grande do Sul, trabalhou no Crato por dez meses em 1975, logo após ter concluído a especialização em cardiologia, no Rio de Janeiro. Foi trabalhar na Casa de Saúde do Dr. Raimundo Bezerra, que leva o nome de seu pai, Sr. Joaquim Bezerra. Antes, nas férias da faculdade costumava passá-las no Crato, estagiando na Casa de Saúde do Dr. Raimundo. Foi testemunha de algumas estórias interessantes nesse seu breve regresso ao Crato.
Conta ele que, no horário do almoço, antes de ir para a casa do Dr. Raimundo, costumava acompanhá-lo até o Bar do Tinga, famoso pela cerveja mais gelada do Crato. O Dr. Raimundo costumava dizer o seguinte, sobre esse Bar:
- Caso, um dia, alguém deseje escrever sobre a história do Crato, não poderá deixar de fora o Bar do Tinga. É o verdadeiro Hyde Park do Crato. Ali tudo é permitido falar.
Era um referência ao famoso parque londrino, onde existe uma tribuna livre para se falar o que quiser e sobre quem quiser.
O Tinga, proprietário, tinha uma incrível habilidade de gelar as cervejas sem deixá-las congelar. Essas rodas de cerveja eram freqüentadas por diversas pessoas, das mais variadas profissões, desocupados, aposentados, comerciantes, médicos, advogados, políticos, produtores rurais, enfim tinha de tudo.
O bar tinha como vizinhos, à direita de quem entrava, um depósito de uma das conhecidas lojas de eletrodomésticos do Crato, e, à esquerda, uma casa de comércio com um produto insólito: urnas funerárias. O proprietário também freqüentava as rodas de cerveja do Bar do Tinga e atendia pelo apelido de “Caixão”. Era Caixão pra cá, Caixão pra lá, e não dava mostras de sentir-se incomodado.
Num desses dias, depois de já ter tomado umas a mais, ele se encheu de coragem e resolveu fazer um pedido formal, para os companheiros de bar:
- “Amigos, o meu ramo de comércio já é bastante desagradável. Eu vivo da infelicidade de alguém perder a vida e a família vir ao meu estabelecimento para comprar um caixão. Se não quiserem me chamar pelo nome, tudo bem, podem até botar outro apelido que eu vou aceitar”...
Seguiu-se um silêncio, até que um dos integrantes da roda, o Zé Aragão, filho do Sr. Chico Higino, espirituoso como o pai, tomou a palavra e disse, em tom muito sério:
- “Pessoal, o nosso amigo Caixão tem toda a razão. Nós estamos sendo insensíveis com ele. Não deve ser agradável ser chamado de Caixão a toda hora. Acho que todos nós estamos sensibilizados com o pedido dele. Da minha parte, a partir de hoje, ele passa a ser (batendo-lhe nas costas) o meu amigo ATAÚDE!”.
Foi uma explosão de gargalhadas no bar do Tinga... Quando serenou o ambiente, o recém nomeado Ataúde disse preferir continuar sendo chamado mesmo de Caixão.

O CURTO-CIRCUITO

Em 1975, o depósito vizinho ao Bar do Tinga foi vítima de um sinistro, em uma das noites do mês de junho: um INCÊNDIO.
Foi na madrugada.
O Marcelo conta que tinha se submetido a uma pequena cirurgia e estava convalescendo, num dos apartamentos da Casa de Saúde, quando foi acordado com uns estouros muito fortes. Foi para a janela do apartamento e viu, na direção do Bar do Tinga, uma grande labareda, subindo acima do teto dos demais prédios da rua.
Onde será o incêndio? – pensou.
Imaginou que pudesse ser no Bar do Tinga ou na Funerária do Caixão. Enfim, não lembrou do depósito da loja de eletrodomésticos. No outro dia ficou sabendo que tinha sido o depósito que pegara fogo, repleto de mercadorias. Prejuízo enorme, se não estivesse coberta por seguro.
As conversas dos dias seguintes, quando o Bar do Tinga foi liberado para a freqüência, foi exatamente esta: “Teria seguro? O que queimou? E... qual foi a causa?”As respostas foram logo aparecendo. O comerciante, alguns meses antes, tinha feito um bom seguro de tudo! Sorte dele.
Sorte?! Indagavam, maliciosamente, alguns. E a causa do Incêndio? Logo veio a explicação oficial dos proprietários: “Foi causado por um curto-circuito”.
Comentou o Zé Aragão, dias depois:
- “Curto-circuito, nada de mais... Isso já aconteceu em outros lugares. É muito comum... Mas com a energia do prédio cortada??!!.... Só no Crato...”
Tinham esquecido de mandar ligar a energia...

A MERCADORIA

Por conta do incêndio acima descrito, na hora em que tudo pegava fogo, Caixão foi avisado do sinistro Tratou de esvaziar sua “loja”, depositando toda a sua “mercadoria” na calçada do outro lado da rua. Lá permaneceu até o fim do outro dia, sendo objeto de outro comentário do Zé Aragão, de dentro do Bar do Tinga:
- “Olha ali, olha só, mercadoria que ninguém quer, nem ladrão!”.

IMPORTADO

Próximo ao Cine Moderno existia um concorrente do Caixão. Sua propaganda era, no mínimo, insólita. Descabida mesmo. Era a seguinte:
URNAS DE PRIMEIRA, IMPORTADAS DO SUL DO PAÍS!

O DOMINÓ

Os freqüentadores do Bar do Tinga, além de tomarem uma boa cerveja gelada, matavam o tempo jogando dominó e apostando as cervejas que bebiam. Quando um dos jogadores começava a perder seguidamente, olhava para os lados para saber quem era o “pé”.
A figura do “pé” era uma abreviação de “pé-frio”, o que dava azar.
Cego Demar era tido como um “pé”. Tinha o nome de Cego Demar em razão da sua acentuada miopia e dos óculos “fundo de garrafa” que usava. Ninguém queria vê-lo por perto, a não ser quando também jogava. Era torcedor fanático do Flamengo e, na Glorinha, disputava a preferência da Geni com o Gervásio, irmão do Luís.
Em um desses dias, o Dr. Raimundo estava empilhando garrafas de cerveja embaixo da sua cadeira. Perdia todas as mãos no dominó, para uma pessoa muito conhecida na região, que morava em Barbalha, chamada Aécio. Não tinha jeito, cada mão e, de novo, perdia. E o Dr. Raimundo procurando saber quem era o “pé”. Olhou pro lado e viu o Cego Demar.
Cego Demar se aproximou do Dr Raimundo e falou baixinho ao seu ouvido:
- “Não, não, Doutor, não tenho nada com isso. Mexa as pedras, só o Aécio é que está mexendo!”.
Dr. Raimundo, captada a mensagem, a partir dai passou a misturar as pedras do dominó. A sorte virou, “passou” todas as cervejas que havia perdido pro Aécio e ainda empurrou mais algumas.
O Aécio, quando ia misturar as pedras, puxava com as mãos as de números mais baixos, deixava de fora os carrilhões, fixava-as com a mão e deixava as de maior valor para o Dr. Raimundo. Terminada a rodada, desmascarado o espertalhão, o Cego Demar falou para o Dr. Raimundo:
- “Cego, é só apelido...”

O POTE

O Dr. Raimundo Bezerra era um entusiasta em todas as atividades que se envolvia, seja na medicina, na política, na plantação de café em cima da Serra! Estive com ele, certa vez, visitando uma cerâmica que tinha numa mina de taguá (argila), localizada próxima da Igreja de São Francisco. O local chamava-se Escondidinho. Na região onde “a alma vista pelo Aloísio, segundo o Júlio Saraiva, foi defecar”. Explicava, com muito entusiasmo, sobre a excelência da matéria prima e do produto acabado.
O meu irmão Marcelo, nas férias da Faculdade de Medicina ia para o Crato e fazia seus costumeiros estágios com o Dr. Raimundo, na sua Casa de Saúde. Sempre o acompanhava, nas suas visitas à Cerâmica. Lá conheceu um padre jovem, de aparência bonita, amigo dele. Por entender de geologia, estava sempre explicando alguma coisa sobre o material da mina, argila conhecida como taguá.
Nas férias seguintes, o Marcelo voltou a encontrar-se com o Padre. O Dr.Raimundo falou sobre uma novidade:
- “Baixinho, ele não é mais padre, não. Renunciou aos votos. Agora ele está é comendo muita gente!”
Pouco depois o Dr. Raimundo e o Marcelo foram à Cerâmica. Lá existia o galpão onde eram preparadas as telhas. A matéria prima era recolhida na parte mais funda de uma baixa que existia no terreno. Neste local os operários colhiam o barro e transportavam para o galpão. Debaixo de uma árvore, tinha um pote com água bem fria, para matar a sede do pessoal. O Dr. Raimundo percebeu que estavam levando o pote lá para cima, para o galpão:
- “Mestre, por que é que estão tirando o pote daí? Vai ficar longe para o pessoal da mina!
- Ah doutor, o padre tá vindo à noite namorar aqui.
- O Padre? Como é que você sabe?
- Olha as marcas do fusca dele!
- Mas homem, tem muita gente que tem fusca no Crato!
- Não, Doutor, é dele mesmo. Eu sei.
- Mas o que é que tem a ver o namoro do padre com a necessidade de tirar o pote daí!
- Ah, Doutor, quando eles terminam de namorar vão lavar as coisas no nosso pote...

O CABELO

O Dr. Raimundo Bezerra, quando criança, presenciou muitas vezes a mãe dele, Dona Zezinha, tendo o cuidado de reservar para o médico da família a bacia, a toalha limpa e o sabonete novo. Anos depois, médico, foi atender um paciente em casa. Quando voltou, falou para o meu irmão Marcelo:
- “Baixinho, médico hoje em dia está desprestigiado demais! O sabonete que me deram tinha até pentelho...”

A PERÍCIA

No período em que o Marcelo trabalhou com o Dr. Raimundo, no Crato, este sempre lhe dava algumas tarefas para, aos poucos, ir se entrosando nas atividades e ser conhecido na cidade.
Estavam um dia no consultório fazendo Perícia Médica. Era dia de uma Junta Médica, isto é, quando são avaliados pedidos de benefícios que foram indeferidos em uma primeira instância e passavam por uma segunda avaliação, de dois ou três médicos. Chega a vez de uma mocinha jovem, lá pelos seus 16 ou 17 anos, de nome Maria Imaculada, que entra no consultório acompanhada pela mãe.
Dr. Raimundo pergunta para a paciente qual o problema e essa lhe responde, apontando para a barriga:
- “É esse caroço aqui que não para de crescer”.
O Dr. Raimundo, já imaginando do que se tratava – provável gravidez – perguntou:
- “Desde quando começou a crescer esse caroço?”.
- “Foi depois de umas mangas que eu comi”.
Até aí a mãe ali, firme, sem falar nada.
O Dr. Raimundo pede para a jovem deitar na mesa de exame para fazer a palpação do abdômen, o que realmente acaba por confirmar a sua suspeita inicial. Pede para o Marcelo também examinar, sem comentar nada. Só então fala para a mãe da jovem:
- “Cumade, esse caroço vai nascer daqui a uns três meses!”.
Nisso, a mãe da jovem se levanta da cadeira, se perfila diante do Dr. Raimundo e do Marcelo e, brandindo o braço direito com o punho cerrado diz:
- “Doutor a minha filha é MOÇA!!!”.
O Dr. Raimundo, com toda a calma, diz para ela se acalmar que vai chamar o especialista em Obstetrícia, o Dr. Tarciso Pinheiro, que tinha o consultório ao lado e que fazia parte da junta. Afinal, ele poderia estar enganado...
Dr. Tarciso vem até o consultório, examina e confirma o diagnóstico anterior:
- “Útero grávido de sete para oito meses”.
A mãe não se conforma:
- “Doutor a minha filha é MOOOÇA!”.
O Dr. Raimundo vira-se para o Dr. Tarciso e comenta:
- “Baixinho (era assim que eles se chamavam um ao outro), será que é outra obra do Espírito Santo? Afinal, a menina se chama Maria Imaculada!”

TEM MOÇA

Um personagem do Crato, bastante conhecido, ficou conhecido por ser um especialista em falências. Ele mesmo se vangloriava de ganhar dinheiro com esses expedientes. Outra característica sua era o fato de fazer negócios, acertar e desistir na última hora. Tinha uma voz miúda e pronunciava o ‘s’ e o ‘c’ com som de ‘s’como ‘x’. Um dia resolveu vender um sítio que possuía no Lameiro. Ofereceu-o a um dos ricos do Crato, o Cândido Figueiredo. Discutiram o preço e chegaram a um acordo. Mas exigiu o pagamento em dinheiro. Marcaram o encontro, no escritório do Cândido, para o fechamento do negócio. Chegando lá, ele já apareceu com outra estória:
- “Xeu Cândido, não vai dar maix xerto o negóxio não”
- “Mas por que? Ficou tudo certo. Já estou até com o dinheiro aqui”.

Cândido Figueiredo não gostou da indecisão do vendedor do sítio.

- “O xinhor xabe. Agente tem filhox. Eu tive que ouvir a opinião delex e elex foram contra. Elex têm muito amor pelo Xítio. Enfim, a gente tem que ouvir ox filhox, não é, Xeu Cândido?”
E o Cândido, já aborrecido por ter perdido tempo, disse:
- “Pois vá você e seus filhos tomar no cu”.
- “Max Xeu Cândido tem uma moxa no meio!”
- “Tá bom, tá bom, pois tire ela”.

RODILHA DE NOVO

Cândido Figueiredo gostava de participar das conversas da Praça Siqueira Campos. É dele a seguinte estória:
Certa vez, um conhecido “pé de mesa” do Crato resolveu transar com um veado. Quando a bicha viu o tamanho, foi logo dizendo:
- Ah, meu bem, só com rodilha!
O Cândido esclareceu que o veado não conhecia a técnica da rodilha utilizada pela puta que “trabalhava” na Glorinha. Era diferente. E tratou de esclarecer:
- O "gay" pegou o pano e fez uma rodilha bem feita. Encostou bem a cabeceira da cama na parede. Firmou, com as duas mãos a rodilha na parede, um pouco acima da cabeceira da cama. Aí, veio com a cabeça e pressionou-a contra a parede. Ficou naquela posição. Quando a rodilha estava bem firme, disse:
- Venha, meu filho, veeeeeeeeeeeeenha!

A CERVEJA!

Durante a IIª Guerra Mundial existia no Brasil uma congregação de padres alemães que tinha sido escorraçada de diversas cidades, por suspeitas de serem espiões nazistas. O Crato e a Diocese os acolheram. Meu pai, inclusive, foi um dos que batalhou pela sua permanência na cidade. A Igreja de São Vicente ficou sob a administração deles. Como prova de gratidão para com a cidade, realizaram diversos trabalhos, não só de evangelização, mas também, sociais. Chegaram a fundar um seminário, conhecido como ‘Seminário dos Alemães’, que tinha uma grande inovação: os seminaristas não usavam batina. Atualmente, no prédio onde funcionou o Seminário, funciona um hospital. Concluíram a Igreja de São Vicente, construíram a Igreja de São Miguel, inclusive uma creche/escola. Interferiram para obter recursos da Alemanha para ampliação do Hospital São Francisco. O pároco da Igreja de São Vicente era sempre desta congregação. Um dos mais populares era o Padre Frederico Nierhoff. Lembro-me bem dele! Alto, louro, uma voz possante. Fumava cigarros Asa ou Astória, os mais fortes e peduros. Falava bem o português, mas tinha o sotaque bem característico do alemão. O Mourãozinho do meu pai era sempre “môrrãosium!”. Era um padre bem avançado para a época, antes do Papa João XXIII e do Concílio Vaticano II. Suas homilias eram uma atração. Lembro-me bem de sua maneira bem simples, popular, de explicar o Evangelho:
- “São José não era besta não! Quando viu a barriga de Maria crescer, tratou de arrumar as trouxinhas dele, botar nas costas e cair fora! (fazia o gesto de botar uma trouxa nas costas e caminhar de ponta de pé). Foi quando Deus fez o anjo aparecer em sonho e explicar tudo!”.
O Padre Frederico não suportava injustiça. Não teve dúvidas em esconder na sua casa e ajudar na fuga para a Europa, um filho da terra, um Arraes, perseguido pela Ditadura Militar. Fez o mesmo que muitos padres fizeram, principalmente na Alemanha, escondendo judeus do horror nazista.

Seminário dos Alemães. Hoje funciona um Hospital.
Outra vista do Seminário dos Alemães, pelo lado interno.

Por ser querido de todos, era sempre convidado para as festas. Certa ocasião foi a uma festa na zona rural. Chegando lá, na mesa principal da festa tinha, no centro, uma poncheira cheia de cerveja, com uma concha dentro. Para servir a cerveja como se fosse ponche. Para um alemão, aquilo era o cúmulo do absurdo! Jogou a concha fora, pegou a poncheira com as duas mãos e bebeu toda de uma vez só! Quando terminou, disse, antes daquela gargalhada característica:
- “Cadê a cerveja, menino? Isto é lá cerveja!”

QUEBRA CADEIRA

O Padre Frederico, além de alto, mais de 1,90 m, era forte. Pesava mais de cem quilos. Em uma festa de aniversário, deram para ele sentar uma cadeira dessas de conjunto de mesa de jantar. Eram ditas ‘modernas’!. Suas pernas eram finas com a seção reduzindo de cima para baixo. Ele olhou para a cadeira, segurou-a numa mão só e girou-a, dizendo:
- “Esta cadeira ‘non’ agüentar”.

Interior da Igreja de São Vicente. A nave central era reservada às mulheres. Os homens ficavam nas laterais.

E o dono da casa:
- “Não padre, pode sentar, agüenta sim!”
- “Olhe lá! Cadeira vai quebrar!”
- “Não Padre, não tenha receio”.
Pe. Frederico não teve dúvidas. Sentou-se com todo gosto! A cadeira se despedaçou toda! Mais que de repente, levantou-se e já foi agarrando a segunda cadeira para sentar-se e ir quebrando uma a uma! Foi quando o dono da festa pediu-lhe pelo amor de Deus para não sentar e arranjou-lhe uma cadeira de ferro. Acomodou-se, em meio à famosa gargalhada.

O CABARÉ

Por algum tempo, o Padre Frederico andava de motocicleta. Usava, muito a contragosto, uma batina creme, menos quente que a preta. Na Alemanha não usava batina. Para andar de moto, arregaçava-a quase até a cintura, metia um chapéu de palha na cabeça e saía pela cidade, para espanto de todos.
Ia sempre lá em casa. Ao chegar, ia logo dizendo:
- “Ô de casa”
E, em passadas largas, entrava casa adentro. Pedia sempre um ‘cafessio’. Mamãe mandava logo coar um cafezinho fresco. Certa vez a empregada chegou na sala e disse:
Padre Frederico, na época da sua ordenação, na Alemanha.

- “Dona Giseuda não tem café não!”
Mamãe toda constrangida, e o padre às gargalhadas! O vexame foi logo solucionado. Mamãe mandou-me ir correndo à bodega do Sr. Luis pegar um pacote de café Itaytera e pedir para anotar na caderneta (o que ele fazia com aquela letra horrível). Pouco depois o aroma do café rescendia por toda a casa e o Padre pode saboreá-lo de um gole só. A xícara perdia-se na sua mão!
O Padre e meu pai eram muito amigos. Papai era quem cuidava da contabilidade da Igreja.
Para o padre ir de motocicleta até a sua Igreja, saindo da nossa casa, na Nelson de Alencar, tinha que dobrar à esquerda na segunda rua. Mas se não dobrasse e continuasse, entraria no quarteirão da prostituição.
Por isso que, quando montava na sua motocicleta e se despedia de papai, em frente à nossa casa, dizia, seguido da costumeira gargalhada:
- “Eita Môrrãozium amanhã vão dizer que o Padre foi ‘pro’ cabaré!!!!”.

TEM HOMEM

Após a missa das nove horas, aos domingos, papai acompanhava o Padre à casa paroquial a fim de organizar a contabilidade da Igreja. Geralmente iam também umas beatas e ficavam fazendo hora na casa do padre. Ele se impacientava com aquelas beatas, que não tinham nada o que fazer e as enxotava de casa, batendo as mãos e dizendo:
- “Vão embora, vão embora. Vão para as suas casas. Aqui debaixo desta batina tem um homem!”
E
as coitadas saiam, apavoradas!

TETO SOLAR

Numa determinada época o padre Frederico recebeu da Alemanha um jipe. Era um DKW. Mas, quando ele entrou para dirigi-lo, não cabia debaixo da capota. Não pensou duas vezes! Fez um rasgo, o suficiente para passar sua cabeça, e dirigia assim, através de um teto solar improvisado. Era cômico ver aquele jipe andando com aquela cabeça, saindo para fora da capota.

O FLUMINENSE

O Luís tinha um amigo, motivo de muitas e boas estórias. Inteligente e bastante versátil, bom locutor, tocador de violão e cantor. Era radialista na Rádio Iracema de Fortaleza e foi convidado para trabalhar na Rádio Educadora do Crato, onde acabou fixando residência. Casou-se e, nem por isso deixou de ter os seus casos, que a mulher estava sempre descobrindo. Mas não se emendava. O Crato, nessa época, tinha um bom futebol de salão e sempre promovia jogos com times da capital e até de outros estados. Um dia veio o Fluminense, do Rio de Janeiro, para disputar uma partida na quadra, onde hoje é a Praça Alexandre Arraes. Viu, nisso uma ótima oportunidade para uma desculpa para uma fugidinha. Dizer que ia para o jogo e, na verdade, ir para a farra. O Luís foi logo avisando:
- “Olhe, não me meta nas suas histórias. Não diga que estava comigo. Se a sua esposa me perguntar eu vou dizer a verdade: você não estava comigo”.
Houve o jogo e ele não apareceu na quadra. Foi para a farra e só chegou em casa na manhã seguinte. No entanto, teve o cuidado de saber o resultado da partida. A primeira coisa que a esposa perguntou foi o resultado do jogo e ele respondeu corretamente. E ela:
- “Você ficou até esta hora nesse jogo? “
- “Não, minha filha. O jogo terminou lá para meia noite e de lá fomos para o Hotel Pálace, onde a delegação estava hospedada. Ficamos na boate do Hotel conversando até agora. Olha, foi uma das noitadas mais agradáveis de toda a minha vida. Pude rever muitos radialistas de Fortaleza. São velhos amigos e relembramos muitas histórias engraçadas. E também pude conversar com alguns jogadores do Fluminense, conhecidos de outras jornadas. Falamos sobre o time de futebol de campo. Como você sabe, meu clube do coração. Tomara que convidem outros times de fora, para eu poder ter outras oportunidades como esta. Foi muito bom”.
- “Mas você é um cara de pau! Tem uma cara muito lisa mesmo. O Fluminense não se hospedou em Pálace coisa nenhuma. Hospedou-se foi no Crato Hotel!
- “O que?!?! No Crato Hotel?!?!
- “Sim, senhor. Eu me informei direitinho, você está é com mentira, seu cabra safado. Você estava era na farra!!!
- “Mas minha filha, você acha que tenho culpa que este time safado se hospede em hotel de segunda categoria. Por isso que eu não torço mais por essas pernas de pau do Fluminense...”

Pálace Hotel

Crato Hotel em foto do final da década de 30 para começo da de 40. Um hotel de tantas tradições mudou, recentemente, de nome, sem necessidade alguma.

A INJUSTIÇA

Um outro amigo do Luís tem estórias também muito engraçadas. Casado, mas sempre tendo seus casos amorosos. Resolveu fazer um concurso para o Banco do Brasil. Naquela época, o emprego no Banco era a certeza de um bom trabalho e a segurança de uma aposentadoria tranqüila. Costumava passar pela Imobiliária do Luís, com as apostilas debaixo do braço e dizer:
- “Vou pra casa, estudar!!”.
Dias depois, o Luís perguntou:
- “E aí, como é que foi o concurso?
- “Veja só, Luís, como esse mundo é injusto. Aqueles que não estudaram nada, não passaram e agora vão ficar numa boa, vagabundeando no Crato. E eu, que estudei feito um condenado, passei no concurso e agora vou ter que trabalhar.”

TROCA DE CARRO

Existia um funcionário de um banco que cumpria rigorosamente o horário de trabalho. Nem mais, nem menos um minuto. Hora extra, para ele, nem pensar. Não tinha um mínimo de interesse em progredir funcionalmente. Era rico e não precisava trabalhar. Gabava-se de ter uma amante que sustentava a ele e a mulher. Deixava os colegas indignados com esses comentários. Não entendiam que ele estava somente gozando com a cara deles. Mas levava os colegas à loucura quando, indagado com quantos quilômetros trocava de carro, respondia:
- “Quando o cinzeiro do carro enche”.

O AUDITOR

A Agência do Banco do Brasil recebia, periodicamente, funcionários da Matriz para inspeção de rotina. Em uma dessas visitas, o Gerente fez carga ao Auditor do comportamento desinteressado de determinado funcionário. E ele foi conversar com o rapaz. Indagou sobre as “acusações” e ele confirmou tudo. E o Auditor perguntou:
- “Mas você não tem interesse de ser um Gerente?”
- “Deus me livre! Eu quero é fazer a minha obrigação aqui, chegar o tempo de aposentar e a-po-sen-tar”.
Começaram então a falar em amenidades. O Auditor indagou:
- “E aqui no Crato, tem algum lugar onde se possa dar uma voltinha à noite?”
- “Na Glorinha”.
Lá foi ele servir de cicerone ao Auditor, na noite cratense. Depois de algumas doses de Whisky, este confessou:
- “Sabe, você está é certo! O Banco está cheio de neuróticos. Aquilo é uma casa de fazer doido!”

O INTERESSE

A esposa de um amigo do Luís sabia muito bem a peça que tinha em casa. Certa ocasião, quando ele começou a ressaltar a sua beleza, ela ficou desconfiada:
- “O que foi que você aprontou agora? Pensa que eu não sei das suas patifarias? Sei muito bem de todos os seus casos! Deve estar é bêbado!”
- “Não, minha filha, eu sempre achei você bonita. Agora eu digo uma coisa. Nos dias de hoje, eu não me casaria mais com você. Só casei com você porque eu queria lhe comer”.

SATISFEITO

Poucas pessoas tinham um apelido tão adequado como o do genro do Júlio Saraiva. Era o Satisfeito. Poucos sabem que seu verdadeiro nome é Edílson Rocha. Não sei se ele já era fotógrafo ou se tornou após casar com a filha do principal fotógrafo da cidade. Tinha uma vida mansa, pois não se submetia a horários de trabalho, preferindo a companhia de amigos. Portanto, vivia mais do que “satisfeito”. A esposa, exímia pintora de retratos. Praticava a técnica da “foto pintura”. Eram poucas as casas, no Crato, que não tinham um pôster colorido pela Telma Saraiva. Lembro-me da minha mãe entregando o vestido que tinha “tirado o retrato”, para ela pintar com as cores verdadeiras. Recentemente, ela foi descoberta pelo fotógrafo alemão Titus Riedl e ganhou exposição no Centro Cultural Dragão do Mar, em Fortaleza, e na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, em 2006. Teve destaque em reportagens em jornais de Fortaleza e na Revista Gol. Foi um justo reconhecimento a essa técnica de colorir fotos, quando nem se imaginava um dia ser possível obter fotos em cores.
Numa bela manhã, estava o Satisfeito sentado num banco da Praça Siqueira Campos. Como sempre, de bermuda, camiseta de mangas cavadas e chinelos. Passou um amigo dele, de carro. Estacionou e gritou de dentro do carro:
- Satisfeito, quer ir para Salvador comigo?
E ele, sem pestanejar:
- Vou!
Entrou no carro, do jeito que estava, e se mandou para uma viagem de mais de 800 km. E nem foi avisar em casa, distante da Praça apenas uma quadra.
Propaganda do Foto Saraiva na parede lateral da casa.

Telma Saraiva, em foto recente, em seu atelier de trabalho, colorindo um pôster de uma jovem cratense.

Acima, a foto da minha mãe, em 1950, antes e depois de colorir.

BRIGA DE GALO

O Luís sempre foi um apreciador de briga de galo. Num terreno ao lado da casa dele tinha uma rinha. Assisti a muitas brigas nessa rinha. O acesso era em frente à minha casa, na Rua Nelson de Alencar. Era tudo muito bem organizado, com juizes e apostas centralizadas numa mesa. O que mais animava os galistas era a aposta. Tanto podia ser feita oficialmente na mesa, como entre os vizinhos, na pequena arquibancada em volta da rinha. Quando o galista conhecia os galos procurava apostar naquele que tinha maior fama. Um galista de outra cidade, que não conhecia os galos, tinha que observá-los quando eram postos para um rápido entrevero, justamente para descobrirem as qualidades de cada ave.
A cidade passou a ter um novo Juiz de Direito. Nesta mesma época o Presidente Jânio Quadros, através de um Decreto, proibiu brigas de galos e canários. Mas o Juiz, que era um viciado no esporte, não deu a mínima para o tal Decreto. E foi assistir às brigas. Não conhecia ninguém. Quando sentou na mini arquibancada, já ia iniciar um combate entre um galo pintado e outro vermelho. Já tinha passado o tal entrevero rápido e, portanto, estava sem saber em quem apostar. Para o verdadeiro galista a briga só tem interesse se ele aposta. Então, perguntou para o seu vizinho do lado direito:
- “Qual é o que você faz mais fé?”
- “O que?”
E o Juiz, sendo mais claro:
- “Qual é o bom?”
- “O bom é o pintado!”.
O juiz foi à mesa e apostou no pintado. Mal começou a briga, o pintado ‘chocou’. Ou seja, o galo aceita a derrota, baixa a cabeça e fica dando voltas na rinha, encostado da proteção e o ganhador a persegui-lo. É o nocaute. A briga é encerrada. O Juiz virou-se para o vizinho e reclamou:
- “Mas rapaz, você disse que o bom era o pintado!”.
- “Mas ele é bom mesmo! Ele não gosta de brigar não! Agora se você tem me ‘preguntado’ qual era o ‘pelvelso’ aí eu tinha dito que o ‘vremeio’ era o ‘pelvelso’”.

ÀS ORDENS

Chegou ao Crato um novo promotor que gostava muito de passarinhos. Ele pronunciava o ‘s’, ou o ‘c’ com som de ‘s’, como ‘x’. Um dia, visitando um grande criador de pássaros, admirou-se com um cabeça vermelha. E o proprietário:
- “Às ordens, Doutor”.
- “Eu axeito!”.
Pegou a gaiola e levou, para espanto e decepção do criador.

CHICO DO CRATO HOTEL

O primeiro veado de que tive notícia foi o “Chico do Crato Hotel”. Era funcionário humilde do Hotel. Era o que chamávamos de “amulherado” mesmo. Tinha todos os predicados: desmunhecava o que podia, tinha o famoso pescoço de mola, a fala afeminada, o caminhar miudinho e todo rebolado. Quando a meninada fazia “fiu fiu”, aí era que ele se rebolava mesmo. Era um veado autêntico. Um dia notou-se a falta do Chico. Logo se descobriu que tinha sido operado com urgência, de uma crise de apendicite. Quando recebeu alta, vimos o Chico andando com dificuldade. A meninada cercou-o e perguntou:
- “E aí, Chico, o que foi que houve?”
- “Ah, meu bem, nem te conto! Eu fui pra maternidade!!!”
- “O que, Chico, para a Maternidade? Fazer o que?”
E ele, todo alvoroçado, batendo uma mão na outra, fazendo trejeitos na boca e falando bem rápido:
- “Ora, o que se faz na Maternidade? Fui fazer uma cesariana para ter meu filho!!!”

IVONETE

Outro baitola famoso do Crato Hotel, segundo o Luís, era o Ivonete. Não me recordo deste, como o Luís não se recorda do Chico. Não sei se os dois são a mesma pessoa. Pela descrição do Luís ele era mais velho do que o Chico. Usava sempre um pano enrolado na cabeça, detalhe que eu não lembro no Chico. Sempre fazia serviços domésticos nas casas dos parentes do dono do Crato Hotel, Sr. Raimundo Ribeiro. Numa dessas ocasiões, houve um disparo acidental de uma arma de fogo, atingindo o Ivonete. A bala alojou-se no seu abdômen. Levaram-no, às pressas para a Casa de Saúde do Dr. Gesteira que, eficientemente operou e salvou o Ivonete. Quando tornou da anestesia, foi logo perguntando para a enfermeira:
- “E o meu filho é ‘homi’ ou ‘muié’.
- “Deixe de frescura seu fresco velho nojento”.
Nisso entra o Dr. Gesteira e o Ivonete o cumprimenta, todo afrescalhado:
- “Oi meu lindo. Perguntei para esta limpadora de bunda se o meu filho era ‘muié’ ou ‘homi’ e ela veio com insultos. Afinal, não é meu lindo, a mãe tem o direito de saber o sexo do filho. Não estava perguntando nada demais! Não estamos nem em regime comunista!”
Dr. Gesteira, fingindo seriedade, disse:
- “Sorte sua Ivonete, pois se você estivesse num regime comunista eles lhe metiam a foice e o martelo de rabo adentro”.
- “Vôte, meu lindo, isto é ‘estrupo’”.

RESGUARDO

Ao chegar o dia do Ivonete receber alta, o Dr. Gesteira foi fazer uma avaliação e prescrever-lhe os remédios. Quando já ia saindo, parou e deu mais uma orientação:
- “Olha, Ivonete, estou lhe dando alta, mas não é para você sair por aí fazendo suas frescuras agora não, está ouvindo?”.
- “Eu sei, meu lindo, a gente tem que guardar o resguardo!”

O IMPEDIMENTO

O Luís e eu temos um primo chamado Veridiano, que morou muitos anos no Crato, quando solteiro, na casa do meu avô. Hoje reside em Teresina, no Piauí.
Veridiano sempre foi uma pessoa simples, muito leal, amigo de seus amigos, turrão, prestativo, trabalhador e arraigado a costumes antigos. Era freqüentador do jogo de baralho na casa do Luís. Não era atilado para algumas coisas.
Torcedor do Vasco, embora não entendesse muito de futebol e de suas malícias.
Certa vez o América Futebol Clube de Fortaleza, num ano em que conseguiu formar um grande time, foi Campeão Cearense, fazendo uma excursão ao Crato. Foi jogar contra o Sport.
Estavam lá o Luís, o Marcelo e o Veridiano assistindo ao jogo, na linha lateral do campo – não tinha gramado, muito menos alambrado. O ataque do Sport não conseguia vantagem sobre a defesa do América, que vinha usando o expediente da tática do impedimento. Toda vez que um jogador era lançado, a defesa avançava e o juiz assinalava o impedimento.
Aquilo foi se repetindo, uma, duas, três, uma infinidade de vezes e o Veridiano foi perdendo a paciência, até que não se agüentou mais e berrou para o juiz:
- “Ô seu fela da puta burro, você não tá vendo que eles tão fazendo de propósito? Não tem que marcar impedimento porra nenhuma!”
Foi uma risada geral, na borda do campo. Até o lateral esquerdo do América, o Luiz Villanova, ria que se contorcia, com a observação do Veridiano... de propósito! . Mais tarde esse jogador do América veio a ser juiz de futebol. Não sei se seguiu a orientação do Veridiano.

O JOGADOR

No período em que o Veridiano morou na casa do meu avô, foi influenciado pelo Gervásio, irmão do Luís, e tornou-se torcedor do Vasco. O Gervásio costumava ouvir os jogos do Vasco transmitidos pela Rádio Nacional. Num determinado dia, estavam os dois ouvindo uma transmissão. O locutor, não lembro qual, costumava usar o termo pelota no lugar de bola. Na transmissão ouvia-se, com bastante freqüência, pelota aqui, pelota ali, pelota acolá. Impressionado, o Veridiano fez o seguinte comentário, provocando uma gargalhada do Gervásio:
- "Mas esse 'pelota' é bom demais!!! Joga que é um danado..."

Veridiano em foto colhida na Praça da Sé, na época do Centenário do Crato.
Nessa mesma época ele costumava participar do programa de Auditório, na Rádio Araripe, comandado pelo Wilson Machado.
Ele sempre competia, tocando violão, com "arrastados" de sua autoria.

AGULHA NO PALHEIRO

Quando o Luís morou no Rio de Janeiro e, posteriormente, em Niterói, a sua casa era uma extensão do Crato. Com a generosidade e hospitalidade que são suas marcas registradas, Luís e Margarida recebiam a todo cratense que fosse ao Rio de Janeiro. Sua casa funcionava como uma autêntica embaixada. Era ponto obrigatório de visita de todo cratense que fosse ao Rio. O Dr. José Ribeiro Dantas, promotor do Crato, e os seus filhos chegaram a se hospedar na casa do Luís, na época em que morava em Niterói. Foi levar os filhos, Alcebíades e Lincoln, para estudarem no Rio. Seu primo, Deoclécio Ribeiro Dantas, era Reitor da Universidade Federal Fluminense, em Niterói, que era separado da cidade do Rio, então capital da República. Também era médico, cirurgião famoso, e tinha consultório no Rio. Dr. José Ribeiro resolveu fazer uma visita ao primo. Preferiu ir ao consultório, pois na Universidade seria impossível falar com ele. Pediu orientação ao Luís de como chegar à Rua Alcino Guanabara 96, no Rio. O Luís explicou que era muito fácil. Era só pegar a barca Niterói/Rio e desembarcar na Praça XV. De lá, pegaria a rua Sete de Setembro ou Rua da Assembléia, que vai sair na Avenida Rio Branco. Ao atravessar a rua vai estar nos fundos do Teatro Municipal. Quando chegar na frente do Teatro, olhando para direita tem o Bar Amarelinho. Fácil identificar, porque tudo é amarelo, inclusive as mesas e cadeiras. Chegando ao Bar Amarelinho, se sentar numa mesa para tomar um chop, perceberá que a Rua Alcino Guanabara começa no Bar. Então, é só procurar o número. E assim ele fez. Tomou o chop tranqüilamente e subiu a rua à procura do número. Acontece que era tempo de campanha política, as paredes estavam cheias de cartazes, principalmente do Carlos Lacerda. E, por coincidência, tinha sempre um cartaz encobrindo o número. E como o Dr. José Ribeiro era muito míope, dificultava mais ainda a sua procura. Parou num prédio onde tinha um engraxate e resolveu perguntar onde era o número 96. O engraxate disse:
- “Pela voz e pela cabeça só pode ser cearense. O senhor está no número 96. Com quem o senhor quer falar?”
- “Com o Dr. Deoclécio Ribeiro Dantas”.
- “Ele está aí”.
- “Como é que você sabe?”.
E o engraxate, mostrando o par de sapatos que estava engraxando:
- “Por que esses sapatos aqui são dele”.

Luís, na época em que morou no Rio de Janeiro. A foto,
no Corcovado, com a Margarida, Cristina e Roseana.


TELEGRAMA SONHADO

Pouco tempo depois desse acontecimento o Luís retornou para o Crato. Os filhos do Dr. José Ribeiro sentiram muito, pois tinham a casa do Luís como uma continuidade da sua própria casa. Qualquer necessidade mais urgente, inclusive de dinheiro, o Luís adiantava, no que era prontamente ressarcido pelo Dr. José Ribeiro. Todos os fins de semana eles podiam desfrutar da excelente hospitalidade do Luís e deliciarem-se com a excelente comida caseira da Margarida, sua esposa.
Margarida, a grande companheira do Luís.
Voltando para o Crato, o Luís abriu a Imobiliária Santa Marta, vizinha da antiga Sorveteria Glória, de tantas estórias. A Imobiliária passou a ser o ponto de encontro de muita gente. O Dr. José Ribeiro era sempre o primeiro a chegar e chamar o Luís para tomar um café no Sr. Orestes.
Uma noite, o Luís sonhou recebendo um telegrama dos filhos do Dr. José Ribeiro. Dizia o seguinte: “Favor solicitar meu pai enviar duzentos cruzeiros para pagar compromissos inadiáveis”. O Luís acordou e voltou a dormir. E tornou a sonhar com o mesmo telegrama.
Pela manhã, como de costume, o primeiro a chegar foi o Dr. José Ribeiro. Da porta, foi logo convidando o Luís para o café no Sr. Orestes. E o Luís:
- “Não, venha cá primeiro”.
E contou o sonho. Na época não existia possibilidade de ligação telefônica.
Às duas horas da tarde, entrou o Dr. José Ribeiro na Imobiliária, pálido e abanando um telegrama:
- “Veja Luís”.
E mostrou o texto do telegrama: “Favor enviar duzentos cruzeiros para pagar compromissos inadiáveis”. E o Dr. José Ribeiro:
- “Esse telegrama foi de ontem. E você não acredita em espírito!!!”.
Tratou de espalhar este “fenômeno” pelo Crato todo. Dias depois, o Luís encontrou o Dr. José Ribeiro e foi logo dizendo:
- “Zé, sonhei outra vez com os meninos. Eles estão pedindo agora quinhentos mil cruzeiros”.
- “Homem, deixe de brincadeira”.

ÁGUA HIDROLITOL

O proprietário de um dos bares mais famosos do Crato era extremamente conceituado na cidade. Comerciante escrupuloso com suas obrigações. Pagava rigorosamente seus impostos. Identicamente, com relação aos seus funcionários. Pagava-os bem e com todos os direitos. Também era tido e havido como um homem muito religioso e até Congregado Mariano. Mas, como não era de ferro, tinha uma predileção especial por empregadas domésticas. Mas este fato só ficou conhecido em toda a cidade, pela indiscrição do português da padaria.
O primeiro português no Crato, dono de padaria, foi o Sr. Simões Loiro. Em seguida veio o seu sobrinho: Aníbal. A este sucedeu o Germano e, por fim, o Acácio. Eram todos da mesma família.
Sr. Aníbal, aliás, prestou um grande favor a papai, possibilitando que o Marcelo, com uns seis meses de idade, fosse salvo de uma forte gripe. O médico, Dr. Jeser, receitou um medicamento novo: penicilina. E o frasco tinha que ser guardado em geladeira. Sr. Anibal era uma das poucas pessoas no Crato que dispunha desse “avanço” tecnológico. Tinha que tomar doses em determinadas horas, inclusive nas madrugadas. Ele não só disponibilizou a geladeira como deixava a porta da sua casa apenas encostada para que papai fosse coletar a dose do remédio.
O Germano, sobrinho do Sr. Anibal, mudou-se para Porto Alegre no Rio Grande do Sul e por um desses tantos acasos do destino, acabou sendo paciente do meu irmão Marcelo, cardiologista, que também se radicara por lá. Aquele garoto pode retribuir o favor que recebera. O Sr. Germano não se cansava de dizer que jamais deveria ter dado ouvidos à mulher dele e ido embora do Crato. Costumava comentar com o Marcelo:
- “Doutore aquilo é a melhor terra do mundo”.
Um dos filhos do Germano, também por coincidência, foi meu colega no tempo em que trabalhei no Ministério da Irrigação, em Brasília.
O Acácio sofria muito na mão dos flamenguistas e parecia ser uma pessoa de poucos amigos, pelo modo ríspido de falar. Mas era só impressão. Ao contrário, era uma pessoa de coração muito bom. Todo o dia doava as sobras de pão e bolachas para asilos mantidos por quaisquer religiões. O seminário também recebia suas doações.
Certa noite, ao chegar à janela de sua casa, na Rua Dr. João Pessoa, percebeu uma pessoa, bem magrinha, de paletó atrás de um Fícus Benjamin, de espreita. Reconheceu o tal proprietário do famoso bar, pelo guarda chuva que sempre portava. Concluiu que ele estava à espera da saída da sua empregada, Maria. Como ela ia demorar a sair, resolveu levar uma cadeira de palhinha e oferece-lo, falando bem baixo:
- “Eu sei que tu estás a esperar a Maria. Sente nesta cadeirinha para que tu não fiques cansadinho”.
Ele, indignado, não aceitou. E o Sr. Acácio:
- “Entre nós homens não tem segredo. Eu prometo que amanhã ela sai mais cedo. Hoje ela atrasou-se no jantar”.
Quando voltou para casa com a cadeira, foi logo cochichando para a empregada:
- “Apressas o jantar que o teu namorado está a te esperar”.
- “Oxente, e eu tenho namorado?”
- “Eu sei de tudo! Fui até oferecer uma cadeira para ele esperar sentado. Ele não está mais aí em frente, mas deve estar na esquina, a te aguardar”.
Dito e feito. Enfim o casal pode se encontrar.
No dia seguinte bem cedo, como de costume, o Acácio mandou um empregado dele buscar a garrafa de água hidrolitol (era uma água gasosa), na sorveteria do namorado de sua empregada. Mas, desta vez não mandou o dinheiro. Só o seguinte recado: “A partir de hoje eu não vou mais pagar a água hidrolitol. Ele sabe o porque”.
A LAGARTIXA

O Bantim, da sorveteria, tem muitos casos engraçados. Ele era amigo do ‘Dom Juan’, que tinha uma bodega próxima à sorveteria dele. O Luís não sabe atinar o porque desse apelido. Não era um tipo bonito e nem tão pouco conquistador. Tinha também o apelido de ‘cego’. A sua grande habilidade, na verdade, era ‘matar’ charada. Ele e o Dedé de Zeba eram famosos na cidade por essa habilidade. No dia do seu aniversário o Bantim foi gozá-lo:
- " Ei velho, tá lascado, hein! Setenta anos! Pois eu tenho setenta e dois, mas não estou igual a você não! Eu ainda estou inteirinho. Estou tinindo, subindo pelas paredes!”.
- “Oxente, virou lagartixa!”

MUITO MOVIMENTO

Um dia apareceu no Crato uma pessoa de Altaneira, que estava se mudando para a cidade. Procurava um ponto comercial para comprar. O Bantim, grande contador de estórias, tinha um amigo proprietário de uma bodega quase sem nenhum movimento. O negócio estava muito ruim e essa era uma oportunidade para ele se ver livre daquele péssimo comércio. Então, propôs vender o ponto com tudo dentro, pois estava querendo ir embora para Fortaleza. Marcou com o interessado para ir conhecer a bodega. Mas, por sugestão do Bantim, combinou com vários amigos para entrarem na bodega, um após o outro, e ‘comprar’ algum produto. Um comprava um rolo de fumo, outro um litro de querosene, mais outro cigarro, alguém perguntando se algum produto já tinha chegado etc. Ou seja, não parava de entrar freguês. Quando os “atores” terminaram a encenação, o interessado disse:
- “É, estou vendo que o seu ponto é muito movimentado. Mas, não era bem isso que eu estava querendo não. Estou procurando um ponto de pouco movimento, só para eu passar o tempo e não ficar dentro de casa”.

A LEI DE CHICO DE BRITO

O cratense Francisco de Brito ficou famoso em todo o Nordeste como Chico de Brito. É o pai do repórter da Globo, Francisco José, baseado em Recife. Por sinal a semelhança física é enorme. O Sr. Francisco era uma pessoa cheia de opiniões. Só prevalecia aquilo com que ele concordava. No seu território, era um verdadeiro rei. O Luís o conheceu sempre vestindo uma roupa caqui. A calça e a blusa, de mangas compridas, sempre da mesma cor e do mesmo tecido. Ai daquele que fosse contra uma opinião sua! O seu prestígio era tamanho que, se alguém perseguido pela polícia se segurasse em uma estaca da cerca das terras do Chico de Brito estava salvo! Nenhum policial se aventurava a prender alguém que se socorrera do velho, mesmo que fosse segurando numa simples estaca. As estórias são tantas, que hoje é impossível distinguir o que é verdade daquilo que é pura lenda. Surgiu, então, a expressão de “Lei de Chico de Brito”, quando alguém quer se referir a uma determinação fruto apenas da vontade própria.
A versão da história de como surgiu a expressão “Lei de Chico de Brito” está contada na Revista cratense A Província, em artigo assinado por Raimundo B. de Lima. Este ouviu o seu pai, José Barros Cavalcante, contar inúmeras vezes, por ter sido testemunha ocular. O meu cunhado, Edson Teixeira, também ouviu o testemunho de outro filho do Chico de Brito, Francisco Brito, a mesma explicação da expressão, que é a seguinte:
No Governo do Accioly, era intendente do Crato o Cel. Antonio Luís Alves Pequeno. A política virou, e assumiu o Governo do Estado o Cel. Franco Rabelo. Este nomeou para Intendente do Crato o Cel. Francisco José de Brito. O antigo Intendente não quis entregar o posto. O novo Intendente foi ao Lameiro e falou com outras figuras importantes da cidade: Francisco Calaça, Diógenes Frazão, Abdon da França Alencar, César Pereira. Com estes e mais outros homens de confiança, entre eles Augusto Pereira Amorim, foram até à Prefeitura, encontrando-a fechada. Colocaram a porta abaixo. O Cel. Francisco José de Brito sentou-se na cadeira do Intendente, como uma maneira de formalizar a posse. Nisto, surge o Dr. Irineu Pinheiro (veio a se tornar o maior historiador do Crato), sobrinho do Intendente deposto. Revoltado, perguntou:
- “Mas que Lei é esta, me diga?”
O novo Intendente sentenciou:
- “É a Lei de Chico de Brito! Esta Lei eu mesmo fiz”

O Cel. Antônio Luís Alves Pequeno e o famoso Chico de Brito. O primeiro foi substituído pelo segundo na Prefeitura. A semelhança do Chico de Brito com o filho Francisco José, repórter da Globo, é total

RAIOS X

O Crato, durante anos foi o único município de interior a dispor de aparelhos de raios-X, para radiografias. Quem operacionalizava era o Dr. Dalmir Peixoto. Prestava grandes benefícios no diagnóstico de doenças, principalmente tuberculose ou fraturas. Tudo isso era possível com a disponibilidade de energia gerada na turbina da nascente, propiciando uma voltagem de 220 volts perfeita. Com o rápido crescimento da cidade, a turbina passou a não dar mais vencimento. Houve a necessidade de adquirir um gerador a Diesel. Mais alguns anos e nem esse reforço foi suficiente. Enquanto se esperava pela energia de Paulo Afonso, a cidade conviveu com a energia elétrica bem precária. O drama maior era quando o Dr. Dalmir ia tirar uma radiografia. Tinha que ligar para o Pedro da ‘Luz’, (o funcionário da prefeitura encarregado do gerador):
- “Pedro da ‘Luz’, desliga a luz dos outros bairros que eu vou tirar as radiografias agora”

DOM VICENTE

Dom Vicente foi um Bispo extremamente operoso, no Crato. Não era um bispo de palácio. Ele não! Estava sempre se movimentando, dirigia camioneta (uma grande novidade para a época), buscava recursos para a Diocese onde quer que existissem. A sua amizade com o Ministro Pinotti possibilitou a obtenção de muitas melhorias, viabilizando o ensino universitário no Crato, a Rádio Educadora, construção de casas para alugar as famílias pobres. Do Programa Aliança para o Progresso conseguiu doações de alimentos, que distribuía com os pobres. Apesar de toda essa operosidade, pessoas maledicentes falavam mal do Bispo. Diziam que ele só pensava em dinheiro e que desviava recursos. Quando não o chamava de ‘Dom Dinheiro’, era ‘Dom Ratão’. Dom Vicente tinha conhecimento desses comentários, mas não dava a mínima importância. Continuava a fazer o seu excelente trabalho, com muita dedicação.

Palácio do Bispo
Numa ocasião, observou que a torre da Rádio Educadora estava necessitando de uma nova pintura. A única pessoa no Crato habilitada a fazer esse serviço, era o pintor Vicente Ferrer, apesar da idade já adiantada. A negociação para a contratação dos serviços foi um embate entre os dois ‘Vicentes’ muito espertos, que não se deixavam enganar. O Ferrer alegava que era o único na cidade com coragem e experiência para pintar em alturas. O serviço seria muito bem executado e a torre estava necessitando de um trabalho urgente, para preservar sua integridade. Utilizaria apenas um auxiliar. Disse que cobraria um preço alto, o que realmente fez. Executaria o serviço em quinze dias e o material seria por conta dele. O Bispo retrucou:
- “Também, com um preço desse, se o material não fosse por sua conta seria um absurdo”.
Por fim, o serviço foi contratado. No primeiro dia o bispo foi fazer uma vistoria e o Ferrer estava efetivamente trabalhando. Nos dias subseqüentes, devido aos seus múltiplos afazeres, não foi inspecionar a pintura. No quinto dia, o pintor chegou ao palácio e falou para o Bispo:
- “Dom Vicente, terminei o trabalho!”.
- “O que!?!? Já terminou? Não eram quinze dias, homem de Deus?!?
- “Não, Dom Vicente eu trabalhei dia e noite, não tive descanso e terminei o serviço. Pode ir conferir”.
O Bispo foi então conferir. Olhou a torre por todos os lados e notou que ela estava pintada mesmo. Achou que pagara um preço muito alto. Um serviço de quinze dias feito em cinco! Comentou, então:
- “É, e ainda dizem que o ladrão do Crato sou eu...”

ALIANÇA PARA O PROGRESSO

Dom Vicente era um bispo pós Vaticano II. Mente aberta. Uma pessoa sensível aos problemas sociais dos seus paroquianos. Grande parte dos cratenses não estava acostumada com um Bispo dinâmico como ele. Diziam que vendia a farinha de trigo que recebia de doação da Aliança para o Progresso. Tudo era fruto da ignorância de como funcionam estes programas internacionais de doação de alimentos. Da quantidade de farinha que recebia, o Programa autorizava vender uma porcentagem para arrecadar o suficiente para pagar os valores de frete, armazenagem e capatazia a que estava obrigado. Mas o povo dizia que ele estava vendendo a farinha e embolsando o dinheiro.
Certa ocasião o Luís estava embarcando no Aeroporto do Crato, para o Rio de Janeiro. Ia viajar também o Dom Vicente, que se destacava entre todos pela sua grande altura e a elegância da roupa de bispo. Também, no aeroporto para viajar, um comerciante de farinha de trigo do Crato. Este, famoso por ser pessoa pouco esclarecida, achava que o Dom Vicente era um comerciante de farinha como ele. Aproximou-se do Dom Vicente, olhou para cima (era bem baixinho) e perguntou:
- “Como é que vai o negócio da farinha?”
Dom Vicente olhou de cima para baixo para aquela pessoa bem baixa ao seu lado e, com um desprezo total dá o calado como resposta. O Luís diz que o comerciante ficou tão desconcertado que saiu de fininho, sem saber onde enfiar a cara.

O CIRURGIÃO PSICÓTICO

No Crato tinha um cirurgião muito bom, mas que, vez ou outra apresentava crise de comportamento. Foi o obstetra da minha mãe, no nascimento do meu irmão caçula, o Alexandre Mendelssohn. O Luís diagnosticava logo quando estava para surgir esse problema. Freqüentador da Sorveteria Glória, começava a fumar muito e beber mais do que uma dose de whisky. Mas o que era determinante mesmo, e que fazia a família mandá-lo imediatamente para São Paulo submeter-se a um tratamento psiquiátrico, era quando, ao término de uma cirurgia, ele batia as mãos e falava para seus auxiliares:
- “Pronto T-O TÓ. Macaxeira Mocotó”.

QUEDA DO CAVALO

O Dr. Mozart Cardoso era médico em Juazeiro do Norte. Muito inteligente e poeta repentista notável. Crítico mordaz do Crato. Não tinha meias palavras. Dizia que o povo do Crato era preguiçoso e aquelas fruteiras que existiam nos sítios não haviam sido plantadas. Apenas os moradores comiam as frutas com semente e tudo e iam defecar no mato, ocasião em que as sementes germinavam, gerando as fruteiras.
O Luís foi o idealizador, organizador, construtor e primeiro Diretor do Clube Grangeiro (a grafia é com ‘g’, pois assim foi grafado o nome do rio que dá origem ao nome do clube). Para que não tivesse vida efêmera, determinou que 30% dos títulos deveriam ser vendidos no Juazeiro. Justificava pelo fato da maior força financeira da cidade, que já se anunciava àquela época, vindo de fato a se confirmar. O clube iria necessitar de sócios que viessem gastar no clube, para que ele pudesse sobreviver. O Luís queria um clube bom e que não encerrasse suas atividades logo em seguida, por falta de recursos para sua manutenção. A rivalidade entre as duas cidades era tão grande que os corretores se recusavam a vender títulos no Juazeiro. O próprio Luís se encarregou de vendê-los. Um dia, recebeu um recado que o Dr. Mozart estava querendo comprar um título. O Luís logo se apressou em visitá-lo, pois tinha muita curiosidade em conhecê-lo pessoalmente. Chegando ao consultório, ao se apresentar, o próprio Dr. Mozart pediu-lhe para entrar. O Luís não pode deixar de perceber, logo de início, um enorme hematoma no seu olho direito, deformando todo o rosto. O Dr. Mozart, antes de conversar sobre o a compra do título, se apressou em esclarecer o motivo daquele hematoma:
- “Luís, você sabe o que é uma manga, duas cercas uma ao lado da outra?”
- “Sei, sim”.
- “Pois eu ia montado em um cavalo nessa manga, quando ele assustou-se, não sei com quê. Empinou comigo e me jogou pra fora da sela e eu ainda ajudei, pulando. Pois Luis, eu fui de encontro a um mourão da cerca que quase furou meu olho, como você está vendo”.
- “Mas foi muita sorte o senhor não ter perdido o olho”.
- “É Luís, mas essa não é a estória verdadeira. Quando o cavalo empinou, eu estava era sonhando! Em vez de cair do cavalo, cai foi fora da cama, batendo com o olho direto na quina da mesa de cabeceira. Taí o resultado...”

BURACO DE BARALHO

O Dr. Mozart era um repentista de primeira e também costumava fazer poesia pornográfica. Foi o único prefeito de Juazeiro do Norte eleito graças à influência política dos Bezerra, que acabou sendo tirado da prefeitura por não obedecer em nada aos responsáveis pela sua eleição. Não suportava jogo de baralho. Certo dia procurou por uns amigos e todos estavam jogando “buraco”. Chegou junto ao grupo e improvisou os seguintes versos:
Bando de velhos impotentes
Sem mais tesão no caralho
Trocam o buraco de gente
Por buraco de baralho.

O “FANABÔ”

Uma figura muito querida do Crato chegou à velhice com um patrimônio respeitável e uma boa reserva em dinheiro. Tinha um pequeno ponto comercial, cuja principal atividade era o exercício da agiotagem. Todos aqueles que passavam alguma dificuldade financeira recorriam a ele, que prontamente os atendia. Sofria de um problema de calos nos pés. Por isso, andava com grande dificuldade. Naquela época ainda não existiam os tênis, e o único sapato que ele podia calçar era o seu precursor, aquele mesmo que eu usava nas minhas aulas de educação física no Colégio Diocesano do Crato: o sapato “fanabô” (assim se pronunciava). Por não ser de couro, esse tipo de sapato adaptava-se melhor às conformidades dos pés dele. Era de cor branca, necessitando ser periodicamente pintado com alvaiade. Recordo-me fazendo essa “pintura”, com uma escova de dentes usada, após cada aula de educação física. Esse senhor mantinha os seus sapatos impecavelmente brancos. Tinha vários pares. Por isso, de longe já se sabia que ele vinha vindo, devido aos invariáveis sapatos brancos. Os seus devedores aproveitavam-se deste detalhe para depreciá-lo:
- “Lá vem o pé de giz!”
Morreu com este apelido.

O FISCAL DE MENOR

Existia um fiscal do Juizado de Menores do Crato bastante severo. Mas, não era muito versado na língua portuguesa. Quando desconfiava que alguém de menor estava querendo freqüentar um ambiente proibido, apressava-se em abordá-lo:
- “Hei, você é de menor. Não pode entrar não”.
- “Mas ‘seu’ fiscal, eu não sou mais de menor não! Já estou dentro dos 20 anos.”
- “Comigo só vai dentro da lei. Pois então, ‘se indenize’!”

JESUS

Existia um proprietário de imóveis no Crato que ficou viúvo. Já estava em idade bem avançada, mas resolveu casar com uma moça bem mais nova do que ele. Chegaram até a ter filho. Após algum tempo, ele mais velho ainda, e a mulher em forma. Acabou se apaixonando por um moreno alto, bonito, de nome Jesus, o que terminou chegando ao conhecimento do velho. Por fim adoeceu e, no leito de morte, estava sofrendo de muitas dores. Alguém bastante religioso tentou confortá-lo, dizendo:
- “Lembre-se de Jesus!” (o Cristo, lógico).
E o velho, arquejando:
- “Homem, não fale nesse negro aqui em casa não”.

BAITOLA

Existia no Crato um bêbado que se caracterizava por ser chato e mal agradecido. A cara dele parecia uma castanha de caju, lembrando muito a do Presidente Dutra. Trabalhava com o Cândido Figueiredo. Era torcedor fanático do Flamengo. Em certa ocasião encontrou, cedo da noite, com o Senhorzinho, no calçadão que passou a existir ao lado da antiga Sorveteria Glória e da Imobiliária do Luís. A princípio lamentou o fato do Senhorzinho haver amputado uma perna, devido a problemas de diabete. Mal o Senhorzinho agradeceu os votos de pesar, ele disse, de primeira:
- “Mas o que eu queria mesmo era pedir cinco cruzeiros para eu tomar de cana”.
Senhorzinho, que era a delicadeza em pessoa, meteu a mão no bolso e deu o dinheiro solicitado. Pouco tempo depois volta o bêbado a pedir a mesma quantia, para a mesma finalidade. O Senhorzinho, sem se aborrecer e com muita gentileza, retrucou:
- “Mas, homem, procure agora a colaboração de outros. Eu acabei de lhe servir.”
Ele empertiga-se todo e, encolerizando-se, diz:
- “Você é um aleijado baitola”.
E o Senhorzinho, não perdendo a calma, lhe respondeu:
- “Bem, aleijado eu sei que sou. Mas baitola, eu estou sabendo agora, porque você acaba de me dizer”.

INVERNÃO!

José Horácio Pequeno foi uma figura das mais tradicionais do Crato. Homem de uma honestidade à toda prova. Amigo de todos. Filho de político que foi assassinado, mas não militava na política. Todas as vezes que via na televisão a imagem do Gov. Amin, de Santa Catarina, me lembrava do Sr. Zé Horácio. Ele era careca, como o Gov. Amim. A política do Crato era comandada pelos coronéis de engenho. Todos militantes da UDN. Quem eles indicassem para prefeito, seria eleito. Chegou uma época que não tinha mais a quem indicar e lembraram-se do ‘compadre Zé Horácio”:
- “Vai ser você, compadre”.
E assim foi.
Ao tomar posse, o Sr. Zé Horácio viu a difícil situação financeira da Prefeitura. Devendo tudo e a todos. E, dentro da sua ótica de comerciante honesto e pagador de seus compromissos, tratou de por ordem nas finanças. Já naquela época praticava, sem saber, a “Lei de Responsabilidade Fiscal”. Pagando as dívidas, não sobrava nada para nenhuma benfeitoria. Não fazia nenhuma despesa se não tivesse o dinheiro em caixa. Começou a haver o falatório na cidade. Nem as ruas ele mandava varrer, pois não havia disponibilidade financeira para tal. Coincidiu com uma época de chuvas intensas (época de inverno, como se diz no Nordeste) e as estradas vicinais ficaram intransitáveis, afetando em cheio a base política dos coronéis. Então, resolveram formar uma comissão de notáveis para ir falar com o Prefeito, visando alertá-lo da necessidade de providências urgentes. Nessa comissão tinha representante dos coronéis, do comércio, do Rotary etc, todos amigos pessoais e compadres. A comissão passou a explicar ao Prefeito os problemas que as chuvas estavam provocando. Principalmente, prejudicando os correligionários deles. Muitos não conseguiam andar nas estradas, nem a cavalo. E o Zé Horácio só ouvindo... Cada um desfiou uma série de reclamações, esclarecendo que a Prefeitura é para dever mesmo. Não pode é ficar sem uma solução. Após as reclamações, esperaram do Prefeito uma decisão. E o Sr. Zé Horácio saiu-se com esta:
- “Invernão, senhores, invernão!”

É OBRA DEMAIS!

Dr. Alencar Araripe foi um Deputado Federal de extremo prestígio e muito atuante. Até hoje o Crato não teve um filho da terra, como Deputado Federal, com tantos bons serviços prestados à cidade e à Região.
Quem mais se aproximou do Dr. Alencar foi o Dr. Raimundo Bezerra, cratense de coração, vez que chegou ao Crato com seis meses de idade, procedente de sua cidade natal, Crateús. Faleceu no cargo de Prefeito, representando uma grande perda, não somente como administrador, homem de visão e uma pessoa humana dotada de uma generosidade impressionante.
Um filho do Dr. Alencar, o Dr. Jósio de Alencar Araripe, foi candidato a prefeito, mas nunca conseguiu se eleger. Tendo herdado a honestidade e seriedade do pai, dizia para o eleitor:
- “Se quiser dinheiro, vá procurar o concorrente. Ele está pagando para votar nele!”
Chegou a ser vereador e fazia uma oposição ferrenha ao prefeito da época. Gostava de fazer o seguinte comentário:
- “Luís, esse homem faz obra demais! É obra aqui, obra ali, obra acolá! Não sei onde vai ter tanta latrina para caber tanta obra!”

VESTIU SAIA

Em certa ocasião esteve no Crato o Circo Nerino, e o Luís resolveu ir assistir. Estava na fila para comprar o ingresso e, imediatamente à sua frente estava um funcionário da Casa Aurora. Muito fanfarrão, costumava gabar-se:
- “Vestiu saia, não sendo padre e nem escocês, eu traço!”
À frente dele, na fila, estava uma mulher. Para fazer jus à fama, começou a se insinuar para ela. Chegou a se encostar na traseira dela, naquela prática que, à época, chamava-se ‘pinar’. O Luís conta que, quando viu foi a mulher dar um salto pra frente, virar-se para essa pessoa e exclamar, bem alto:
- “Epa! Tá vendo saia e está pensando que eu sou fêmea! Eu sou é mulher macha! Eu gosto é de mulher!”

COMPRO, MAS NÃO PAGO

Moisés Teixeira foi um dos primeiros arrendatários de cinema no Crato. Sua filha, Cléia Teixeira costumava cantar nos programas da “Hora da Saudade”, da Rádio Araripe do Crato. Posteriormente, o Sr. Moisés montou um pequeno comércio de material elétrico. O forte era a venda de lâmpadas, principalmente as de 40 w que eram as mais procuradas, por consumirem menos. No entanto, observou que o estoque dessas lâmpadas estava baixando muito e não se lembrava de ter vendido tanto. Achou que alguém estava roubando. Tomou, então, uma providência: marcou todas as caixinhas de lâmpadas com as iniciais dele – MT. E, realmente, tinha razão. O ladrão tirava de uma a duas lâmpadas de cada vez, levava para sua pequena bodega, na periferia. Quando juntou certa quantidade, foi vendê-las ao próprio Sr. Moisés. Acertaram o preço e, ao recebê-las, o Sr. Moisés verificou que todas tinham a marca que ele fizera! Disse, então:
- “Compro, mas não pago. Estas lâmpadas são minhas. Foi você quem me roubou”.
- “Que é isso, Sr. Moisés, como é que o senhor diz uma coisa dessas!”
- “Olha aqui as minhas iniciais, que eu mesmo coloquei!”
- “Não, Sr. Móisés. É que, como eu sabia que o senhor ia comprar, já coloquei as iniciais em todas as caixas!!!”.

A PAÇOCA

O Sr. Pedro Felício foi um educador exemplar e incansável no Crato. Responsável pela instalação de diversos Grupos Escolares e da Associação Caixeiral, que possibilitava o ensino noturno para aqueles que trabalhavam durante o dia. Era um curso profissionalizante de contabilidade. Portanto, na década de quarenta e cinqüenta o Crato já contava com este benefício. O Sr. Pedro mereceria uma estátua, pelo muito que fez pela educação da cidade. Era também político e, por diversas vezes candidatou-se a Prefeito, sendo sempre derrotado. Até que uma vez, já com idade avançada, a população resolveu premiá-lo pela insistência, elegendo-o Prefeito.

Pedro Felício em duas épocas

Politicamente era conservador, mas não tanto quanto os donos de engenho. O conservadorismo se estendia aos seus hábitos, além de conversar pouco. Só caminhava pelo meio da rua, por ter, em certa ocasião, escorregado numa casca de banana deixada numa calçada, levando uma grande queda. Toda segunda-feira, no almoço, tinha um prato de paçoca. Ao lado, inseparável, uma quartinha com água. Só bebia café de bule, nunca café de garrafa.
Uma determinada segunda-feira, na hora do almoço, sua esposa, Dona Ailza, (irmã do Dr. Wilson Gonçalves) falou extremamente contrariada:
- “Mas Pedro, não é que hoje eu me esqueci de fazer a sua paçoca”.
O Sr. Pedro calado, de cabeça baixa. E a Dona Ailza, extremamente contrariada:
- “Como é que pode acontecer uma coisa dessas!!. Hoje é o dia da carne de sol de Caicó! Hoje é segunda-feira, dia da sua paçoca! Eu nunca me esqueço! Como é que vai ser? Hoje você não vai gostar do almoço!”
E o Sr. Pedro calado, diante do embaraço da esposa.
- “Mas não vai acontecer de novo. Está com mais de dez anos que eu faço esta paçoca toda segunda-feira!! Como fui esquecer hoje...”
O Sr. Pedro, então, rompeu o silêncio:
- “Não, eu acho que está com mais de dez anos. Devem ser uns quinze anos!”.
Como ela continuasse a se lamentar, o Sr. Pedro disse:
- “Não, não se lamente não! Durante todos esses anos eu comi paçoca porque você botava na mesa. Mas eu não gosto de paçoca não...”

A “FAMÍLIA”

Existia no Crato um senhor que era famoso por ser um autêntico garanhão. Era uma onça para comer gente. Teve duas filhas com uma amante. Ficou preocupado que aquelas meninas crescessem sem ter a referência de uma família. Então resolveu criar uma, mesmo que fosse artificial. Montou uma casa para a amante, que vivia com as filhas. Mas faltava a figura masculina. Ele próprio não poderia, pois já tinha a sua família e não pensava em abandoná-la.
Lembrou-se, então, de um dos freqüentadores da Praça Siqueira Campos, que estava sempre com os motoristas de “carros de praça”. Vivia de fazer biscates que não lhe custassem muito esforço. Aqui e acolá fazia uma corrida, quando um motorista não podia ir, o que lhe garantia uns trocados. Os irmãos dele eram bem diferentes. Todos bem empregados, alguns até formados. Ele, não. Não queria nada com a vida.
O velho resolveu “contratar” essa pessoa para ser o “homem” da casa. Em compensação lhe daria um Jeep, no qual poderia fazer suas corridas e ganhar um dinheirinho. As despesas da casa, garantia o senhor, ficariam sob a sua responsabilidade. Além disso, respeitaria a “casa” do “contratado”. Quando quisesse ter encontros amorosos com a amante seria em outro local, nunca na “casa” dele. Como exigência, ele não poderia bater, de maneira nenhuma, nas meninas. Ele disse na hora:
- “Eu topo!!! Mas querendo pode ter o encontro com ela lá ‘em casa’ mesmo”.
- “Não, não. Isto aí não. É uma questão de honra”.
Chegando a época do Natal, o velho parou o carro em frente da “casa”, da filial. Ficou, sentado no carro mesmo, combinando os presentes de Natal para as meninas. Enquanto isso o “homem da casa” estava sentado na sala da frente. Definidos os presentes das filhas e da amante, ele, discretamente perguntou:
- “E para ele, o que é que eu compro?”
Ouviu-se, então, uma voz, de dentro da casa:
- “Uma calça de Brim Coringa, mesmo!!!”

TWO BEARS

Antônio Venâncio foi um dos homens mais ricos do país. Começou a sua fortuna no Crato. Embora tivesse poucos estudos, possuía uma visão fantástica para negócios. Vindo do Assaré, começou a negociar no Crato. Percebeu que o período da Guerra era uma boa oportunidade para ganhar dinheiro. Passou a vender para o exército gêneros alimentícios ou determinados produtos estratégicos, que se valorizaram no período do conflito mundial, como mamona, algodão e couro. Devido aos torpedeamentos dos navios na costa brasileira, os produtos do Nordeste para o sul passaram a ser transportados pelo Rio São Francisco. Os do Cariri eram transportados em caminhões do exército, para o porto de Petrolina. O Venâncio fez amizade com os oficiais e passou a ser o comprador deles, no Cariri. O Luís lembra-se bem de tê-lo visto pedindo adiantamento na firma do meu avô e do Sr. Joaquim Bezerra, para comprar as primeiras mercadorias, iniciando assim a sua brilhante carreira no mundo dos negócios. Do Ceará foi para o Rio de Janeiro, onde multiplicou a fortuna. Com a inauguração de Brasília, apostou na cidade e desfez-se de todos os seus imóveis no Rio, investindo tudo em Brasília, solidificando a sua fortuna. Chegou a ser Senador pelo Distrito Federal. Tinha como seus auxiliares de mais confiança, pessoas da região. Um deles era o Tobias Mota, irmão do Dr Oriel Mota, que chegou a ser Deputado e Superintendente da Cibrazem. Moravam vizinho à nossa casa, na Praça Francisco Sá. Tobias era alto, com um andar meio desengonçado, que o meu tio Francisco Mourão imitava. O certo é que o Tobias foi gerenciar o escritório de importação e exportação do Venâncio, em Nova Iorque. Certa vez o Venâncio foi visitar o escritório nos Estados Unidos. Ele e seu Gerente foram a um restaurante. Na conversa muito animada, todas as vezes que pronunciava o nome do Tobias o garçom, com muita presteza, colocava duas cervejas na mesa...

CARO COLEGA

Lembro-me bem do Zé de Sousa. Era um preto alto, enfermeiro, tendo por principal atividade o atendimento a chamados para aplicar injeções nas residências. Era o concorrente do Sr. Miguel, que aplicava as injeções em nossa casa. Este chegava com o aparelho de injeção na mão, vestindo um terno meio surrado e gravatinha borboleta. Estava sempre com a testa cheia de gotinhas de suor. Já o Zé de Sousa andava sempre de branco, como se fosse um médico. Até os sapatos eram brancos. Em seu pequeno ambulatório, de uma porta só, além de aplicar injeções, fazia pequenos curativos. Seus principais clientes eram rapazes ou senhores casados que contraiam doenças venéreas e necessitavam se submeter aos dolorosos tratamentos da época. O Luís recorda-se muito bem que o Zé de Sousa só andava muito perfumado. Era o cheiro de uma brilhantina da marca Le Man de Coty. Em certa ocasião, o Luís contraiu uma infecção intestinal e o médico receitou uma série de injeções. Todas as vezes que sentia o cheiro daquela brilhantina sabia que o Zé de Sousa tinha chegado para aplicar a injeção que ele tinha pavor. O Zé de Sousa orgulhava-se muito dessa sua atividade, queiram ou não, na área médica. Por esse motivo foi humilhado por um médico - o mesmo que receitara o Luís - o que o fez ir embora para o Rio de Janeiro, montar uma farmácia com ajuda do Venâncio, e nunca mais voltar. Tudo por ele ter chamado o médico de:
- “Caro colega”.

A BOTIJA

O Zé do Bode morava afastado do centro do Crato. Para chegar em casa precisava transpor, através de uma vereda, uma mata fechada. Um amigo dele resolveu pregar-lhe uma peça e ficou à espreita, escondido no meio da mata. Quando o Zé do Bode ia passando, com uma voz cavernosa, gritou:
- “Zé do Bode! Ô Zé do Bode”.
- “Pode dizer!”
- “Olha, Zé do Bode, se você quiser tirar uma botija, passe aqui amanhã, nestas mesmas horas da noite. Eu vou te ensinar onde desenterrar uma botija bem rica”.
O Zé do Bode seguiu o seu caminho, sem dizer nada. No outro dia, ao passar no mesmo local e à mesma hora, voltou a ouvir a mesma voz, ainda mais cavernosa:
- “Felizmente Zé, você voltou para que eu lhe revele o segredo dessa botija. Isto vem me fazendo ser uma alma penada. Mas tem uma condição. Primeiro, você tem que dar o cu”.
E o Zé do Bode, a todos pulmões:
- “Vai dar tu mesmo, alma fresca”

O PARTO

Dr. Flávio Henrique, contemporâneo da filha do Luís, a Nilda Cristina, logo após a formatura resolveu ser médico de interior, visando adquirir experiência e conhecer outros tipos de doença. Andou por diversas cidades, inclusive o Crato. Exerceu, como poucos, a atividade de Clínico Geral.
Um dia, estava fazendo um parto numa residência do Crato. O marido estava acompanhando. A mulher, naturalmente, reclamando das dores. Valendo-se do “Padim” Padre Cícero, gritando até. E o marido, ao lado, criticando a mulher pelos gritos. Querendo se desculpar perante o médico, o marido explicava que aquele escândalo era porque a mulher era frouxa, era isso e aquilo outro. Enfatizava que toda mulher tinha carradas de filhos e não reclamava, e ela gritando daquele jeito, dando aquele escândalo.
O Dr. Flávio, com muito jeito, muita paciência, enquanto procurava confortar a mulher, conseguiu convencer o marido a sair do quarto e ir para a sala. Quando ele saiu, a mulher disse:
- “Doutor ele diz que eu sou frouxa! Frouxo é ele que não agüenta cagar um coco”.

Nilda Cristina, quando menina

A MISSA

O Sr. Jorge Lucas era dono de uma carpintaria, na Nelson de Alencar, em frente ao Colégio Diocesano. Conseguiu criar e educar os filhos. Quase todos se formaram. Um deles, o Dr. Zé Nilo, dentista, foi um dos grandes amigos do Luís. Um outro filho é o Dr. Jose Newton Alves de Sousa, que ainda hoje é pessoa de destaque no ensino universitário. O jornalista da cidade era o Osvaldo, responsável por jornais e revistas que circularam durante muito tempo, no Crato. A dona Nilsa, outra filha do Sr. Jorge Lucas, foi minha professora. Todas pessoas de uma grandeza de caráter e personalidade, superando dificuldades e, inclusive, preconceitos.
Colégio Diocesano do Crato em foto recente.
Outra característica marcante do Sr. Lucas era o senso de humor. Quando dois de seus filhos, que eram negros, casaram-se com moças brancas, comentava com os amigos:
- “É, os meninos estão querendo clarear!!”
Certa ocasião ele estava na entrada da Igreja, aguardando o início da missa, quando alguém perguntou:
- “A missa já passou?”
- “Por aqui, não!”

O VIOLEIRO

Um dos filhos do Sr. Jorge Lucas tocava violão muito bem e também cantava. Trabalhava com o pai, na carpintaria. Com as economias, feitas com muito esforço, comprou um violão novo. O pai achava que ele tinha outras prioridades. Mas não disse nada.
Um dia, todos recolhidos para dormir, ouviu-se aquele característico barulho do rasgar de uma rede ao meio. O violeiro foi ao chão. Nem tinha se levantado e já ouviu a voz do pai:
- “Meu filho, arme o violão...”

ZÉ DE MAROCA

Durante um período, o Luís trabalhou em Petrolina/PE. Exercia as funções de Gerente Administrativo da construtora Pecal, que mantinha um consórcio com outra construtora, Itapema, na implantação do perímetro irrigado de Curaçá. As empresas eram obrigadas - por contrato e para atender a legislação trabalhista - a manter ambulatórios médicos, para a eventualidade de primeiros socorros. A Codevasf, a contratante, enviava periodicamente um funcionário de Brasília para vistoriar esses ambulatórios. Era um médico, o Dr. Roberto. Ao final de uma dessas visitas ficou conversando, informalmente, com o Luís. No meio da conversa acabou descobrindo que ele era do Crato/CE. Admirado, comentou:
- “Então você é do Crato!!! Eu conheci um cratense no tempo em que morei em Ilhéus. Foi o maior mentiroso que eu já conheci: Zé de Maroca!!! Conheceu?”
- “Não, nunca ouvi falar”.
E o médico prosseguiu:
- “Ele era o personagem em suas próprias mentiras. Vivenciava de tal forma a história, emocionava-se de tal maneira, que sou capaz de apostar que, se eu medisse a sua pressão ela estaria alterada. Ou seja, acreditava nas próprias mentiras. Interessante que ele era atemporal. Numa ocasião estava combatendo Lampião (na década de vinte), outras vezes, estava lutando com os paulistas na revolução de 32.”
Contou, certa vez, que estava na IIª Guerra Mundial. Era Sargento e comandava uma patrulha brasileira na Alemanha (!!!). Tinha a missão de prender Ritlo (era assim que ele pronunciava Hitler). A patrulha caminhava pelas ruas de uma cidade alemã. Zé de Maroca então falou para seus comandados:
- “Meu instinto de caçador diz que Ritlo está naquela casa.”.
Aproximaram-se, pé ante pé da casa. Cercaram-na. Zé de Maroca, e mais dois companheiros acercaram-se da porta principal. Zé de Maroca espionou pelo buraco da fechadura. Eis que visualizou Hitler:
- “Conheci Ritlo só pelo bigodinho”.
Através de sinais, combinou com os dois companheiros para derrubarem a porta com um golpe só. Assim procederam. Derrubada a porta, posicionou-se imediatamente em frente a Hitler, apontando a metralhadora. E Hitler, apavorado, gritou, levantando os braços e num português fluente:
- “Pelo amor de Deus, não me mate, Zé de Maroca!!!”.
Ao ouvir Hitler invocar o nome da santa mãe dele, resolveu não matá-lo e levá-lo preso para os italianos (!!!)...

A FALTA DE UM ‘Y’

O meu irmão Raimundo tinha um amigo, o Aldemir, que era a gentileza em pessoa. Foram colegas de turma no Colégio Diocesano do Crato. Tinha uma característica: gostava de falar difícil, o que o tornava uma pessoa formal. Estava sempre usando palavras que só ele conhecia. Por este motivo e por ser uma pessoa de temperamento boníssimo era sempre vítima das gozações dos colegas. Lembro-me bem dele, pois morava próximo da nossa casa, na Rua Nelson de Alencar. Caso não esteja enganado, era arrimo de uma velha tia.
Na época, os professores costumavam fazer testes orais com os alunos. E o Aldemir, muito tímido, tinha pavor a submeter-se a este tipo de exame.
No colégio tinha um professor que era tido como o terror. Para ele só existiam duas notas: zero ou dez. Para ter esta má fama, lógico, o zero era o mais comum. Era um Professor baixinho e entroncado, que os alunos o apelidaram de “Charuto”.
Certo dia, aula de Português, aula do professor “Charuto”. Naquela maneira rude que o caracterizava, chamou à lousa o Aldemir. Criou-se a expectativa. O Aldemir, querendo fugir àquele chamado, bem formal, pronunciando pausadamente, disse:
- “Professor, o senhor está se referindo ao Aldemir com ‘y’ ou com ‘ir’?”
- “É você mesmo! Venha logo à lousa!”
Naquele dia, o outro colega, Aldemy, escapou, mas o Aldemir levou zero mesmo.

PELA CULATRA

“A fome com a vontade de comer” é quando o aluno não quer que sejam dadas mais matérias e o professor não tem interesse em ministrá-las. Isto acontecia nas aulas de um determinado professor, na época em que o meu irmão Raimundo era aluno do Colégio Diocesano do Crato. Os estudantes sempre improvisavam algumas estórias, com a finalidade de “embromar” a aula. Assim eles teriam menos “pontos” para estudar para as provas.
Na época, já se falava nas possíveis viagens interplanetárias. A Revista “O Cruzeiro” trazia matérias sobre o cientista alemão Von Braun, aventando a hipótese dessas aventuras. Poucos anos depois a corrida espacial iniciou, com o lançamento do primeiro Sputinik. Certo dia um aluno comentou, usando o Aldemir (sem y) como vítima:
- “Professor, o Aldemir disse que vai a Vênus!...”
- “Fazer o quê?”.
- “Comprar uma camisinha...”
Serenada a gargalhada, o Professor nesse dia deu matéria para o ano todo.
O tiro saiu pela culatra...

NAMORADO ATÔMICO

A formalidade do Aldemir era uma constante. Devido a grande timidez sentia-se bem quando estava na companhia dos seus livros. Daí usar, no seu linguajar, o vocabulário vasto e um conhecimento de assuntos diversos. Conhecia, por exemplo, sobre a energia atômica e como ela foi apresentada ao mundo, estourando sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaky.
Certa ocasião, surgiu o comentário na sala de aula, entre seus colegas, que ele havia levado um fora de primeira, da namorada. Todo mundo quis saber a razão:
- “À falta de assunto romântico, foi explicar energia atômica para a namorada...”

VIII – PRESEPADAS DO LUÍS

O Luís, quando menino, aprontou muito. O dia de feira era ocasião para fazer brincadeiras de todo tipo com os matutos.
No Colégio Cearense, com os outros colegas do Crato, principalmente o Hilário Lucetti, quase deixaram os irmãos loucos. No dormitório, de piso de madeira bem comprido, os dois espalhavam traques pelo corredor. Um irmão ficava lendo um breviário e caminhando (indo e voltando), naquele espaço que separava as fileiras de camas. Quando pisava num daqueles traques, o barulho tanto assustava o irmão como acordava todos os internos. Em certa ocasião, o Luís jogou, por debaixo das camas, quatro bilas (bolas de gude). O barulho delas rolando no piso de tábua e batendo nas pernas de aço das camas foi enorme. O irmão nunca conseguia descobrir, pois o “autor” sempre estava num sono angelical. Nos dias seguintes a idéia se disseminou, para desespero dos irmãos. Em outra ocasião fizeram circular um jornal, escrito à mão, com letra de imprensa. Eram críticas e comentários que deixaram os irmãos e alguns alunos possessos. Nunca descobriram os autores: o Luís (redator) e o Alberto Lucetti (chargista). Somente agora está sendo revelado. Na sindicância, os irmãos, por exclusão, isentaram os alunos da 3ª série ginasial para baixo. Eles não teriam capacidade para redigir tão bem. O Luís era aluno da 3ª Série...
O Luís tem memória fotográfica. Os irmãos costumavam, como castigo, obrigar as crianças a decorarem poesias, com prazo determinado. Quanto maior o castigo, maior a poesia. Em certa aula o Luís foi repreendido e levou, como castigo, decorar até o final da aula, uma poesia que ocupava três páginas do livro. Os colegas, em torno dele, começaram a rir, pois sabiam da sua habilidade. Fez duas ou três leituras e gravou a poesia, sendo capaz de repeti-la até hoje. E ficou fazendo a encenação de que estava estudando. No final da aula, o irmão cobrou a punição e, sob o riso abafado dos colegas, declamou a poesia, demonstrando insegurança, um erro proposital aqui e acolá e prontamente corrigido.
Eu mesmo fui vítima de uma brincadeira do Luís. Tinha uns dois anos e estava aprendendo a falar. Neste período, papai estava hospedando uma irmã (Tia Cacá) com o marido (Joaquim Lobo) e as filhas Núbia e Neide e mais os irmãos Francisco e Lenira. Meus pais tinham prazer em exibir os meus conhecimentos “lingüísticos”. Mostravam um objeto ou uma parte do corpo para eu responder. O Luís foi o meu “professor” para o objeto relógio (lembro-me ainda da “aula”). Certo dia estava na sala, cercado de toda essa parentela. Roberto, o que é isto, o que é aquilo e eu respondendo prontamente. Então o Luís apontou para o relógio dele e eu, bom aluno:
- “Cu”
Eu e minha platéia, em foto de 1945, na Praça Francisco Sá. Estou, de cabelo comprido, no colo de minha babá Maria. Em pé, da esquerda para a direita: tio Joaquim, tia Cacá, Papai, Mamãe, tio Galba, tio Francisco. Sentados ou de joelhos no jardim, na mesma ordem: Núbia, Yara, Raimundo, Neide, tia Lenira, Na foto abaixo, 60 anos depois, eu no mesmo local como única testemunha o banco da praça...

CADEIRA ANDANDO

A primeira casa que meus avós maternos moraram quando chegaram ao Crato, localizava-se na Rua Santos Dumont, defronte ao Bar Ideal. Essa rua era também uma das ocupadas pela feira. Naquele local vendiam pequis descascados, emanando aquele cheiro característico. Os meus avós, vindos de Crateús, nunca tinham visto o fruto e jamais suportaram comer o pequi, indispensável à mesa dos cratenses. Era também o ponto de umas velhinhas cachimbeiras venderem os seus produtos. O nível da casa era um pouco mais baixo do que o da calçada. Pois bem, as velhinhas sentavam justamente no ressalto do portão de entrada, que dava acesso à lateral da casa do meu avô. O Luís, ainda menino, de calças curtas (calça comprida só depois do catorze anos), amarrava um barbante na ponta da saia da velhinha. Amarrava a outra extremidade numa cadeira de balanço que ficava no meio da sala de visitas. Quando a velhinha ia embora, saia arrastando a cadeira até topar na porta, sendo necessário arranjar um canivete ou uma faca para livrá-la daquele contrapeso A minha avó, (Ana Bezerra Martins) ria daquela presepada, vendo uma cadeira andando sozinha na sala de visitas.
Minha avó, Ana Bezerra Martins (Donana) ria da cadeira “andando”.

PASSEIO DE PRODUTO

Dia de feira era um dia de festa para o Luís. Outra brincadeira preferida dele era andar pelo meio da feira pegando produto de uma banca e colocando em outra. De longe, ficava observando a discussão dos feirantes. Um dizia:
- “Roubaram uma alpercata de rabicho! E foi você!”
E o outro feirante:
- “Eu não! Foi alguém que colocou aí!”

O PERFUME

O dia de segunda feira era um acontecimento no Crato, pois se realizava uma feira grandiosa que tomava todas as ruas centrais da cidade. O Luís, quando menino, aproveitava para aprontar com os feirantes. A casa do pai dele era na Rua Bárbara de Alencar, defronte para a Praça Francisco Sá, ou Praça da Estação. Quando se aproximava das três horas da tarde o fluxo de pessoas para a estação aumentava muito. Era o horário que o trem da Paraíba saía. Aqueles atrasados, com sacos nas costas, eram incentivados pelos populares para correr, dizendo que o trem esperava. O maquinista sempre dava uma mãozinha, mesmo após a última chamada. Começava a movimentar o trem, que partia sempre lotado, bem devagar. Às vezes ia passageiro pendurado.
O Luís, em parceria com o meu tio Francisco Mourão, irmão do meu pai, preparavam umas brincadeiras que já vinham, sem o saberem, de tradições antigas. Margarida de Valois (1492 – 1549), Rainha de Navarra, conta numa coleção de cem contos conhecida como Heptaméron, algumas dessas brincadeiras. Os dois colocavam várias armadilhas na calçada da praça, defronte para a casa do Luís. Ficavam escondidos no telhado da casa, por trás da platibanda, acompanhando a reação dos feirantes. Uma delas era deixar uma caixa de sapatos emborcada na calçada da praça, com uma pedra embaixo. Os transeuntes tinham o impulso de chutar a caixa, saindo pulando numa perna só, se vendo de dores, e eles às gargalhadas, lá em cima. A danação preferida dos dois era deixar, espalhadas na calçada da praça, embalagens muito bem feitas de vidros de perfume. Geralmente as velhinhas abriam as embalagens. Quando percebiam que eram vidros de perfume, cheiravam ou despejavam direto no cabelo. E eles, lá de cima, gritavam:
- “É mijo!!!!!”

CORREIOS

Uma tarefa que o Luís, quando menino, não gostava nem um pouco, tinha até medo, era passar telegrama nos Correios e “Telegraphos”. Quando o vovô pedia para que o fizesse, já começava a se tremer. Tudo por causa de duas velhas funcionárias que estavam sempre de extremo mau humor. Eram feias e ainda tinham bigodes. Custavam para atender, e o faziam muito mal, nunca tendo troco. A obrigação de resolver o problema era sempre do Luís. Mesmo quando o papai sugeriu que ele podia receber o troco em selos, elas ainda resmungavam:
- “Vai acabar com os meus selos”
Não eram contratadas por concurso público, e sim por indicação de políticos locais. Portanto, achavam que não tinham nenhum compromisso com as pessoas. Pelo contrário, o cliente era tratado como um importuno que só vinha atrapalhar o descanso delas. Um dia, quem foi passar um telegrama foi o meu pai. Sabedor de como elas tratavam o Luís, foi ríspido quando uma delas demorou a atendê-lo. Acontece que nesta ocasião não era nenhuma das “bigodudas”. Era uma senhora que, sem o saber, na década de quarenta, já utilizava os conceitos de “Qualidade Total”. Foi de uma delicadeza que desarmou o meu pai. Ele ficou desconcertado e, de imediato, pediu desculpas. Neste momento nasceu uma amizade quase centenária. Foram vizinhos algum tempo. Esta senhora, a Dona Julieta, avó do grande artista Sérvulo Esmeraldo, faleceu com mais de cem anos. A sua neta, Zeneuda com o meu tio Genésio,em fevereiro de 1943, escolheram o meu nome no Dicionário Jayme Seguer. Encontram um Roberto Ivens e papai inverteu.
Próximo aos Correios fazia ponto o Sr. Severino, que explorava a brincadeira de tiro ao alvo. Era uma espingarda que disparava uns dardos contra um alvo de papel com círculos concêntricos. O Luís tinha uma habilidade de atirar com os dois olhos abertos sendo um bom atirador. Só perdia para o dono do brinquedo, que tinha sempre dinheiro trocado.

Prédio dos Correios e Telégrafos

Dona Julieta um padrão de educação, gentileza, finura, elegância.

Certa ocasião, no caminho dos Correios, o Luís trocou o dinheiro com o Sr. Severino. Encheu a mão de moedas e pensou: “Quero ver estas velhas bigodudas reclamarem”.
Depois de muita maçada, quando foi atendido, a velha disse o valor a pagar. Ele, triunfalmente, espalhou as moedas no balcão. A rabugenta, contando as moedas e com voz de deboche:
- “Eras, parece até dinheiro de cego!”

O ELEFANTE

Por falar em Sérvulo Esmeraldo ele também aprontava das suas. Chegou um circo no Crato. E trazia um elefante. O Luís e outros meninos não deixavam o animal, jogando pedras que levavam o domador à loucura, chegando até a apontar uma arma para os meninos.
Enquanto isto o Sérvulo e mais o colega Joãozinho iam de casa em casa solicitar jornais velhos.
Quando as pessoas perguntavam:
- Menino, para que você quer tanto jornal?
- Para limpar o cu do elefante...

O RASPADOR

Inspirado na idéia do jornal do Colégio Cearense o Luís resolveu fazer circular no Crato um jornal de críticas recheadas de humor, à sociedade cratense. Contou com a colaboração do jornalista da cidade, Osvaldo de Sousa.
Jornalista Osvaldo de Sousa
Mas, para não serem descobertos, teriam que usar tipos de imprensa diferentes dos usados no jornal gerenciado pelo Osvaldo. Conseguiram, uns tipos de jornal do Dr. Alencar Araripe, há muito tempo em desuso. A princípio o nome seria Curare (veneno), bem adequado para a linha editorial. Mas existia um similar em Sobral ou Campina Grande. Fizeram, então, circular o Raspador como encarte nas edições dos jornais de Fortaleza (O Povo, Correio do Ceará e Unitário). Para tanto, contaram com a decidida e sigilosa colaboração do velho Bode (cheirava como tal), várias vezes eleito vereador, e responsável pela venda dos jornais na cidade, trazidos que eram, pelo trem.
A edição era reduzida, mas teve grande repercussão. Uma das matérias continha críticas àqueles rapazes que namoravam e nunca se decidiam pelo casamento. As balzaquianas, muitas delas vítimas desses rapazes, se deliciavam lendo entre elas, em voz alta, num banco da Praça Siqueira Campos.
O comentário na cidade, era saber quem seria o responsável. Virou caso de polícia. Desconfiavam, mas nunca puderam provar que o Luís era um dos redatores. A segunda edição, ansiosamente aguardada, demorou uns três meses. Bode, desta vez, não quis ser utilizado, pois seria uma pista muito grande. Utilizaram, então, o velho expediente de todos os pasquins: colocar por debaixo da porta.
O Luís passou a receber, por debaixo da porta da Sorveteria Glória, envelopes com sobrescrito: “De um colaborador”. Eram matérias excelentes, mas que não poderiam ser aproveitas sob pena de se denunciar.
Ainda hoje lamenta ter perdido as cópias das duas únicas edições que guardara.
Na época de sair o segundo número do Raspador, estava no Crato uma comissão de fiscais do Estado, fazendo nada mais do que a sua obrigação: fiscalizar a escrita do comércio local. A Associação Comercial liderou uma campanha acusando os fiscais de arbitrários, que estavam impedindo o progresso da cidade, assaltando os comerciantes etc. Nas conversas, os impropérios conhecidos eram poucos para qualificar os fiscais. Os redatores descobriram que tinha recém chegado à cidade, diretamente do Rio de Janeiro, o Bolachão. Este sim, detentor de um vasto repertório dos conhecidos “nomes feios”, somente divulgado nas plagas cariocas. Numa das colunas do Raspador, lia-se o seguinte:
“Encontra-se no Crato, uma comissão de ladrões, chamada de fiscais do Estado. Aqueles que não estiverem concordando ou precisarem aprender mais alguns nomes, procurem o Bolachão que, chegado recentemente do sul do país, tem um grande estoque de palavrões

A CONVALESCENÇA

O Sr. Joaquim Bezerra de Farias, amigo e sócio de meu avô, meu padrinho de crisma e pai do Dr. Raimundo Bezerra - um dos prefeitos do Crato - era uma pessoa boníssima e de permanente bom humor. Não perdia a oportunidade de fazer uma graça, contar uma piada. Lembro-me muito dele, sempre fazendo palito. Era o seu hobby. Chegou a ter um derrame e ficou alguns meses em coma. O Dr. Raimundo largou a sua vida profissional em São Paulo e veio para o Crato cuidar do pai, conseguindo salvá-lo, dando-lhe ainda uma boa sobrevida. Decidido a ficar na cidade, o Raimundo acabou implantando uma Casa de Saúde, unindo duas casas construídas pelo pai, a que deu o nome de Casa de Saúde Joaquim Bezerra de Farias.

Quando o Luís voltou do Rio de Janeiro, achou que o Crato não tinha trânsito e, atravessando uma rua descuidadamente, foi atropelado. Não chegou a fraturar nenhum osso, mas teve que ser hospitalizado para cuidar dos ferimentos. E foi para a Casa de Saúde do Raimundo.

O Sr. Joaquim resolveu fazer-lhe uma visita. O Raimundo recomendou que ele subisse pela rampa, bem devagar. Chegando ao quarto, falou para o Luís:
- “Luís, o Raimundo me falou que parece que você está melhor?”
- “É Sr. Joaquim. Estou bem melhor”.
- “Não se anime muito não. Pode ser a melhora da morte...”

Sr. Joaquim, sempre de bom humor. Construiu o seu túmulo e chegou a “experimentá-lo”... Uma visão da Casa de Saúde que recebeu seu nome

PAU DE BOSTA

No final da década de cinqüenta, o comércio de confecção de roupas no Rio de Janeiro era dominado pelos cearenses. Tinha a Exposição, a Quinta Avenida, a Ducal, a Esplanada. Todas com filiais nos principais bairros. Interessante que havia parentesco entre os donos, mas nenhum era sócio do outro. Eram organizações independentes. A Ducal, que tinha o maior número de lojas, era dos Sousa Carvalho, de Quixadá. Eram parentes dos Aragão, de Sobral, donos da Esplanada. Por sinal da mesma família do comediante Renato Aragão, que ficaria famoso, anos depois. A Exposição tinha ligação com as lojas Garbo, de São Paulo, também de cearenses. O Luís foi Gerente da Esplanada, em Niterói. O Sub-Gerente chamava-se Augusto Aragão, muito jovem ainda, muito alto, filho único do Adolfo Aragão, dono da Esplanada. O velho, como uma forma de treinar o filho, o colocara para trabalhar, sem nenhuma regalia, em cargos subalternos, para ir conhecendo todos os setores da empresa, preparando-o para ser o futuro Presidente da organização. No tempo em que o Augusto foi auxiliar do Luís, sedimentou-se uma grande amizade, tanto dentro como fora da empresa. Num determinado dia, convidou o Luís, com a família, para passar um fim de semana com ele, numa das casas de veraneio dos seus pais, em Friburgo. Naqueles dias a casa estaria só com os caseiros, pois os demais familiares iriam para outra casa, na praia. Era uma belíssima e grande casa. Mas, com uma peculiaridade. Era repleta de salas com os mais diversos brinquedos, para o deleite do filho único: Augusto. Uma dessas salas tinha uma característica toda especial. Era enorme e existia quase uma cidade em miniatura, com os brinquedos circulando em trilhos comandados à distância, de um painel elétrico. Tinha trens cruzando um com o outro, choque de composições, guinchos que surgiam para retirar composições acidentadas, “incêndios” com carros de bombeiros surgindo para “apagá-lo” etc. Era, pode-se dizer, um brinquedo de um menino muito rico. Finalmente o Augusto, já cansado, convidou o Luís para almoçar e conversar. Explicou que ainda não conhecia o Ceará. Tinha muita vontade de ir lá. Pediu ao Luís para atender uma curiosidade sua. Como é que brincavam os meninos no Ceará, no Crato, por exemplo, sua cidade. O Luís esclareceu que não eram brincadeiras de menino rico. E começou a citar. A cada uma que ele dizia o Augusto falava que no Rio também tinha. Até que o Luís falou na brincadeira “Pau de Bosta”. Ele perguntou se não era Pau de Sebo. E o Luís, retrucou:
- “Não, é Pau de Bosta mesmo”.
A curiosidade dele aumentou e quis saber em detalhes, como era essa brincadeira.
Eu, quando menino, também participei dessa brincadeira e passo a detalhar:
Um dia passou a residir na nossa rua (Nelson Alencar), uma família de Fortaleza, que tinha um garoto da nossa mesma idade. Resolvemos fazer a brincadeira do Pau de Bosta com ele, pois sabíamos que, por ser da capital, não a conhecia. A brincadeira tinha que ser feita no início da noite (boca da noite, como chamávamos) e num local com pouca iluminação. O menino tinha que ser escalado (um gordinho) para produzir a “matéria prima”: a bosta. Obtinha-se um bastão de madeira liso, com cerca de 40 cm de comprimento e uma polegada de diâmetro. Uma das extremidades daquele bastão era, devida e abundantemente, melada naquela matéria “depositada” num canto de muro, meio escondido. Dois meninos forjavam uma briga. Um deles portando o bastão já devidamente “preparado”. Formava-se uma roda de meninos (de dez a quinze) insuflando a briga. Havia a estratégia de ir colocando a “vítima”, próxima do menino “armado” com o bastão. Os “briguentos” iam se xingando num crescente. Começava a mãe de cada um a entrar nos xingamentos. A “vítima” ficava cada vez mais crente que a coisa era para valer. Nesse momento, o briguento “desarmado”, dizia:
- “Também, você só tem coragem porque está armado com esse cacete”.
- “Por isso não”.
Virava-se para a vítima e pedia o favor dele segurar o pau. Entregava-o de tal maneira que ele pegava no meio do pau, que não estava “lubrificado”. Quando ele segurava dava-se um puxão rápido, fazendo com que a extremidade melada passasse pela mão do garoto. Imediatamente sentia-se o mau cheiro e toda a meninada, em uníssono, batendo palmas e saltando, gritava:
- Cagado! Cagado! Cagado!

O Luís conta que o Augusto, sentado numa espreguiçadeira, ria que levantava as pernas.
Pouco tempo depois o Luís resolveu voltar para o Crato. Mais alguns anos e o Augusto tornou-se o Presidente da Esplanada. Mais anos depois, vendeu todo o conjunto para um grupo americano. Ficou muito mais rico, vivendo só de rendas.
Cerca de trinta anos após este fim de semana em Friburgo, o Luís foi visitar as filhas (Roseana e Sandra), no Rio de Janeiro. Ao caminhar no calçadão da praia do Leblon, percebeu vir em sua direção, em sentido contrário, um senhor grisalho, muito alto, dizendo:
- “Pare, pare, pare! Eu lhe conheço. Seu nome é Luis Gonzaga Bezerra Martins!”
- “E o seu é Augusto Aragão, torcedor do Botafogo”.
- “E você torcedor do Flamengo”.
Foi aquele abraço... Rapidamente foram atualizadas as informações sobre o que cada um tinha feito nestes trinta anos. O Augusto tinha ficado muito mais rico. Vivia períodos no exterior etc. Mas, ao final, confessou:
- “Mas Luis, eu nunca esqueci aquela brincadeira do Crato que você me contou. Eu trocaria todos aqueles meus brinquedos de menino rico, aquela casa toda de Friburgo, para ter tido a felicidade de, pelo menos uma vez, ter brincado de Pau de Bosta!”

Casa em que moramos na Nelson Alencar. A brincadeira do Pau de Bosta foi na calçada de onde colhi esta foto.

Esta é a calçada da brincadeira do “pau de bosta”. Esta porta menor era um corredor que dava para um terreno amplo onde existia a rinha de briga de galo. Nesse corredor foi “produzido o material” da brincadeira. As escadarias dão para uma residência. A casa geminada à essa era a do Luís. Também desse corredor saiu, um dia, em desabalada carreira um jumento que veio me atropelar na calçada da minha casa. O proprietário do terreno, a pedido do meu pai, obrigou-se a colocar um portão para que não se repetisse o fato.

IX – LUÍS APOSENTADO

Na década de oitenta, o Luís se aposentou. Comprou uma excelente casa no Lameiro, próximo da Cascata, que é um local de banho tradicional na cidade. Um riacho que desce da Serra forma uma pequena cascata, numa grande pedra existente. Próximo, tem uma pequena vila com uma igrejinha. Esta vila pouco mudou, desde que passei o meu último Natal com Papai Noel, no ano de 1950. Foi numa das casas dessa vila. Papai alugou para passarmos as férias de fim de ano. Recordo-me que o dia ainda não tinha amanhecido e eu procurando o brinquedo embaixo da minha rede, até que minha mão tocou no papel celofane que embrulhava a bola. Nunca esqueci aquele barulho, que ainda me soa agradável. Mal o dia amanheceu já estava dando meus chutes lá fora. Nessa mesma casa a empregada estava balançando o Marcelo, que tinha dois anos. Em dado momento ela balançou com tanta força que o menino foi arremessado para fora da rede, indo bater com a cabeça na parede e no chão cimentado. Ainda recordo do barulho da pancada. Quando o Marcelo aprontava das suas, a gente chegava a pensar que ele não regulava direito e eu dizia: “Foi aquela queda, lá na vila do Lameiro”.
Esta verdadeira chácara, escolhida pelo Luís para a vida de aposentado, ficava afastada do centro da cidade, que já fora muito alterado. A televisão prendeu as pessoas em casa. Ninguém mais fazia “caminhadas” na Praça Siqueira Campos. Muitos dos velhos componentes das Câmaras (Comuns e Lordes) não mais existiam. Mas o Lameiro ainda preservava um pouco daquele ambiente dos anos cinqüenta. E o Luís encontrou personagens fantásticos, que deixaram saudades. O que segue são as memórias dos últimos brilhos daqueles anos dourados...

A FORÇA DA PALAVRA

O Cel. Nelson da Franca Alencar marcou a vida do Lameiro. Um é sinônimo do outro. Dono de engenho, figura tradicional do Crato, não admitia que uma ordem sua fosse contestada. Aliás, moramos numa rua cujo nome era em sua homenagem, e a casa, número 94, era de propriedade do seu filho, Sr. Aderson da Franca Alencar.
Quando o Cel Nelson já estava idoso, a administração dos negócios passou para o filho, mas o velho ainda tinha condições de mandar. Um dia chegou um morador e pediu-lhe para recolher as mangas que estavam debaixo das mangueiras, com a finalidade de ir à cidade vender em proveito próprio. O velho tinha um bom coração e o autorizou a colher também aquelas mangas maduras que ainda estivessem no pé.. Em seguida, um outro morador chegou para o Cel. Nelson e pediu emprestado um animal para levar uma carga ao mercado. E o velho:
- “Pois não, pode pegar um animal lá no curral”.
O morador voltou ao Cel. Nelson e disse:
- “Coronel eu esqueci de pedir a cangalha. O senhor poderia me dar uma cangalha”.
- “Pois não, pode pegar uma, lá no estábulo”.

Cel. Nelson Alencar, homem de palavra e opinião.

Quando o morador voltou, foi agradecer ao Cel. Nelson e devolver o animal e a cangalha, que ele emprestara. O Cel Nelson disse:
- “O animal você pode colocar lá no curral. A cangalha você pode levar, ela é sua. Você não pediu emprestado. Você me pediu uma cangalha e eu lhe dei.”

CORREIO ESTRANHO

O Coronel Nelson da Franca Alencar era muito amigo do Padre Cícero. No Lameiro, quem mandava era ele. Quando os jagunços do Padre Cícero invadiram o Crato, tinham uma determinação de não chegar nem perto do Lameiro. Tanto que o padre mandou um aviso para o povo do Crato. Fugissem pelo Lameiro, pois se fossem por outras saídas seriam atacados pelos jagunços.
Essa amizade era alimentada com a troca de bilhetes, sempre tratando de política. O portador era um empregado do Cel. Nelson, o Sr. Vicente. O Luís o conheceu já com idade avançada, mas pelo seu porte e o tamanho dos braços, demonstrava ter sido um homem de força descomunal.
O Coronel Nelson, para testar a lealdade do Sr. Vicente, quando mandava os bilhetes para o Padre Cícero exigia que ele fosse sem camisa e segurando um gato no ombro. E dizia mais:
- “Não vá bater no gato”.
No bilhete de volta, o Padre dizia: “Compadre, o homem chegou aqui todo unhado”.

Padre Cícero Romão Batista

“SEU” ADERSON

Aderson da Franca Alencar, o filho do velho Nelson, foi um dono de engenho dos mais tradicionais do Crato. Extremamente metódico, cumpridor rigoroso de horário. A palavra dele valia mais do que o papel assinado. O seu engenho era de uma limpeza escrupulosa. Não se via uma palha de cana no chão. Tinha um Ford ‘de bigode’, que raramente saia da garagem. Meu pai gostava muito de conversar com ele, na calçada de seu casarão (ainda existe), no Lameiro.
- “Mas Sr. Nelson, por que o senhor não vai de carro para o Engenho?
- “Mourãozinho os meus empregados vão para o engenho a pé. Eu vou também, para dar o exemplo”
Era padrinho de batismo do meu irmão Marcelo. Tinha uma lagartixa que vinha comer na sua mão. E o Marcelo duvidou que fosse verdade. E ele comentou com o meu pai:
- “Mourãozinho este menino está duvidando de mim?”
Estalou os dedos e a lagartixa, saindo não sei de onde, veio comer na sua mão.

Sr. Aderson com a esposa, Dona Zulmira, o filho Nelson e os netos Frederico, Aderson e Gustavo. Sempre achei o Sr. Aderson parecido com o “Magro”, da dupla “O Gordo e o Magro”

A HONESTIDADE

O Sr Aderson da Franca Alencar tinha, como único responsável por todos os seus negócios, o seu primo o Sr. José Horácio Pequeno. Os imóveis, as transações comerciais, as contas bancárias, os pagamentos, tudo era de responsabilidade do Sr. Horácio. O Sr. Aderson, dentro da sua maneira metódica de ser, não admitia que houvesse inflação. Costumava beber uma cerveja, sempre quente. E pagou, durante toda a sua vida, sempre o mesmo preço. Os comerciantes já sabiam e aceitavam aquele pagamento, pois o Sr. Horácio depois sempre pagava o complemento. A administração do Sr. Horácio foi tão eficiente e escrupulosa que aumentou, em muito, o patrimônio do Sr. Aderson. Quando o Sr. Horácio resolveu devolver a responsabilidade da administração para o Sr. Aderson, este exclamou:
- “Mas Horácio, eu não sabia que era tão rico!!!”

DE COSTAS, NÃO!

O Seu Gonçalves era um desses homens típicos do nosso sertão. Bem falante, porém com pouca instrução. Alto, forte, sempre vestindo camisas de brim cinza, de mangas compridas e chapéu de massa na cabeça. Costumava gabar-se da sua boa saúde. Era o pai do Tinga.
No bar do filho, não sentava de costas pra rua, nem que fosse para “ir pro céu”. Os freqüentadores, enquanto ele não chegava, iam ocupando os lugares, de modo a deixar para ele sempre uma cadeira de costas pra rua. Ao chegar, olhava a mesa onde se bebia a cerveja e jogava-se dominó. Pegava a cadeira e fazia a volta na mesa. Dava um chega pra lá em uns dois ou três, e sentava de frente para a rua.
O Marcelo, instigado pelo Dr. Raimundo, perguntou para o Seu Vicente Gonçalves o por que daquele costume, ao que ele respondeu:
- “Doutor, eu quero ver de onde vem a bala”.

NO “FREVO”

Um dos freqüentadores do Bar do Tinga costumava, também, conversar com os amigos que faziam ponto no depósito de bebida dos filhos do Sr. Joaquim Bezerra. Sua principal característica era, em toda frase, empregar uma palavra errada. O cumprimento, ao chegar, era: “Senhores do Conceito”. Certo dia o Sr. Joaquim disse:
- “Meu amigo, a Comissão está aí. Não vai tirar a carteira nova, não?”
- “Ah, vou. Mas desta vez não vou tirar de profissional, não. Vou tirar é a de “armador” mesmo”.
Aí o Sr. Joaquim pediu para ele contar a viagem a Brasília:
- “Quando cheguei no” frevo” de Brasília...”

CORAÇÃO DE MENINO

No tempo em que morei em Brasília sempre no final de ano, íamos passar as férias em Fortaleza, no Ceará. No meio do ano iam só as meninas (Ivna e Ludmila). No final de 1985 resolvemos ficar em Brasília. A economia que faríamos seria usada na compra de um carro. Mas no final de ano sempre chove muito. Pegamos uma semana inteira de chuva. Todo mundo trancado dentro do apartamento, num frio danado e na maior depressão. Então, eu disse: “Vamos para Fortaleza?” Foi uma alegria geral. Mas vaga em vôo para Fortaleza, que era bom, não tinha. Tudo lotado, até o final das férias. A única opção era um vôo para Recife, passando em Juazeiro do Norte. Aí eu disse para Edméia: vamos nesse mesmo! No Crato a gente fica na casa do Luís, as meninas conhecem a minha terra natal e completamos a viagem de ônibus. Assim o fizemos.
Quando o avião estava sobre a Serra do Araripe, as meninas, que estavam na janela, tiveram um encantamento com a beleza do Vale do Cariri, que se descortinava. Foi a mesma reação da avó, quase cinqüenta anos atrás. No aeroporto, encontramos o Luiz Gonzaga, o rei do Baião, que deu autógrafo para as minhas filhas.
O Luís e a Margarida já moravam na casa do Lameiro. Nos receberam muito bem. Logo que chegamos, nos convidou para um casamento que iria se realizar na casa do Sr. Aderson Alencar. Estava casando uma bisneta dele, de apenas quatorze anos, cujo pai também se chamava Aderson. O noivo, com a “avançada” idade de quinze anos. Contei para as meninas as estórias do velho Aderson e do pai dele, Nelson da Franca Alencar. A casa estava intacta. Aliás, uma das poucas casas preservadas, no Lameiro. Ela é circundada por uma calçada alta, com o piso de tijolo. O Luís, recém operado para implantação de ponte de safena, foi ajudado, para subir os degraus, pela mãe da noiva, Dona Sinhá, que logo conseguiu uma cadeira e o ajudou a sentar-se. Sentado numa espreguiçadeira, com os braços levantados para trás, tendo um cigarro de palha na boca, estava o Sr. Vicente Gonçalves, pai do Tinga. Perguntou para a Dona Sinhá:
- “O que é que ele tem?”
- “Ele foi recentemente operado do coração.”
Ai o Sr. Vicente, falando alto, disse:
- “Ah, eu vim do Recife, agora, há poucos dias e fizeram um exame geral em mim. Fizeram exame de coração, de tudo! Sou bem mais velho do que você, mas, felizmente, meu coração não tem nada. Não tenho doença nenhuma!!! Tenho um coração de menino!!!”.
E o Luís ficou só olhando para ele, admirando tanta saúde.
Passaram-se poucos dias e o Luís estava no Café Crato, quando chegou o Ailton, nosso primo, que tem um irmão (Almir), casado com uma filha do Sr. Vicente Gonçalves. Comentou:
- “Mas Luís, o Sr. Vicente estava ali numa fila do Bradesco, quando deu um grito e caiu para trás. Foram ver e ele já estava morto! Foi um ataque fulminante do coração!!”.
E o Luís, de imediato:
- “Ah!!! O coração de menino morreu tão depressa!!!”

O JUIZ

Enquanto o Luís ouvia as estórias do “Coração de Menino”, falando alto, na calçada da casarão do velho Aderson, passei a acompanhar o casamento mais surrealista que eu já vi. Os noivos, duas crianças. A noiva tinha a idade da minha filha mais velha, a Ivna, que tinha quatorze anos também. Todos, noivos e convidados, vestidos modestamente. O pai da noiva, de chinelo, sentado na calçada, parecia que o casamento nem era da filha. O que mais me chamou a atenção foi o Juiz de Paz. Reconheci como um dos meninos do meu tempo de Crato. Parecia-me que ele não sabia o que estava fazendo. Era o único que vestia um paletó, mas muito amarrotado. Comentei com as minhas filhas: casamento de quadrilha de São João é mais organizado do que este. Terminado o casamento, as duas crianças se aboletaram numa camioneta e foram para uma fazenda, onde iriam morar, no topo da Serra do Araripe.
Anos depois, o Luís já morando em Fortaleza, perguntei para ele:
- “Luís, e aquele casamento na casa do Sr. Aderson, deu certo?
- “O casal vive, até hoje, muito bem. Mas o casamento não valeu, não. O Juiz não era juiz coisa nenhuma...”

A CAÇOLETA

No tempo que o Luís morou na chácara do Lameiro, tinha um quase caseiro chamado Sr. Raimundo. Atrás da chácara morava um alemão, que trabalhava num projeto de pesquisa da fauna e da flora da região. Entre a chácara do Luís e o alemão existia um pequeno terreno, onde o Sr. Raimundo tinha a sua casinha.
Segundo o Luís, o Sr. Raimundo foi uma das pessoas mais estranhas que ele conheceu. Parecia veado e não era veado. Parecia pacato e era uma cobra de valente. Tinha um metro e meio de altura. Feio que dava dó. Umas pernas que pareciam dois cambitinhos. Muito trabalhador e de uma agilidade impressionante. Certa ocasião estava aparando a grama e começou a cortar, com uma faca, um trecho que a máquina não alcançava, junto de uma mureta de pedra. O Luís percebeu uma cobra e avisou para ele. De súbito, deu um pulo para trás, dando um salto mortal e caindo em pé e perguntando:
- “Quedê, quedê?”.
Subia num coqueiro sem necessitar de colocar aquela corda nos pés, que os trepadores de coqueiro geralmente usam. Tinha uma técnica toda sua para retirar casa de maribondo. Nada de derrubar ou tocar fogo. Subia na árvore e, com estremo cuidado, com a mão retirava o enxame. Saia conduzindo, sem fazer o mínimo barulho, sem nem tomar fôlego (como dizia), até afogar o enxame no riacho próximo. Por essas e outras habilidades, que tanto impressionaram ao Luís, muito mais impressionado ficou o alemão. Todas as vezes que o Sr. Raimundo estava de folga, o alemão pedia para ir conversar com ele, na sua casa. O Sr. Raimundo dizia:
- “Seu Luís, o que é que ele vê neu, hein? É toda hora conversando comigo e tirando retrato. Quando vou tirar um coco ele tira retrato! E depois vem com uma máquina de rodar! Tem um monte de retrato lá meu. Que é que ele tá vendo neu?”
O Luís teve a certeza de que ele era mesmo uma pessoa muito diferente quando, um dia, sua filha chegou chorando, para dar-lhe um aviso. Ele continuou normalmente trabalhando. E o Luís perguntou:
- “O que foi que houve, Sr. Raimundo?”
- “Foi mãe, que bateu a caçoleta!”
E continuou trabalhando. Foi preciso o Luís quase expulsá-lo, para cuidar do enterro da mãe. Só queria ir quando terminasse a tarefa, pois não deixava nada por acabar.

O VIGIA

Quando o Luís viajava, sempre deixava alguém cuidando da casa. Tinha preferência pelo Sr. Vicente, que era extremamente forte. Tinha uns braços que pareciam os do Popeye. Fora o maior acabador de “samba” nas redondezas do Crato. Armado de um cacete, punha todos pra correr, por puro prazer. Em certa ocasião, perdeu o cacete e passou a mão numa tramela de uma “jinela” e saiu derrubando negro a torto e a direito. Quando, por problemas de doença, o Sr. Vicente não pode mais ficar vigiando a casa, sugeriu o Sr. Raimundo. Foi nessa ocasião que o Luís ficou sabendo do quanto aquele homem baixinho era valente. Quando duvidou do Sr. Raimundo, o Sr. Vicente falou:
- “O que, seu Luis?!?! Este homem é uma cobra de valente. Uma vez um valentão quis dar uma surra no Sr. Raimundo. Ele estava com uma enxada na mão. Aí plantou a enxada no chão, se apoiou no cabo e deu um salto pra frente. Seu Luís, quando ele plantou os pés no chão, já foi girando a enxada no rumo do valentão, e quase que corta o pé dele no meio. Já vi um valentão correr com medo. Pode confiar no homem!”.
Foi assim o primeiro contato com o Sr. Raimundo. Ao mostrar a espingarda, ainda desconfiado, disse:
- “Sr. Raimundo o senhor tome cuidado que o ladrão pode vir com outro. Aí o senhor vai atrás dele e o outro lhe pega pelas costas!”.
- “Não Sr. Luís. Eu primeiro “assunto”, “assunto”, “assunto”. Quando eu sair de dentro de casa já é mandando bala neles!!!”

O DENTISTA

No final da década de sessenta o Governo do Estado, em convênio com um Órgão do Governo Federal, mantinha um caminhão furgão, adaptado para um consultório dentário, com a missão específica de extrair dentes da população carente. Numa determinada época fez ponto na vila do Lameiro, em frente à igrejinha. Passou a distribuir senhas para os interessados no atendimento, a ser iniciado no dia seguinte.
O Sr. Raimundo foi pedir a opinião do Luís:
- “Sr. Luis, estes ‘doutor’ que vem aí ‘distraindo’ os dentes podres da gente, sem cobrar nada, não dá pra gente ficar meio desconfiado?”
- “Mas desconfiado de que, Sr. Raimundo?”
- “É, eu vou primeiro, depois mando a família.”
O Luís percebeu que o Sr. Raimundo voltou muito rápido. Então, perguntou:
- “E aí, Seu Raimundo, já foi atendido? Foi rápido, hein?”
O Sr. Raimundo contou que, de posse da ficha, se dirigiu para o furgão. Tinham somente quatro na frente dele. O primeiro que foi ele ouviu um ‘Ai!’ e em seguida o barulho do dente caindo na bacia: ‘Trim’... Logo em seguida dois ‘Ais” e dois: ‘trim... trim’... E o serviço era ligeiro demais. Era só: “Ai, ai, ai” e trim... trim... trim... Ai, ai e trim... trim. Então, ele falou:
- “Ai, seu Luís, eu me manquei. Égua, eu vou é pra casa. Os ‘doutor’ aí ‘distraindo’ os dentes do povo só pode é tá ‘trabaiando’ de ‘impeleita’”.

A TRAIÇÃO

O Sr. Raimundo tinha um pequeno terreno onde plantava uma rocinha em sociedade com um amigo, chamado Zé de Mãe. Pouco tempo depois, o Zé de Mãe passou a morar na casa do Sr. Raimundo. Logo começaram a surgir conversas maledicentes entre Zé de Mãe e Tetê, a esposa do Sr. Raimundo.
O Luís não entendeu, principalmente sabendo da valentia do Sr. Raimundo. Um dia, não se contendo, foi esclarecer o fato:
- “Sr. Raimundo, que negócio é este? Estão dizendo aí que Zé de Mãe dorme lá na sua casa, rapaz?”
- “É, dorme né, porque ele tem que sair cedo. A gente sai cedo pro trabalho. Ele dorme lá em casa mesmo.”
- “E mesmo quando você não está em casa?”
Ele confirmou, e o Luís insistiu:
- “Mas estão falando coisa ruim”.
E o Sr. Raimundo, com a maior tranqüilidade:
- “É, né Seu Luís, dizem que ele ‘tá’ comendo Tetê. Mas quando ele ‘tá’ comendo Tetê, eu ‘tô’ comendo a ‘muié’ dele, que é muito ‘mió’ do que a minha!”

O JACÁ

Outra habilidade do Sr. Raimundo, muito apreciada pelo alemão, era a de fazer jacá (cesto feito com o talo da folha do coqueiro). O alemão passou a visitar a casa do Sr. Raimundo, para aprender com as filhas dele a fazer jacá. Um dia, o Luís resolveu prevenir o amigo:
- “Sr. Raimundo, para que diabo esse alemão quer jacá?”
- “Ele bota estrume dentro e planta umas coisas. E agora está querendo aprender a fazer com as minhas filhas”.

E o Luís, metendo fogo na conversa:
- “Sr. Raimundo, tenha cuidado. Zé de Mãe já passou Tetê nos peitos. Vai ver esse alemão quer é passar tuas filhas nos peitos!!!”
- “Quer não, seu Luís, que elas são feias demais!!!”

CARREGO

O Sr. Raimundo era muito desconfiado e cheio de opinião. Em uma época de campanha política, um candidato apareceu pelo Lameiro distribuindo camisas com a propaganda dele. E o Luís perguntou para o Sr. Raimundo:
- “E ai, Sr. Raimundo, recebeu camisa para o senhor e para a família toda?”
- “Não, seu Luís!”
- “Por que, Sr. Raimundo?”
- “Não, seu Luís. Estão querendo é fazer carrego deu! Quero não! Prefiro “é” minhas camisinhas rasgadas, de pobre mesmo!”

O OSSO

Sr. Vicente conhecia todas as estórias dos antigos donos de engenho. Quando era época de moagem, o engenho rodava 24 horas. O pessoal da noite sempre tinha uma merenda especial. O trabalho era muito pesado, principalmente o de alimentar as fornalhas com bagaço de cana. Em um dos engenhos, o proprietário distribuía a alimentação e, com sua voz grossa, dizia:
- “Meu tratamento aqui é outro. Não é como o dos outros engenhos, não. Vão comendo, vão comendo. Podem botar mais feijão. Botem mais arroz. Podem comer! Aqui é farto! Agora o bom tá lá embaixo! O bom tá lá embaixo. Mas comam!”
Então, o Sr. Vicente dizia:
- “Mas Seu Luís, ficava todo mundo pensando o que era de tão bom que tinha lá embaixo. Quando chegavam lá embaixo, o que tinha era um osso, sem um ‘tiquim’ de carne!!!”

O REMÉDIO

O Sr. Vicente começou a reclamar de uma dor. Ele era cardíaco. O Luís recomendou-lhe que fosse a um médico. Ele disse que não era nada, que já tinha ido a uma curandeira. E o Luís perguntou:
- “Qual é o remédio que o senhor toma?”
- “Sr. Luís, se eu disser o senhor vai rir de mim. Toda semana eu tomo uma colher de querosene”.

VELHO MENTIROSO

O Sr. Vicente, além da fama de ser o destruidor de “sambas”, tinha por função acordar o Lameiro, às quatro horas da manhã. A mando de um dos donos de engenho, se aboletava no galho de uma árvore, numa curva da estrada do Lameiro. Dali ele começava a urrar, à toda altura, igual ao Tarzan. Era o horário que os trabalhadores tinham que ir para o serviço, nos engenhos.
Essas estórias do Sr. Vicente eram contadas em conversas, na casa do Luís. Um dia ele falou:
- “Seu Luís eu acho que toda vez que saio da sua casa o senhor deve dizer: ‘ô velho mentiroso!”

A RAÇA

Quando o Luís morava na bela casa do Lameiro, localizada entre a pista e a cascata, teve a oportunidade de conhecer pessoas bem interessantes. Ou, quem sabe, a capacidade de percebê-las... Dona Vânia é uma personagem do livro “O Tempo e o Vento”, de Érico Veríssimo. Mas parece que ele se inspirou na Dona Enedina, lá do Crato. Todas às tardes a Dona Enedina, bem magrinha, sempre de ruge nas faces (lembrando a Dona Naná, personagem do Jô Soares), passava em frente da casa do Luís para tomar banho na cascata e o via aguando as plantas. Trocavam sempre um dedinho de prosa. E, como a personagem do Érico, falava um português clássico, bem pronunciado, com alguns exageros, é verdade, falando sempre no plural:
- “Boas Tardes! Como vamos, Senhor Luís?”
- Boas Tardes. Vamos bem, Dona Enedina!”
- “Hoje quase que eu não lhe percebo, por trás desses seus arbustos!”
- “É, Dona Enedina, estas papoulas têm que ser aguadas todos os dias, pois o terreno é muito seco”.
- “É, nós sabemos. Este terreno é muito seco. A parte mais úmida é aquela de lá”.
Quando aprendeu o nome da esposa do Luís e soube que as filhas dele moravam fora, passou a acrescentar nos cumprimentos:
- “Como vamos a Dona Margarida? Como vamos os seus familiares ausentes?”
Quando saia, sempre dizia:
- “Assim Deus seja servido”.
Como vizinho à cascata tinha uma bodega, o Luís passou a desconfiar que ela fosse tomar um trago. Mas não. Ela voltava com a roupa molhada, mas sem nenhum sinal de bebida. E o costumeiro cumprimento:
- “Senhor Luís, se Deus for servido, amanhã nos veremos novamente. Você aí tratando de suas lindas papoulas e amanhã, se não chover, nós nos veremos novamente!”
Certo dia o Luís foi bater um papo com o Wilson, dono de uma bodega na beira da pista. Lá se encontrou com a Dona Enedina, e ela:
- “Senhor Luís!!! Bons dias! O senhor por aqui! Hoje saiu um pouco de casa para tomar ares!
- “É, sempre venho conversar um pouco com o Wilson e ouvir os pássaros dele”.
- “Ah, os pássaros do Senhor Wilson têm cantos lindos e sonoros!”
O Luís perguntou para onde ela ia. Explicou que ia para a missa de sétimo dia do irmão de uma vizinha. Ele trabalhava em São Paulo, numa fazenda de criação de porcos de raça. Fazendo a limpeza da pocilga, um porco atacou-lhe “nas partes”, arrancou e o pobre morreu, esvaindo-se em sangue. O Luís comentou:
- “Mas Dona Enedina, então não era um porco, devia ser uma porca, para atacar nas partes dele”.
- “Não, Senhor Luís, eles só criam porcos machos”.
- “Então devia ser um porco gay”.
- “Pronto, é essa raça aí mesmo que o senhor falou”.

A VOZ DO ALTO

A Dona Enedina tinha um neto que era soldado da polícia e não valia nada. Tratava-a muito mal, chegando até a bater nela. Mas, apesar disso, ela fazia tudo para agradá-lo. Todas às vezes que ia tomar o banho na cascata, levava um vidrinho no bolso do vestido, para por a cachaça que comprava para o neto. Como o terreno do Luís era cheio de fruteiras, vez ou outra, pedia à Margarida para apanhar alguns umbus, pensando no tira-gosto do neto. Certa vez a Margarida autorizou-a a apanhar os umbus e foi procurar uma sacola, para ela poder levar as frutas. Quando chegou no quintal, não encontrou mais a Dona Enedina e começou a chamá-la pelo nome. Ao ouvir uma voz vinda do alto, a Margarida levantou a cabeça e percebeu a velha senhora trepada no olho do umbuzeiro, colhendo umbus...

OS PNEUS

Pouco antes da casa do Luís, no Lameiro, tinha um riacho chamado “Riacho do Padre Frederico”. Esse riacho passava numa chácara onde o padre produzira frutas e hortaliças, para os seus programas sociais. Quando o Luís passava com seu carro pelo riacho, molhava os pneus, que iam acumulando terra. Ao estacionar em casa, os pneus estavam sujos de areia. Tinha uma empregada, muito prestimosa, que sempre chegava para o Luís e perguntava:
- “Sr. Luís, eu posso lavar as pernas do carro?”

OS MARAVÁS

Essa mesma empregada prestimosa chegou um dia e, revoltada, falou para o Luís:
- “Seu Luís eu escutei hoje na ‘rádia’ que botaram o tal de Presidente ‘Cola’ pra fora! Eu só ouvia falar o povo se queixando de que uns tal de ‘maravás’ estavam matando o povo pobre de fome. Era queixa de todo lado. Agora eu lá sabia o que era esses ‘maravás!’. Mas hoje pelo que eu ouvi na ‘rádia’, ‘maravás’, seu Luís, era o próprio ‘Cola”! Ele e o pessoal ‘dum gunverno’ dele é que vinham roubando de nós!!!”

FUMAR?

Um dos amigos do Luís, o João Vieira, morava na pequena vila do Lameiro. Muito católico, não perdia uma missa na igrejinha. Um dia, na capelinha, enquanto aguardava o início da missa, um matuto que estava ao seu lado resolveu acender um cigarro de palha, dos brabos. Então o João Vieira se virou para o matuto e o recriminou:
- “Homem, isso aqui é lá lugar para acender cigarro”
O matuto, com o cigarro numa mão e a caixa de fósforos na outra, olhou bem espantado para o João Vieira e perguntou, tremendo a voz:
- “E aqui tem ‘poiva’?”

X – FLAMENGO

Na década de cinqüenta o futebol já era uma grande paixão no Crato. E esta paixão era difundida através das transmissões radiofônicas das emissoras do Rio de Janeiro. O Ary Barroso, com toda a sua fama, era responsável pela grande simpatia pelo Flamengo. Ficou famosa a gaita que ele tocava após os gols, e a total parcialidade pelo Flamengo.


Ary Barroso caricaturado por Nelson Capené, como locutor e
com a camisa do Flamengo.
Todas acompanhavam os clubes do Rio. As preferências se dividiam: a maioria era flamenguista e o restante contra o Flamengo, da qual a maior parcela, era de torcedor vascaíno. A cidade tinha dois torcedores do América e um do Bangu. Nas conversas, sempre se discutia futebol. Ninguém acompanhava o futebol dos outros estados. Nem de Fortaleza. Nas segundas, o resultado dos jogos do Rio eram dissecados. Acusações a juizes ladrões já ocorriam. Meu pai e o Almir eram os torcedores símbolos do Flamengo. Cresci numa família flamenguista, apesar do time do Vasco ser o melhor. Tenho boas recordações dessa época. A primeira vitória do Flamengo sobre o Vasco, depois de sete anos, foi em 16/9/1951: Flamengo 2 x 1. Gols de Adãozinho e Índio. Lembro-me da “invasão” da nossa casa, pelos funcionários da Rádio Araripe, comandados pelo Wilson Machado e o Zé Porrada:
- “Mourãozinho, ganhamos!!!!”
Era tanta gente pulando, se abraçando que quebraram uma cadeira da sala de jantar. Passava-se, então, a aguardar ansiosamente pelo “Jornal da Atlântida” que abria as sessões de cinema antes dos filmes, no cine da Rádio Araripe. Era a ocasião de assistirmos aos lances dos gols. Eram os “vídeos tapes” da época. Recordo-me da passeata pela cidade, com bandeiras e tudo, da torcida do Flamengo, pelo título de Campeão Carioca de 1953, conquistado em 20 de janeiro de 1954. O primeiro título ninguém esquece!
No dia 30 de junho de 1953 estava voltando da Maternidade onde fora conhecer o meu irmão caçula, o Mendelssohn. Pela calçada oposta vinha, em sentido contrário, um rapaz. Não sabia o nome, mas tinha a certeza de que era torcedor vascaíno. Levantou a mão e saudou:
- “Nasceu mais outro flamenguista, hein?”
Maternidade do Hospital São Francisco.

A DECISÃO

A característica principal do Almir era ser torcedor fanático do Flamengo. Na sua alfaiataria bodega tinha um símbolo do Flamengo em tudo. Um outro aspecto curioso da sua personalidade, este meio mórbido, consistia em comparecer a todos os enterros. Estava sempre bem informado sobre os falecimentos do dia, dando preferência aos das pessoas mais humildes. Tinha sempre um terno preto de plantão, para essas ocasiões. Ficou tão tradicional, que muitos iam para o enterro apostando para quem via o Almir primeiro.
Escolhido o enterro, dirigia-se para o cemitério e ficava aguardando a chegada do féretro. Assistia sempre de certa distância, não acompanhando até o local do túmulo. Teve um dia que coincidiu ocorrerem dois enterros, um após o outro. Concluído o primeiro, ficou aguardando a chegada do segundo, numa esquina próxima do cemitério, de braços cruzados, com seu famoso terno preto. Aproximou-se dele um conhecido. Não tendo muito o que conversar, fez aquela pergunta óbvia:
- “Almir, Dona Maria faleceu?”.
- “Se ela faleceu, eu não sei. Mas que a família está decidida a enterrar, isto está.”

O PLANTÃO

Sempre ouvi contar sobre o senso de honestidade dos suíços. Numa banca de jornal, eles escolhem o jornal, pagam, tiram o troco, se necessário, sem o dono da banca estar presente. Quando estive em Genebra pude comprovar, e comentei com meus companheiros de viagem:
- “Para mim isto não é nenhuma novidade. Na minha cidade, no Crato, na alfaiataria/bodega do Almir isto acontece”.

Almir, um torcedor símbolo do Flamengo.
O Almir tem uma alfaiataria, à qual agregou uma pequena mercearia, cujo produto principal e quase exclusivo é a cachaça. Tornou-se um ponto de reunião dos amigos, principalmente funcionários do Banco do Brasil. Alguns iam para beber um trago ou simplesmente bater papo, no final do expediente. Ali, o assunto principal era o futebol e, quase sempre o Flamengo. Quando chegava a hora do jantar, o Almir, simplesmente, dizia que ia jantar e saia. Deixava a bodega entregue aos amigos. E eles continuavam bebendo, medindo corretamente os tragos, pagando e passando o troco. O dinheiro ficava numa gaveta velha. Ao voltar, continuava no trabalho de alfaiate e nem queria saber sobre o “caixa”.
Um dia o Almir comentou que estava querendo colocar uma porta de aço, de enrolar, no estabelecimento dele. Pintar uma banda de preto e a outra de vermelho, as cores do Flamengo. Mas estava faltando o dinheiro. E os amigos, indiferente aos times que torciam, não titubearam:
- “Não, por isso não, Almir. Nós fazemos uma cota e você instala estas portas”.
E assim foi feito. Mas, quando foi para executar o serviço, o estabelecimento tinha que ficar uma noite sem porta. Os amigos resolveram de maneira muito simples:
- “Pode deixar, Almir, nós ficamos aqui de plantão”.
O Almir foi para casa dormir e os amigos ficaram a noite inteira bebendo, cuidando do estabelecimento e fiscalizando o serviço. E o mais importante, pagando religiosamente todos os tragos. Na manhã seguinte, ao chegar, o único comentário que o Almir fez para os bêbados foi:
- “E aí, o apurado foi bom?”
- “Taí na gaveta, pode conferir”.

O SÓCIO

O Luís, no período em que morou no Rio de Janeiro, trabalhou numa empresa que vendia material esportivo, a Superbol. O dono era dirigente do Flamengo e por isso, outros dirigentes, como também jogadores, estavam sempre visitando a loja. O Luís fez grande amizade com todos eles, principalmente, por ser também flamenguista. Quando voltou para o Crato, deixou o endereço e o convite para que o visitassem.
Um filho de um dirigente do Flamengo ia casar com uma moça de Santana do Cariri. O pai do rapaz resolveu conhecer a família da futura nora. Quando soube que passaria pelo Crato, o pessoal da Superbol aconselhou-o a procurar o Luís. E assim foi feito. A primeira providência do Luís foi levá-lo para conhecer o maior torcedor do Flamengo, o Almir.
O dirigente ficou vivamente impressionado. Tudo, na alfaiataria/bodega tinha o símbolo do Flamengo. As portas, as garrafas de cachaça, o ferro de passar, o dedal. Quadros e mais quadros de times campeões, bandeiras do Flamengo etc. Porém o que mais impressionou foi o profundo conhecimento da história do clube. Partidas memoráveis, jogadores famosos, gols inesquecíveis. Conversaram sobre o Flamengo 1 x Vasco 0 que deu o título de tri-campeão de 42/43/44. O detalhe do gol do Valido (argentino), no último minuto. E o Almir dizia:
- “E ainda foi de mão!!!”
O dirigente se derreteu de admiração pelo Almir, prometendo mandar, o que efetivamente o fez, uma camisa do Flamengo, que era guardada como relíquia e somente os dirigentes possuíam. A camisa foi encomendada e veio com um defeito de fábrica - tinha uma listra a menos – Por isso recolhida, mas ficou como uma raridade, de posse apenas dos dirigentes, e agora do Almir.
Na saída, encantado com a simpatia e simplicidade do Almir, teve o mesmo sentimento dos amigos das rodadas de cachaça da bodega. Perguntou-lhe porque não era sócio do Flamengo. Alegou a dificuldade da distância, como também os recursos. O dirigente, prontamente afirmou:
- “Por isso não, Almir. A partir de agora pode se considerar sócio do Flamengo, às minhas custas”.

O CANSAÇO

Morei muitos anos em Brasília. Durante uma época coordenei uma equipe que dava consultoria a um projeto do Banco Mundial com o Ministério do Interior. Como Crato foi beneficiado com esse projeto, voltei à minha cidade a trabalho. Fui com um colega, Gabriel Santos de Andrade, mineiro e torcedor do Fluminense. No primeiro momento de folga levei o Gabriel para conhecer o Almir, de quem já havia falado.
Chegando na alfaiataria/bodega, me apresentei como filho do Mourãozinho, outro grande torcedor do Flamengo. De imediato, perguntou se papai ainda ouvia os jogos com quartinha d’água ao lado. Era o início da década de 80, quando o Flamengo de Zico ganhava tudo. Tinha sido, num espaço de duas semanas, campeão da Taça Rio, em seguida campeão carioca, logo após campeão da Libertadores e preparava-se para ser campeão do mundo. Quando eu perguntei sobre o Flamengo, o Almir saiu-se com essa:
- “Não agüento mais. Não consigo nem ficar bom de um porre e já tenho que beber de novo para outro título. Estou cansado de ser campeão!”.

UMA VEZ FLAMENGO, FLAMENGO ATÉ MORRER.

Meu pai foi um torcedor símbolo do rubro-negro carioca. Seguiu, literalmente, o lema: “Uma Vez Flamengo, Flamengo Até Morrer”.
Foi uma paixão iniciada com o time campeão de 1939, onde brilhavam Leônidas da Silva, Domingos da Guia e já se iniciava o genial Zizinho. A paixão sedimentou-se com o tri campeonato de 1942/1943/1944. Até o final da vida lembrava-se do time tri-campeão em cima do Vasco: Jurandir, Newton e Quirino; Biguá, Bria e Jaime; Valido, Zizinho, Pirilo, Tião e Vevé. Não cansava de repetir os detalhes do gol do Valido, o do tri, no último minuto. Deliciava-se com o “choro” dos vascaínos, dizendo que o gol fora ilegal, pois o Valido se apoiara nas costas de um defensor do Vasco. Ele completava: “E ainda foi de mão”. Para ele deve ter sido o gol do século.
No Crato, onde residiu de 1937 a 1955, era o torcedor mais famoso. Ainda hoje, os da sua época associam o nome Mourãozinho com o hábito de “assistir” aos jogos sentado numa cadeira de balanço de tucum, de frente para um rádio holandês e com uma quartinha cheia d’água ao lado, com um copo de alumínio tampando a quartinha. Os seguidos copos d’água acalmavam o seu nervosismo nas transmissões do outro fanático, Ary Barroso. Quando faltava energia ligava para “Seu Zé” (José Pereira, empregado do Armazém onde trabalhava) para ir falar com o “Pedro da Luz” para saber qual era o problema. Quando o “Seu Zé” dizia:
- “Mourãozinho o problema é no gerador e vai demorar”
Corria para improvisar uma bateria de carro, para ouvir o jogo do Flamengo.
Para ele todo juiz prejudicava o Flamengo. Nunca perguntava o nome do juiz e sim:
- “Quem é o ladrão?”.
A morte do grande presidente Gilberto Cardoso abalou-o, como se tivesse perdido um irmão querido. Uma derrota do Flamengo o deixava de muito mau humor.
Esta paixão rubro-negra transmitiu para os cinco filhos e daí para os netos e bisnetos. Sem dúvidas, será uma tradição que se perpetuará.
Presidente Gilberto Cardoso

Este é o time da final de 1944. Da esquerda para a direita: Jurandir, Quirino, Newton,Valido, Jaime, Bria, Pirilo, Zizinho, Tião, Biguá e Vevé

Identicamente, nos orientou que time torcer nos outros estados. Sempre tinha alguma relação com o Flamengo. Em São Paulo era o São Paulo, porque jogava o ídolo Leônidas. Em Porto Alegre era o Internacional, pois de lá vieram dois jogadores flamenguistas: Luizinho e Bodinho. Quando fui morar em Porto Alegre já tinha o Internacional para torcer. Lá morava o Marcelo, com a camisa do colorado e transmitindo a paixão para o filho Tiago. Em Minas, o Atlético, pela mesma razão de ter vindo o jogador Lero. Em Recife o Sport, devido à semelhança da camisa, e assim por diante. Em Fortaleza, a analogia era com o fato de ser o Ceará o “mais querido do Estado”, e devido aos ídolos Pipiu e Mitotônio.
Tal paixão flamenguista não ficava impune perante os grandes rivais: os torcedores vascaínos. Uma derrota do Flamengo e o telefone da nossa casa (24.14, de veio), não parava de chamar. Até torcedores do Flamengo ligavam. E era comum, pois o Vasco era o grande time no final da década de 40 e início da de 50.
Quando passamos a morar em Fortaleza (1956), já tínhamos um time para torcer: o Ceará. O Mendelssohn é o que tem maior paixão pelo Ceará. Num fim de semana veste a camisa do Flamengo e no outro, a do Ceará.
No final da vida papai assistiu, agora pela televisão, a conquista do tri-campeonato de 1999/2000/2001. Como era de praxe, na segunda-feira, fui à sua casa com os jornais, relatando a conquista, e levando um pôster. Mostrei para ele, mas não vi uma reação maior, como era comum.
A ateroesclerose senil estava embotando o seu cérebro. Mas, vez ou outra, ele nos surpreendia com um comentário próprio de quem estava na plenitude de sua consciência. Como o Ceará estava atravessando um período muito ruim, saiu-se com a seguinte frase, quando indagado sobre o Ceará.
- “Tanto apanha como dão nele”.
Pouco antes de falecer esteve um período no hospital. Ficou uns dias em apartamento, outro tanto na UTI e recebeu alta, para, menos de um mês depois falecer, em casa.
Em um dos dias em que se encontrava no Hospital, antes de ir para a UTI, tinha a companhia do Marcelo e do Mendelssohn. Estava repetindo uma frase, o que era próprio da doença. O Mendelssohn tentou indagar sobre o que era e ele continuava a repetí-la, mecanicamente. O Marcelo - que é médico - utilizou a técnica de fazer uma pergunta para ele esquecer aquela frase. Então, perguntou:
- “Papai, e o Ceará?”.
- “Tanto apanha como dão nele”.
O Mendelssohn, que estava ao seu lado, resolveu fazer uma brincadeira:
- “Papai, o seu Flamengo está do mesmo jeito. Tanto apanha como dão nele”.
A sua reação foi imediata. Estava com o olhar fixo para o teto do apartamento. Meneou a cabeça para o lado onde estava o Mendelssohn. Deu aquela “encarada”, abriu bem os seus olhos verdes, levantou mais a sobrancelha esquerda e disse, com um sorriso nos lábios e bem compassado:
- “É... mas é tri cam-pe-ão ca-ri-o-ca”.
Nada mais disse e nem precisava. Caso estivesse um pouco mais lúcido teria completado: “E em cima do Vasco!!!”
Realmente, seguiu o lema que tanto repetiu: “Uma Vez Flamengo, Flamengo até Morrer”.

16 DE JULHO DE 1950

Esta rivalidade Flamengo x Vasco deixou-nos na memória o seguinte fato: Domingo, 16 de julho de 1950. Papai de terno de linho branco, mamãe (sua eterna Giseuda), muito elegante, ambos conduzindo três filhos (Yara, Raimundo e eu), para a missa das nove horas na Igreja de São Vicente. O Marcelo ficara com a babá e o Mendelssohn ainda não havia nascido. Naquele dia, no Rio de Janeiro, se decidia o IV Campeonato Mundial de Futebol.
Cartaz da Copa do Mundo de 1950
Ao chegarmos na calçada da igreja, uns três ou quatro vascaínos que aguardavam o início da missa na borda da Praça 3 de Maio, em frente à porta principal da Igreja, gritaram:
- “Mourãozinho, Mourãozinho, hoje nós, nós (e apontavam para eles) vamos ser campeões do mundo!!!”
Papai percebeu a ironia e não titubeou e respondeu:
- “Vocês? Vocês vão jogar é com o Uruguai!!!”.
O Vasco tinha oito jogadores na seleção, sendo cinco titulares e toda a Comissão Técnica era vascaína. Daí desejarem reivindicar a conquista só para eles. Ao final da tarde, no Maracanã, aconteceu o desastre perante 200 mil pessoas.

Maior público, em todos os tempos, para uma partida de futebol.
O Raimundo lembrava que eu preenchi a tabela com o resultado e escrevi Uruguai no espaço de Campeão do Mundo. Uma lágrima borrou o nome. Como era de praxe aos domingos, toda a família encaminhou-se para a Praça Siqueira Campos, local obrigatório de encontro da sociedade cratense e do “footing” dos jovens dando voltas e mais voltas na praça. Havia uma estranha cor cinza no ar, o enorme silêncio da cidade com a tristeza de todos, como a de um velório. E era mesmo. Exatos 57 anos depois esse ambiente de tristeza se repetiu. Era a missa de sétimo dia de falecimento do meu irmão Raimundo. Meu pai, naquele dia de 1950, no seu íntimo, estava satisfeito pela decepção dos vascaínos por não poderem se vangloriar do título de campeão. Na verdade, estavam iniciando a sua tradição de vice-campeão e o nome de Vice da Gama. Mas ficou, como todos os brasileiros, traumatizado com a derrota. Vinte anos depois, na Copa de 70, com a nossa vitória de 3 x 1 sobre o Uruguai pôde desabafar, ao final do jogo, exclamando diante da televisão:
Igreja de São Vicente. Em frente à porta principal, na calçada da praça, ficavam os vascaínos.

- “Hoje, vocês (os uruguaios) jogaram contra o Brasil!!!”. Quer dizer, não foi contra o Vasco...

XI – MINHAS LEMBRANÇAS

Estou longe de ter a memória privilegiada do Luís. Por outro lado, morei no Crato até os 12 anos. Mas alinhavei algumas lembranças e outras dos meus pais e irmãos.
A minha primeira lembrança de banho na Nascente foi em 1947. O meu tio Genésio estava de férias em Crato. No ano seguinte formou-se em Engenheiro Civil e de Minas, na cidade de Ouro Preto. Fomos fazer um passeio à Nascente e, no caminho, ele parou o veículo e foi analisar o solo onde passava um pequeno riacho. Como eu ouvia chamá-lo de “doutor”, pensava que ele era médico. Ao vê-lo apalpando o solo, perguntei para a minha mãe:
- “Ele está receitando a terra?”
Ali nasceu minha vocação para Engenheiro. Insisti tanto que meu pai acabou me dando um chapéu “de engenheiro”, igual ao dele. Tenho uma foto, tirada no estúdio do Sr. Júlio Saraiva, com este chapéu. É a minha foto de formatura, pois vinte e um anos depois, a Ditadura Militar, com o sinistro AI-5, impediu a colação de grau e a minha foto recebendo o diploma...


Vinte e um anos separam estas fotos. Em 1947: o projeto de Engenheiro. Em 1968: o Engenheiro. A foto, na Aba Film, a ditadura não proibiu.

OS GÊMEOS

Quando morei na Praça Francisco Sá, nº 26, o vizinho da esquerda era o Sr. Mário Teixeira com a esposa, Dona Maria. Tinham vários filhos Dentre eles os gêmeos idênticos Ronaldo e José Alfredo. A Dona Maria, sempre às três horas da tarde servia uma merenda aos filhos.
Os meninos geralmente ficavam brincando na própria Praça. Um certo dia, Dona Maria chegou à porta e gritou:
- “Merenda!”
O Ronaldo, que era o mais esperto dos gêmeos, correu pra dentro de casa para merendar. O José Alfredo continuou brincando. O Ronaldo chegou e disse:
- “Mamãe, minha merenda”.
- “Quem é você?”
- “Eu sou o Ronaldo, Mamãe”.
Merendou apressado e voltou para a praça. Só que, ao chegar na calçada, deu meia volta e, novamente diante da mãe, pediu a merenda. A Dona Maria serviu-lhe, pensando que era o José Alfredo.
Passado algum tempo, o José Alfredo lembrou-se da merenda e correu para casa. Chegou junto da mesa e pediu:
- “Mamãe, minha merenda”.
A mãe, pensando que era o Ronaldo fazendo se passar pelo José Alfredo, pegou-lhe pelo braço e mandou-lhe a chinela. O Zé Alfredo dizia:
- “Mamãe, eu sou o ‘Safredo’.”
E a pisa comendo. E ela:
- “Você é o Ronaldo. Quer me enganar, não é?”.
- “Mamãe, eu sou o ‘Safredo’”.
E a pisa comendo...

DENTE INDISCRETO

Se existe um trauma do qual nunca consegui me recuperar foi o do tratamento de dentes com aquele aparelho de obturação movido a pedal. Que tortura! Não consigo, até hoje, nem falar em dentista. Estando numa roda, se o assunto descamba para tratamento dentário eu vou saindo de fininho, só retornando quando a conversa volta a ser civilizada. Até para escrever este texto, fico arrepiado. O torturador era o dentista da família, muito amigo de papai. Estava sempre rindo. Mas acho que aquela tortura não ficou impune.
Certo dia extrai um dente. A recomendação era guardar repouso até o outro dia. Ao invés de correr na rua ou jogar futebol resolvi brincar de baralho, jogando uma partida de ‘batalha’ com um amigo. Comecei a sentir uma coisa estranha na boca. Fui à pia cuspir e saiu muito sangue. E não parava. Estava com uma hemorragia. Papai, apavorado como era, tratou de localizar o dentista. Ligou para todos os locais em que ele poderia estar e nada de achá-lo. A esposa dele também entrou na busca. Os amigos comuns, também. Até que um deles o encontrou na ‘Glorinha’. Ele curou a minha hemorragia, mas não sei se curou a raiva da esposa, devido àquele dente indiscreto...

SÓ DEU ISSO?

Os médicos, antigamente, eram os chamados ‘médicos de família’. Acompanhavam o desenvolvimento da família toda. Raramente ia-se ao consultório. Eles é que visitavam as residências. Toda casa tinha a bacia do médico, a toalha do médico, o sabonete do médico. Se tiver alguém que usou desse direito foi papai. Um filho não podia dar um espirro e ele já estava ligando para o médico. Acredito que deva ter ficado ainda mais preocupado quando perdeu o primeiro filho a nascer no Crato, o Geraldo. Foi apresentar o filho à mãe, em Crateús, e lá a criança morreu. Foi um trauma do qual papai e mamãe nunca se recuperaram. Não comentavam nada sobre este fato para nós. Eu fui o primeiro a nascer após este drama. O nosso médico era o Dr. Macário, que acompanhou passo a passo o meu crescimento que, aliás, quase não houve. Herdei a altura dos Aráujos e não a dos Mourões. Os outros irmãos são altos e eu sou o baixinho da família. E também, sempre fui de compleição magra. Nunca passei dos cinqüenta quilos.
Estava uma época construindo no Crato, quando encontrei o Dr. Macário. Alguém disse: “Este é o Roberto, filho do Mourãozinho e da Giseuda”. Olhou-me de “baixo” a baixo e disse:
- “Espere, e só deu isso?”
- “O culpado foi o senhor, Doutor, que era o meu médico!!”

Dr. Macário o “meu” médico. Ao lado, a minha irmã Yara.

E A COCA?

O meu irmão Marcelo Mourão é cinco anos mais novo do que eu. Foi o protótipo do menino levado, danado, terrível, traquina. Tudo o que tiver de adjetivo para qualificá-lo como terrível, ajusta-se a ele. Quando se juntava com o Querginaldo, filho do Dr. Aloísio Cavalcante (morava quatro casas depois da nossa), não tinha quem suportasse. O Zé Porrada, coitado, sofreu muito nas mãos deles. Todos os funcionários da Rádio Araripe já os conheciam como autênticos pimentinhas.
Em frente à minha casa existia um pequeno bar, chamado Quitandinha, por sugestão do meu pai. Todos esses artistas famosos do Rio, nas horas de folga, geralmente iam até lá beber um refrigerante ou tomar um café. Um dia estava o Vicente Celestino conversando despreocupadamente com o Wilson Machado. Ele resolveu tomar uma coca-cola no Quitandinha. Comprou a coca naquela garrafa pequena, americana, de vidro de cor esverdeada. Colocou o canudo. Como a conversa estava muito boa, pôs os braços para trás, e ficou segurando a garrafa de Coca-Cola. Nisso o Marcelo chegou, sorrateiramente, e sugou a coca inteira. Saiu de fininho e ficou encostado na porta lá de casa, com a cara mais sonsa do mundo. Quando o Vicente Celestino levou a Coca à boca para beber, exclamou:
- “A coca sumiu!!!”

Vicente Celestino
O Wilson Machado, quando viu o Marcelo na porta lá de casa, foi logo esclarecendo:
- “Foi o Marcelo que bebeu sua Coca!”
Ele só fez dar meia volta e correr para dentro de casa!

Wilson Machado, quando vereador em Crato, em 1950. Era o autor das crônicas diárias na Amplificadora Cratense. O programa era “Folias Cratenses”. Tornou-se Diretor da Rádio Araripe e posteriormente foi para a rádio e TV em Fortaleza. Em Fortaleza no seu programa “Cantinho da Saudade” estava sempre enviando alguma mensagem para o meu pai, seu grande amigo a quem o chamava de Mourãozinho. Amizade selada com o amor comum ao Flamengo. Conhecia bem as artimanhas do meu irmão Marcelo.

GATO ARTISTA

Na programação diária da Rádio Araripe tinha os programas musicais. Enquanto estava tocando uma música, o locutor ausentava-se do estúdio para tratar de outro assunto qualquer. Nas salas da emissora existiam aparelhos de rádio sintonizados na própria estação. Certo dia, durante um programa do Wilson Machado, estando ele na sua sala quando, ao invés de música, ouviu miados de gatos. Espantado com aquilo, correu para o estúdio. Flagrou o Marcelo e o Querginaldo de posse do microfone, imitando gatos.

O CENSO

Quando o meu irmão Marcelo nasceu, o que hoje é cardiologista em Porto Alegre, mamãe conseguiu uma babá para ele. Tinha o apelido de ‘Véia’. Não sei o porquê do nome, pois era jovem, não tinha nada de velha. Ela se apegou muito à criança, e o Marcelo a ela. Era muito despachada, não tinha papas na língua. Vez ou outra se engalfinhava com a copeira, Alice, que era sua prima. Sobrava sempre para a copeira, pois o meu irmão não podia mais se afastar dela.
Com a idade de um ano, o Marcelo adoeceu, chegando a ser desenganado por um médico. Papai chamou o Dr. Jézer, recém chegado ao Crato, que discordou do parecer do colega. Mudou o tratamento e a criança recuperou-se completamente. Dias depois, a Véia estava dando banho de sol no Marcelo na Praça, quando o médico que o havia desenganado cruzou com ela e perguntou:
A Véia, primeira da esquerda para a direita, com o Marcelo. Ao lado o “chapéu de engenheiro” e eu “debaixo dele”. Minha mãe com uma sombrinha para proteger do sol, o Raimundo de terno, a Yara com suas tranças e uma parenta, Adilce. Foto colhida na entrada do Crato Tênis Clube.

- “De quem é esse menino?”.
- “É do Sr. Mourãozinho e da Dona Giseuda.”
E demonstrando ressentimento com ele, completou:
- “É aquele que o senhor desenganou!”
Em 1950, houve o censo e a Véia foi entrevistada. Quando o pesquisador indagou se ela era solteira ou casada, indignou-se. Ficou em pé, pôs as mãos nas cadeiras, tomou um fôlego e, com o dedo em riste na cara do entrevistador, disse, com os dentes cerrados de raiva:
- “Eu sou é MOOOOÇAAA!!!!”.

A CONTA

Minha irmã Yara não tinha a mesma mania de economizar da nossa parenta, que lhe dava só uma colher de doce de leite. Quando papai dava quinhentos réis para ela, a primeira providência era correr para o quiosque do Sr. Anfrísio, na Praça Francisco Sá, e comprar cocada. Até hoje, segundo ela, não encontrou cocada melhor. Diferentemente do meu irmão Raimundo, que ia depositar no cofrinho de barro que ele tinha. Um dia papai deu-lhe uma quantia maior e ela não teve dúvidas. Convidou todas as amiguinhas e dirigiram-se para a Sorveteria Cairu. Em lá chegando, sentaram-se em torno de uma mesa e pediu sorvete para todas. Papai contava, rindo, que ela ficou em pé e, com um gesto circular do braço, falou para todos ouvirem, inclusive o proprietário:
- “A rodada é toda por minha conta!!!”

Yara e suas coleguinhas da “farra”: Lúcia, Jadeir e Irismar

VEM JÁ RÁPIDO

O Professor Arnaldo Salpeter, o polonês professor de música, era extremamente dedicado com os seus alunos. Procurava incentivar de todas as formas. Sobretudo aqueles que se destacavam mais. Com a minha irmã Yara ele tinha uma predileção toda especial, dizendo ser possuidora de um talento nato. Destacava que tinha dedos de pianista, ou seja, dedos longos. Mas ela, no auge da adolescência, namorar era o seu verdadeiro interesse. Um dia, estava numa aula quando o namorado passou e buzinou o carro. Aquele som ela conhecia mais do que tudo. Pediu licença ao Professor e disse:
- “Eu venho já”.
Só voltou na aula seguinte. O professor comentou:
- “Vem já rápido, hein?”

A FOTO

Fui alfabetizado pela minha mãe. Ela ficava costurando na máquina Singer, de pedal. Intercalava as aulas para ajudá-la, com as mãos, a pedalar. Ficava ao lado dela com uns cubinhos de madeira, nos quais cada um representava uma letra. Depois de aprender o alfabeto, a minha tarefa era misturar os cubinhos e arrumá-los na posição certa, na caixinha, mostrando-o a cada colocação de um cubo. Ainda hoje, quando imagino uma letra do alfabeto, vejo-a naquela mesma posição da minha caixa de cubos...
Máquina que minha mãe ganhou do meu pai no dia do seu aniversário: 7 de agosto de 1940. Nunca deu defeito e até hoje funciona normalmente

Como não existiam revistas infantis, gostava de satisfazer a minha curiosidade com as letras, folheando umas revistas cheias de fotografias, inclusive coloridas. Eram as revistas “Em Guerra”, que papai recebeu durante a IIª Guerra Mundial. Eram publicações de propaganda da causa “aliada”. Ainda hoje lamento o extravio dessas revistas. Só escapou uma, que guardo com o maior zelo. Daí nasceu o meu grande interesse, até hoje, a tudo o que se refira à IIª Guerra.
Ficava horas absorto, folheando aquelas revistas. As fotografias, então, me faziam viajar. Via-me dentro daqueles caças, sobre as nuvens, ou no interior de um tanque de guerra. Mais adiante, numa praia de uma das ilhas do Pacífico, cheia de coqueiros. Percebia os diversos planos de uma fotografia, o que me foi bastante útil, quando universitário, para mentalizar as figuras de Geometria Descritiva e do Desenho Técnico.
Certa ocasião eu exagerei na “viagem”. “Grudei” numa fotografia. Um soldado ferido numa maca, sendo transportado para dentro de um avião por quatro companheiros. Fiquei imaginando a gravidade do ferimento. Se ele escapara, quem eram aqueles colegas. Queria saber o passo seguinte daquele instantâneo. De repente alguém, não sei se o meu irmão Raimundo, percebendo que eu estava há horas “preso” naquela fotografia, perguntou:
- “Por que está tão preocupado com esta foto?”
- “Estou esperando que eles botem o homem dentro do avião...”

PECULIARIDADES DO CRATO

O meu irmão Raimundo, pouco antes de nos deixar, relacionou algumas das suas lembranças do Crato, da década de cinqüenta:

· O ônibus que transportava passageiros entre Crato e a vizinha Juazeiro do Norte, era conhecido por “Sopa”...
· Os juazeirenses eram chamados, depreciativamente, de romeiros...
· Havia grande rivalidade entre Crato e Juazeiro do Norte...
· O Padre Gomes, em suas aulas no Colégio Diocesano, execrava o Padre Cícero...
· Os Cratenses gostavam de lembrar que o fundador de Juazeiro e o maior ídolo dos juazeirenses, o Padre Cícero, havia nascido no Crato...
· Os cratenses gostavam de recitar o seguinte verso:
Se chifre fosse fuzil,
E muriçoca avião,
Juazeiro estava preparado
Pra defender a Nação!
· “Folias Cratenses” era um programa de auditório comandado pelo Wilson Machado e retransmitido pela Amplificado Cratenses, antes da Rádio Araripe ser inaugurada...
· Wilson Machado transmitia futebol, do campo do Cariri, para a Amplificadora Cratense...
· A cabina de transmissão, era em cima de uma estrutura de carnaubeira ou coqueiro e palha...
· Quando convidava o Repórter de Campo para falar da pista, o Wilson Machado entregava o seu microfone ao colega que ficava no chão, debaixo da cabina...
· A “Amplificadora Cratense” era uma espécie de Rádio Comunitária, com alto-falantes em vários pontos da cidade...
· Wilson Machado, Cândido Colares e Edilmar Norões, que viriam a se destacar em emissoras de rádio e TV da capital, começaram como locutores da Amplificadora Cratense...
· Sport e Cariri eram os times rivais da cidade...
· Os principais colégios da cidade eram o Colégio Diocesano, para rapazes e dirigido pelo Padre Montenegro, o Colégio Santa Teresa, para moças, dirigido por freiras, e Externato 5 de Julho, para Crianças...
· Havia também o Seminário do Crato e o Seminário dos Padres Alemães, para quem optava pela vida religiosa...
· Na inauguração da Rádio Araripe, estiveram presentes o Assis Chateaubriand e o Agnaldo Rayol, ainda criança, com uma irmã também criança e cantora...
· A Rádio Araripe tinha um cinema, cujo porteiro era o Zé Porrada, que, quando cochilava, o meu irmão Marcelo, sorrateiramente, entrava sem pagar...
· No programa de Auditório da Rádio Araripe, as perguntas do Wilson Machado sobre futebol, tinham a “assessoria” do meu irmão Roberto, que colecionava a “Revista dos Esportes” e sabia, pelas capas, as matérias que tinham no interior...
· Segunda Feira era o dia da famosa feira do Crato, que ocupava as principais ruas do Centro...
· Na festa da Padroeira, uma Banda de Pífaro visitava as casas pedindo esmola para a Padroeira...
· Literatura de Cordel e esculturas em barro eram destaques da feira...
· Na festa da Padroeira, as quermesses eram tradicionais e grande atração...
· Na Noite de Natal as crianças ganhavam presentes de Papai Noel e na manhã seguinte desfilavam nas calçadas com seus presentes...
· Glória, Cairú e Central, eram os melhores bares da cidade...
· Crato Hotel e Grande Hotel, eram os únicos hotéis da cidade...
· Foto Saraiva era o melhor da cidade...
· Padre Rubens Lóssio era o Pároco da Igreja Matriz e o Padre Frederico Nierhoff (alemão) da Igreja de São Vicente...
· Itaytera era a Revista do Instituto Cultural do Cariri...
· Havia a Escola de Música Branca Bilhar...
· Havia um Coreto na Praça Francisco Sá, onde a Banda de Música Municipal fazia retretas...e o meu Tio Luiz Gonzaga angustiava os músicos com instrumentos de sopro chupando limão na frente deles...
· Os jovens prestavam Serviço Militar no Tiro de Guerra 205...
· A cadeia pública ficava no centro da cidade, em baixo do prédio da Prefeitura...
· Rua da Vala era uma rua por onde passava um canal descoberto, que só enchia no período das chuvas...
· Os banhos mais tradicionais da cidade eram na Nascente, ao pé da Serra do Araripe, e na Cascata, no Lameiro, ambos com águas cristalinas...
· A energia elétrica da cidade, antes de Paulo Afonso, era gerada na Usina Hidráulica da Nascente...
· A Estação Ferroviária da cidade ficava em frente à Praça Francisco Sá, no início do bairro Barro Vermelho...
· No Lameiro havia um Engenho de Cana movido a força hidráulica, pertencente ao Senhor José Vilar...
· No Engenho do Sr. Aderson Alencar, os burros que transportavam a cana ao chegarem ao local de descarga já se posicionavam de costas para o local onde as canas eram deixadas...
· No mesmo engenho o Sr. Aderson criava uma lagartixa que atendia ao chamado dele e vinha receber as baratas mortas que ele levava numa caixa de fósforo...

Colégio Santa Teresa de Jesus

XII – A CIDADE

A seguir, algumas estórias que são próprias da cidade naquelas décadas tranqüilas.

Um Crato bem antigo. Em destaque a Igreja da Sé, o Seminário e parte do Colégio Diocesano. Abaixo a casa da heroína Bárbara de Alencar, absurdamente demolida.




Foto muito rara do espaço onde hoje existe a Praça da Sé. Eu ainda alcancei, pois ela foi construída para a festa do Centenário (1953). Neste espaço, segundo o Padre Gomes, citando João Brígido iniciou o aldeamento do Miranda, embrião da cidade: “A fixação (do aldeamento) foi feita em uma pequena eminência, justamente onde se encontra o Quadro da Matriz do Crato. Tudo, sob a suprema direção, espiritual e temporal, dos Capuchinhos da Penha do Recife, aqui, pessoal e superiormente chefiados por Frei Carlos Maria de Ferrara.” Também, foi palco de momentos históricos na cidade. Segundo J. Figueiredo Filho: “A 3 de maio de 1817, o Crato aderiu à revolução soprada de Pernambuco, proclamada em frente à Matriz, pelo Sub-diácono José Martiniano de Alencar (futuro pai do escritor José de Alencar), coadjuvado pela família, tendo à frente sua genitora Bárbara Pereira de Alencar, e por vários patriotas cratenses.”Aí se reuniram as tropas cratenses que foram lutar pela Independência do país contra as tropas portuguesas no Piauí e Maranhão. Antes, em 1º de setembro de 1822, do prédio da Câmara Municipal (de onde foi colhida esta foto) houve uma proclamação de independência precursora ao sete de setembro. Segundo J. Figueiredo Filho: “Em gesto de altivez, ordenou a Câmara Municipal de Crato que se procedessem as eleições que iriam votar nos representantes da Comarca para a Constituinte Brasileira.” Nesse mesmo local ficaram acantonadas as tropas enviadas pelo Governo do Estado para combater os jagunços do Floro Bartolomeu.
Praça da Sé, atual.

Praça da Sé, com o busto do primeiro bispo, Dom Quintino.

Outro ângulo da Praça, colhido por mim.

JORNALEIROS

No Crato, nas décadas de 40 e 50, as notícias provinham do rádio ou de jornais, que eram ansiosamente aguardados com a chegada do trem, embora com atraso de um dia. É difícil, nos dias de hoje, quando as notícias de qualquer parte do mundo são ao vivo, entendermos esta morosidade.
Uma maneira de você saber que o trem havia chegado, sem ir à estação, era ouvir os jornaleiros apregoando, em altas vozes, os nomes dos jornais de Fortaleza: Correio do Ceará, Unitário e O Povo. Um desses jornaleiros, com certeza analfabeto, pronunciava o nome dos três jornais da seguinte forma:
- “Morreu, enterra o povo!!!”

JUMENTA NO CIO

A feira do Crato era setorizada. Cada quarteirão era especializado em determinado produto. Assim, havia o trecho dos cereais, das cordas, das roupas, dos calçados, das frutas, das lamparinas, das redes, das carnes etc. Os produtos de barro (quartinhas, panelas, potes etc) ficavam no trecho ao lado da Associação Caixeiral. A Igreja de São Vicente ficava próxima e à sua esquerda, “estacionavam” dezenas de jumentos. Todos amarrados aos troncos das árvores, no meio da rua, o que lhes proporcionava uma agradável sombra.

Prédio da Associação Caixeiral onde se ensinava Contabilidade. No trecho da Rua Dr. João Pessoa entre o prédio e a Praça 3 de Maio funcionava a feira das “loiças”. Os jumentos sempre achavam de correr para este setor, onde o estrago era grande... Na foto, observa-se uma lavadeira com uma trouxa de roupa na cabeça, dirigindo-se para o Rio “das Piabas”. A poluição ainda não tinha chegado...
Naquele magote de animais sempre tinha uma jumenta no cio. E também o jumento que se excitava, o que era facilmente percebido por todos... Logo a meninada tratava de facilitar aquele “encontro amoroso”. Sorrateiramente, um menino desamarrava o jumento, que se dirigia para a jumenta no cio. Um outro menino soltava a jumenta, identificada por ficar agitada, querendo fugir do “garanhão”. Logo se iniciava a perseguição. E na correria, às vezes atravessando por dentro da Igreja de São Vicente, acompanhada pela gritaria da meninada, o “casal” achava de correr justamente pela feira dos utensílios de barro. O estrago de quebrar as “loiças” era imenso...
Uma cheia do Rio Grangeiro em 1930, ainda não poluído.

Local do “estacionamento” dos jumentos. A Igreja está à esquerda. Existiam mais árvores e não eram podadas, proporcionando um maior sombreamento.

A TERRA DO PADRE CÍCERO

A rivalidade entre as cidades de Crato e Juazeiro era muito intensa. Tinha origem ainda na revolução do Juazeiro, quando os jagunços de Floro Bartolomeu invadiram o Crato e praticaram os piores atos de vandalismo. Enquanto os Juazeirenses idolatravam o Padre Cícero, os cratenses, em contrapartida, sempre procuravam desmerecê-lo, sem razão, embora fosse natural do Crato. Hoje não existe mais razão nem motivação para uma rivalidade. As cidades já estão unidas formando um aglomerado urbano que cresce e se desenvolve a cada dia. Mas, há cinqüenta anos, tudo era motivo para uma disputa. Quando estavam construindo o prédio do Banco do Brasil, no Crato, por ser o primeiro prédio na cidade, os cratenses diziam que era para fazer sombra em Juazeiro...Outro fato que irritava demais os Juazeirenses era quando o Wilson Machado, durante os seus programas na Rádio Araripe dizia:
- “A Rádio cratense que é ouvida de ponta a ponta em Juazeiro”.
Por causa disso uma vez quase que leva uma boa surra, na sorveteria de Juazeiro, de uns juazeirenses mais irritados. Foi salvo pela interferência de alguns amigos que tinha na cidade.
Periodicamente organizavam-se partidas de futebol entre as seleções das duas cidades, e o Crato sempre levava vantagem, embora Juazeiro fosse muito mais organizado. Certa vez houve uma dessas partidas em Juazeiro do Norte e a torcida cratense, comandada por Geraldo Maia, em pequeno número, ao entrar no campo de futebol abriu uma faixa com os seguintes dizeres: “A terra do Padre Cícero saúda Juazeiro do Norte”
Em 1844, nesta Pia Batismal, na Igreja da Sé do Crato, batizou-se um garoto com o nome de Cícero, que viria a ser o Padre Cícero. Quase cem anos depois, em 1943 foi batizado um outro garoto que recebeu o nome de Ivens Roberto.

Igreja da Sé, no Crato, onde o Padre Cícero e eu fomos batizados...

BB SEM FUTURO

A construção do prédio do Banco do Brasil no Crato foi um acontecimento, por várias razões: os cratenses diziam que era para fazer sombra no Juazeiro; era o primeiro prédio da cidade; o primeiro prédio com elevador e a única agência do Banco num raio de muitos quilômetros. Atendia até municípios pernambucanos, do outro lado da Serra do Araripe. Um dia ia passando um morador de Exu e parou, admirado com aquele prédio alto, bonito, perguntou então:
- “Pra que é que serve isso aqui?”
E a pessoa, com muita paciência explicou:
- “É o Banco do Brasil, rapaz! Serve para emprestar dinheiro!”
E o matuto, desconfiado que só ele, balbuciou:
- “É o que vai pra frente!...”
Prédio do Banco do Brasil em Crato

CANENA

O armazém do meu avô localizava-se à margem da estrada de ferro, bem próximo da Estação do trem. Entre o armazém e a Estação tinha uma plataforma, onde existiam os depósitos de carga da RVC. Portanto, era uma área onde sempre existia serviço para os carregadores, conhecidos por “chapeados”. Tinham este nome devido usarem um tipo de gorro de couro com uma placa dourada contendo um número, indicando que estavam autorizados a exercer a função.
Quase na esquina do prédio do meu avô, bem à margem do trilho, a Dona Canena tinha uma banca onde servia alimentação aos chapeados. Foi motivo, inclusive, de uma crônica do Luís em um jornal local. Era um prato de fígado que exalava um cheiro nada convidativo. A banca era imunda. As moscas em volta. Somente dois pratos para atender aos diversos clientes. Estes pratos e as poucas colheres eram lavados com uma simples imersão numa panela com água que nunca era renovada.
Em virtude da quantidade de clientes, muitas vezes a Dona Canena deixava de atender a um ou a outro. Aquele preterido, com raiva, chegava junto da panela e dizia:
- “Como eu não vou comer vocês também não vão!”
Então cuspia na panela. Os outros, para não saírem perdendo, diziam:
- “Ah! Agora é que ficou gostoso mesmo!!!”

OS DOIDOS

Toda cidade do interior que se prezasse tinha que ter os seus doidos. Viviam perambulando pelas ruas, sendo vítimas das brincadeiras da meninada que não os deixava sossegados. Os mais conhecidos do Crato eram Fubá e Dorica. O primeiro era um doido manso. Costumava conversar com o Gervásio, irmão do Luís. A principal doidice dele era, quando o trem chegava, andar pelo interior dos vagões como se fosse um funcionário da RVC (Rede Viação Cearense). Certa vez o Luís perguntou para ele:
- “Fubá por que é que você ficou doido?”.
- “Foi devido uma chuva que eu tomei”
Já a Dorica não. Quando alguém pronunciava o seu nome passava a descompor a pessoa com todos os impropérios imaginados. O vocabulário era vasto. Um dia, Dorica desapareceu do Crato. Foi esbarrar em Fortaleza, não se sabe como. Foi vista na Praça do Ferreira, em Fortaleza. Um cratense a reconheceu e gritou:
- “Ei! Dorica”
- “Já sei, tem algum ‘fio duma égua’ do Crato aqui”.

PEDRA PERDIDA

Hoje em dia é muito comum a “bala perdida”. Em quase todos os noticiários da televisão estamos tomando conhecimento de tragédias provocadas por balas perdidas. Até mesmo um coitado de um jaboti foi vítima desta verdadeira praga da violência atual.
Nos recuados anos da década de quarenta, no Crato, a realidade era outra. Não existia “bala perdida”, mas “pedra perdida”.
Uma doida chamada Bacheirica, quando insultada pela meninada se vingava, arremessando pedra. E uma dessas pedras sobrou para o meu pai. Cortou o lábio superior, no lado esquerdo, provocando uma saliência que escondia com o bigode. Por isso não tinha quem o fizesse tirar o bigode. Poucos dias antes de morrer, na UTI, a enfermeira me falou para raspar-lhe o bigode a fim de melhor fixar o esparadrapo que segurava o tubo de oxigênio. Quando lhe consultei, meneou a cabeça negativamente. O seu olhar era mais do que taxativo. Perguntei uma segunda vez e ele demonstrou toda a sua negação com mais veemência ainda. Tranqüilizei-o, passando a mão em sua cabeça e falando para a enfermeira que, de forma nenhuma raspasse o bigode do meu pai. Talvez ele ainda estivesse se lembrando da Bacheirica e daquela “pedra perdida”.
Meu pai em duas épocas. Quando foi atingido pela “pedra perdida”, na década de quarenta (com 34 anos) e quando completou os 80 anos, sempre de bigode.

DOIDO NOVO

Quando o Luís morou no Rio de Janeiro e vinha ao Crato passar as férias, tinha que fazer ponto na Praça Siqueira Campos, para se atualizar das estórias. Em um desses dias foi apresentado a um doido novo: o Tetê. No lado da praça, voltado para o Grande Hotel, ficavam uns “carros de praça”, estacionados em espinha de peixe. E o doido costumava ficar calmamente, com os motoristas. Um deles, então, gritava:
- “Incha Tetê!”
Era a palavra mágica. O doido começava a inchar, prendendo a respiração e ficando vermelho. E cada vez inchando mais, os braços dobrados junto do corpo iam, gradativamente, se afastando. Babava e começava a correr em torno dos carros estacionados. A cada grito de “Incha Tetê”, mais aumentava o inchaço e a correria. Até que um motorista gritava:
- “Desincha Tetê!”.
Então o doido ia desinchando gradativamente, atendendo ao comando de “Desincha Tetê”. Ao término, sentava-se completamente exausto, num banco da praça.

Os “carros de praça” alinhados em espinha de peixe na Praça Siqueira Campos. Ao lado, os respectivos motoristas que inchavam de desinchavam o Tetê.

O JOGADOR

O Luís sempre conversou com os chamados doidos, com muito respeito. Preocupava-se em não deixá-los agitados. Existia um deles que andava pela cidade. Era um doido manso. Um dia, logo que começou a ter loteria esportiva no Crato, o Luis foi fazer uma fezinha no jogo. E ele estava encostado na parede da casa lotérica. O Luís perguntou:
- “E aí, não vai jogar não?”
E ele, meio desconsolado:
- “Não, que eu não tenho chuteira”

XIII – CONVERSA COM O LEITOR

Confesso que nunca me diverti tanto na minha vida. A sabedoria popular diz que, quando você está rindo, está “desopilando o fígado”. E foi o que fiz. Ri no momento da gravação (as minhas risadas estão gravadas). Ri quando estava ouvindo a fita e fazendo a marcação das estórias no gravador. Ao redigir a estória e penetrar no ambiente daqueles personagens fantásticos eram mais risos. Ao reler, para melhorar a redação eram “choros” de riso. É verdade, em algumas chorei de tanto rir. É difícil escolher qual a melhor. A memória do Luís é impressionante. Ele detalha as frases. A cada estória surgem outras e mais outras. Por isso resolvemos parar, por enquanto, e levar à lume estas mais de duzentas estórias de vida.. Enquanto isto, vou gravando outras mais.
De todas as estórias fica uma dúvida. Vocês já pensaram se o Sr. Artur Pirão tivesse tido uma “fraqueza”, quando criança? O que aquela canalha iria fazer com o pobre do velho?...
Espero, caro leitor, que você tenha se divertido tanto quanto eu me diverti.


Tendo em vista a natural dificuldade em publicar uma obra desta, com tantas fotos, rendi-me ao pragmatismo e decidi possibilitar que mais pessoas, principalmente cratenses, conhecessem esses personagens e seus “causos”, de imediato.
Daí, a decisão de disponibilizar num blog. Minha filha, Ivna, deu-me a “receita” com os passos básicos e logo estava disponibilizando o “Só no Crato...” para o mundo inteiro!
Inicialmente, comuniquei, por e.mail, para parentes e amigos. O retorno foi imediato com palavras de incentivo e elogio. A minha irmã, Yara, ligou-me para dizer do seu entusiasmo e informar que eu deveria acessar, na internet, o Blog do Crato.
Ao acessá-lo, tive a idéia de comunicar ao Dihelson Mendonça, coordenador do Blog, do endereço do livro. Ele, gentilmente, reproduziu o meu e.mail e, imediatamente, vários comentários de leitores foram enviados e os reproduzo a seguir:

Achei sencacionalllll... Um verdadeiro hino de amor ao Crato. Edição caprichada, recheada com lindas fotos, muitas delas verdadeiras relíquias. Histórias fascinantes, a maioria das quais eu não conhecia ainda. Não me lembro de haver conhecido o seu pai, mas o meu sogro, Anibal Figueiredo, filho do seu Zuza da Botica, o homem que flagrou seu Teófilo fabricando a água bananosa, falava muito nele. Parabéns pela excelente obra. Ela não deve ficar restrita apenas na internet, mas deve urgentemente ser publicada. Acho que a prefeitura do Crato deveria patrocinar a impressão da sua obra. E o mais rápido possível. Tenho editado um livro com muitas histórias do Crato dos anos sessenta, minha época. Um grande abraço e os mais efusivos parabéns.

Carlos Eduardo Esmeraldo

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Crato tem uma grande divida com o seu Tio Luiz Gonzaga Bezerra Martins. Ele foi fundador do Clube Recreativo Granjeiro, foi o idealizador da arquitetura da Praça Siqueira Campos e o proprietário da SORVETERIA GLORIA. Este texto a seguir está no Jornal Folha da Semana edição do Dia 11.10.1953 por ocasião do Centenário da cidade do Crato. Há uma foto dele, bem jovem.
Ei-la:
O grau de progresso de uma cidade mede-se, sempre pela coragem dos seus moradores. O Crato tem evoluído. A cidade transforma-se. Muda sua roupagem de cidade sertaneja, quase todas elas sem estética urbanística, para a de uma capital. Quem conheceu o Crato há dez anos encontra, hoje, sensíveis e profundas modificações. Isto não é nada mais e nada menos do que o resultado do esforço incomensurável de muitos de seus filhos. Haja vista, por exemplo, o dinamismo, a capacidade produtora e o extraordinário trabalho que vem realizando Luiz Gonzaga Bezerra Martins para manter em primeiro lugar, no ramo comercial a que se dedicou, a SORVETERIA GLORIA, estabelecimento que, sem nenhum favor, honra os foros de civilização da Princesa do Cariri...

A. Morais

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Uma beleza de Obra...uma relíquia!
Sobre o Professor Arnaldo Salpéter, peço licença para uma observação: Quando da sua vinda do Rio de Janeiro para o Crato, trazido por ele veio o meu pai - Nélio Clayton Falcão-, que era músico e que no Crato ficou até o fim da sua curta vida.
Nélio CF

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Parabéns pelo belo trabalho sobre fatos, homens e a vida de nossa Crato. Li de um fôlego só, deliciando aquilo que vi ainda menino-moço e ouvi dos ilustres cratenses de verve aguçada. Faço minhas as palavras do escritor e amigo Dr. Carlos Esmeraldo: publique urgentemente seu trabalho para o bem de nossos fígados e corações.
Prof. Zé Nilton Figueiredo

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Não sei quantos cratenses já entraram no site http://sonocrato.blogspot.com/ do Sr. Ivens Roberto Mourão. Ele é um engenheiro cratense que morou no Crato até o ano de 1955 e acaba de nos brindar com um excelente trabalho sobre fatos e histórias populares da nossa cidade. É um belo livro que está à disposição dos interessados na Internet. Trata-se de uma obra leve, bem escrita e recheada de belas fotos do Crato de hoje e de antigamente. Algumas delas são verdadeiras relíquias. Histórias interessantíssimas dos anos trinta, quarenta e cinqüenta nos são reveladas por esta excelente obra, trazendo para o público o espírito moleque e cheio de humor do cratense. Essas histórias foram reunidas pelo autor, numa homenagem à extraordinária memória do seu tio Luiz Gonzaga Martins, de quem ele ouviu essas e tantas outras histórias do Crato. Esse tio do Senhor Ivens foi durante muitos anos proprietário da Sorveteria Glória e um dos fundadores do Clube Recreativo Grangeiro. Não sei se pela distância da terrinha querida, ou se porque sou apaixonado por “causos” sertanejos, o livro caiu forte no meu coração, como se de repente um tornado invadisse meu espírito. Torço para que ele seja editado.
Como se trata de uma obra com muitas fotografias deverá ter uma impressão de custo bastante elevado. Deixo aqui o meu apelo ao prefeito do Crato, Dr. Samuel Araripe que se sensibilize e patrocine a edição dessa obra, através da prefeitura ou consiga junto a alguma organização cratense que deseje fazer uso da lei de incentivo à cultura. Eis uma obra que exalta o Crato e não pode de modo algum ficar restrita ao mundo da Internet. Mesmo ela estando hoje bastante popularizada, nada como uma edição em livro para ficar perpetuada pelos séculos sem fim, amém!
Carlos Eduardo Esmeraldo

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Como um Cratense que AMA verdadeiramente esta terra, eu não me sentiria mais feliz por visitar este site e este livro que possui uma infinidade de histórias e narra com muita personalidade os fatos e faz jus à história e ao povo do Crato do Passado, Presente e Futuro. Visitem, vale a pena. Gostaria de anexá-lo ao próprio Blog do Crato, tamanha a afinidade encontrada lá.


Dihelson Mendonça
Coordenador do Blog do Crato

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Resido em Recife, mas nunca me desliguei do Crato, cidade onde nasci, morei até os 19 anos e visito regularmente, pelo menos quatro vezes por ano. Leio tudo que se publica sobre minha cidade natal. Tenho a sensação que estou retornando e serve para amainar uma saudade que é constante. O "Só no Crato" serviu demais para isto e foi dos melhores que li. Conheci muitas pessoas as quais são feitas referências, inclusive o Senador, meu Tio Avô, da mesma forma que Alexandre Arraes.
Tem mais coincidências, a casa onde o autor nasceu pertence hoje a uma tia, Tia Maria Alice, irmã de minha mãe. Apesar da diferença de idade entre eu e o Sr. Luiz Gonzaga, tive muitos contatos com ele. Seu escritório era dos poucos locais onde se podia falar mal da ditadura de 64.
Fui contemporâneo de uma das suas filhas, no D. Bosco do Prof. José Newton, também grande figura.
Mando os parabéns ao autor, junto com o agradecimento de me permitir retornar ao Crato. Muito Obrigado
Joaquim Pinheiro

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Dois comentários iguais:

Ivens, este teu tio é uma figura!!!!
Antônio Castro Oliveira, de Fortaleza e Lupio Correia de Lima, de Porto Alegre.


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Sou do Crato e julgo um dez as estórias. Conheci alguns personagens. Moro em Recife e fiz a leitura em um só momento, desde às 20:00 até às 03:00 da madrugada. Muito bom.
João Mendes Filho

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Tive o prazer de ler a sua bela obra no Blog Só no Crato. Senti-me muito feliz e privilegiado de ter a oportunidade de ler um trabalho tão amplo sobre a cidade que tanto amo. Sei que você já deve ter recebido muitos elogios. Não tenho o mesmo nível de conhecimento e experiência daqueles que a comentaram no seu blog. Sou apenas um modesto e jovem estudante universitário, mas me sinto indiscutivelmente satisfeito por ter acesso a todas essas informações sobre tempos que me antecederam. Nota-se que você é um apaixonado pelo Crato e expõe isso para que todos tenham acesso. Moro em Fortaleza, mas sou muito ligado à cidade e a visito frequentemente. A minha família por parte materna é por inteira do Crato. Sou um jovem apaixonado pelo sertão, indiscutivelmente admirador de Luiz Gonzaga e louco pelo Crato e a região do Cariri. Parabéns pelo trabalho! Parabéns pela obra!
Grato

Júnior Fernandes


Uma das estórias do Só no Crato mereceu, de um leitor, uma crítica. Alegava que o personagem, seu parente, tinha sido apresentado de uma forma constrangedora. Como não era essa a intenção do Luís e nem a minha, resolvemos retirar a edição da Internet para fazer uma revisão completa. Da mesma maneira que esse leitor não tinha se sentido confortável com a narração, poderia acontecer o mesmo com outras pessoas.
Por isso, modificamos algumas narrativas, não identificamos os personagens em outras e retiramos umas poucas estórias para evitar interpretações equivocadas.
Sendo assim, voltamos a disponibilizar o Só no Crato... na Internet para atender aos diversos apelos e possibilitar que outros conheçam essa época de ouro do Crato.

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Para contatos

ivensmourao@gmail.com